Entrevista a João Luís Barreto Guimarães
|Clara
Henriques
Em toda a viagem há um momento de pausa. Um lugar onde se encosta a estrada
já percorrida e se encara de frente o que há-de vir. Em todo o poema há uma
vírgula por mudar, uma sílaba por fazer. Também João Luís Barreto Guimarães
sentiu que era altura de parar, olhar e voltar a “re-parar”. É esta a viagem
que surge agora relatada no seu mais recente livro “você está aqui”, que chega
às livrarias no próximo dia 25.
À conversa com a Revista Sítio, o autor confessa estar numa fase em que se
sente, cada vez mais, dentro da vida.
É talvez este o tempo de chegar.
Começas e terminas o livro com o mesmo poema – “Bicicleta para o infinito”.
Para que outro infinito pedala este poema?
Quem sabe? Eu não sei… Suponho que o importante seja o
caminho, como no poema de Kavafis, em que o importante não era o chegar a Ítaca
mas o caminho até Ítaca. Seguramente que não pedala para um lugar imediatamente
tangível, um lugar que se atinja sem persistência, revisão, densidade. Mas
ainda assim infinito (como as rodas de uma bicicleta, os óculos de Alexandre O´Neill),
talvez um átimo no tempo, somente, situado adiante no eixo dos dias que nos
cabe viver.
A capa, em Amesterdão. Porquê Amesterdão?
É uma das muitas cidades europeias que representa bem
esse conceito de caminhar (pedalar, diria eu) de que falava Steiner – o
deambular por uma paisagem onde água, terra, ar se mesclam com suficiente poesia
para poder plasmar a tradição da Europa do século XX, as nossas raízes
judaico-cristãs, porém, igualmente cosmopolita e urbana para poder conter a
contemporaneidade do presente.
Este livro está dividido em duas partes: “Partidas” e “Chegadas”. Há uma
viagem pela palavra, por lugares, talvez uma viagem dentro de ti. Fala-nos
dela.
A minha poesia é muito biográfica, muito geográfica, é
uma poesia do espaço e do tempo. Nestes poemas, como noutros, tentei parar para
reaprender a olhar, tentei re-parar (repetir a paragem). Os poemas da primeira
parte trazem valores universais como a beleza, a arte, o tempo, a história, a
memória, a tradição, o amor, o desejo, a amizade, e esses situei-os, não por
acaso, numa geografia europeia. Na segunda parte verifica-se um regresso à
prosa dos dias (Manuel António Pina), à forma como a realidade se nos impõe num
quotidiano menos abstracto, mais concreto, onde os valores são necessariamente outros,
não são necessariamente melhores. Esses poemas situei-os em Portugal, o que faz
deste livro, talvez, o meu livro mais político.
A dada altura, em “Chegadas”, surge um poema intitulado “Poeta marca
território”. Como gostarias que a tua poesia marcasse para além de ti?
Como acontece com os gatos (“os gatos são poesia, os cães
são prosa”), acontece-me marcar o território lá em casa com tinta de caneta,
nos lençóis, nos sofás, nos tapetes, para desalento de quem deles cuida… É
difícil responder. Seguramente que gostaria que algum poema ficasse. Não
acredito verdadeiramente que se possa prever como um poema vai ser lido uma, duas
gerações depois. A minha ocupação é publicar poemas com os quais me identifico
na altura em que os escrevo, tanto quanto no período de tempo (2, 3 anos) em que decorre o processo de selecção
e revisão, até saírem em livro. Se vencerem esse teste do tempo, autorizo-me
a acreditar neles. Caso contrário, elimino-os. Desconheço se isso é suficiente
para a poesia deixar marca mas se em cada um deles tentar “make it new”, como defendia
Pound, já será um bom princípio…
Rui Lage, Manuel António Pina ou Jorge Sousa Braga são apenas alguns dos autores
a quem dedicas poemas. Este livro deixa a sensação de que existe um abraço
fechado às tuas referências. Um tocar de algo que é intímo. Será assim?
Essa é uma das melhores coisas que a poesia me trouxe – um
acesso muito próximo à intelecção de numerosos poetas – Luís Quintais,
Francisco José Viegas, Pedro Mexia, Inês Lourenço, Egito Gonçalves, Fernando
Guimarães, tantos, pessoas e poetas excepcionais que tiveram a amabilidade de
se tornarem meus amigos. Não diria que esse abraço é fechado – trata-se de um
abraço aberto, inclusivo – mas é verdade que quero ter as ideias e a obra
desses autores muito próximo de mim.
É curioso reparar que, em quase todos os poemas, utilizas muito os parêntesis.
O que significam estas interrupções do discurso?
É um recurso formal que utilizo para intercalar outros
discursos no discurso principal, para colar, justapor, destacar, contrapor, o que,
em boa verdade, me permite deixar de fora esse elemento imprescindível à prosa
mas dispensável à poesia – a vírgula. São recantos do pensamento, apartes da
razão, coisas secretas.
O teu primeiro livro foi publicado em 1989. Passaram mais de 20 anos desde
então. Que importância assume este livro no contexto da tua obra?
É o livro seguinte, o que se segue ao anterior… A minha
obra poética deverá ser lida como um continuum cronológico, geográfico e
biográfico, como referi. É, ao mesmo tempo, um livro de síntese sem deixar no
entanto de abrir inúmeros novos caminhos, formais, mas principalmente temáticos.
Sinto-me muito confortável com estes poemas, julgo que se comparam bem quando
cotejados com a “Poesia Reunida” (2011), e agradar-me-ia muito se fosse visto
como o meu melhor livro.
Ainda não avisto o fim mas também não tenho vontade
nenhuma de voltar ao início. Estou talvez noutro patamar, noutra localidade, alhures,
explorando e tentando descobrir novos caminhos. Lendo muito, muitíssimo.
Poesia, história, filosofia, sociologia. Diria que estou dentro da vida, re-parando,
rasurando, reescrevendo.