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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

XXI


|Joana Serrado

XXI
____________:Debaixo do viaduto há uma gráfica e uma loja de latas. Vendem-se mais coisas, das quais nunca percebi a utilidade: jarras, vidros de todas as espécies, pisa-papéis, caixas, objectos que nunca vira nem soubera o nome. A loja arrasta-se para dentro, com estantes e prateleiras às quais não se tem acesso. Há sempre promoções numa moeda que já não existe. A loja pede baixinho para se trespassar. O seu mundo já não é deste reino. A gráfica, por baixo,
dá sinais de vida, ocasionalmente, mas nada perturba o trespasse da companheira de cima. Entro lá como uma criminosa. Compro uma lata verde, onde poderei guardar o meu poema de amor. Poderia também comprar uma jarra ou um pisa-papéis – deve fazer falta, talvez, para guardar uma violeta e impedir que as cartas de amor esvoaçassem pela janela. Poderia simultaneamente salvar a loja do trespasse e escrever um poema de amor? Ou poderia comprar duas, três, cinco latas? Dizer ao dono que poderia transformar a loja numa loja de latas, de todas as cores, para aquela multidão que gritava contra o edifício, para todos eles escreverem e nela guardarem um poema de amor? Mas ele nem sequer me ouve, avia-me o pedido e desaparece por entre as prateleiras quase despidas para nunca mais ser visto.
      À saída está um bêbado (será o velho do jardim?). Vive à porta da loja que vai fechar. Todos os dias assiste à promoção das latas e dos pisa-papéis. 
       E aperto a minha lata contra o peito e corro debaixo do viaduto.


In Guarany, 4águas, 2012.