segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Ray Loriga

|Rui Malheiro

"Gosto de Jean-Luc Godard e de Ingmar Bergman. Não gosto de grão-de-bico. Gosto de Espanha. Não gosto de Espanha. Gosto muito de França, porque a conheço muito pouco. Gosto da comédia, inclusive por cima do respeito, porque como dizia Larry Flynt, famoso pornógrafo, o nosso sistema está criado para assegurar as liberdades dos piores de nós. Gosto dos meus amigos. De ler e de beber com os meus amigos. Não gosto nada que o Papa vá num papamóvel, porque se Cristo tivesse tido guarda-costas não teria existido Cristianismo. E falando de Cristo, Lenny Bruce, o irreverente e tristíssimo cómico norte-americano, dizia que se Cristo tivesse nascido no Texas no século XX, e não em Jerusalém há dois mil anos, os católicos usariam cadeiras eléctricas à volta do pescoço em vez de cruzes"
(Ray Loriga)


"O pior de tudo não são as horas perdidas, nem o tempo por detrás e por diante, o pior são esses espantosos crucifixos feitos com pinças para a roupa". Com esta frase, Ray Loriga (Madrid, 1967) principia Lo peor de todo (1992), a sua primeira novela, rapidamente conotada com a "Geração X" de escritores espanhóis, cujo estilo transpirava álcool, drogas e rock and roll, rótulo que Ray Loriga sempre renunciou, ao afirmar que nunca ambicionou pertencer – ou deixar de pertencer - a qualquer geração.

Lo peor de todo é uma viagem incisiva ao fundo de Élder Bastidas, o solitário, contundente e ambíguo protagonista, escrita na primeira pessoa – com muito de auto-biográfica – e num registo puro, rude e descontínuo, como se fossem coladas páginas rasgadas de diários dispersos no tempo, repletos de frases e imagens fortes, mesclando dor, medo, perda, malvadez, afeição, generosidade, escárnio, inquietação, alucinações e, sobretudo, uma enorme honestidade, bem patente no seu discurso directo, sem adornos e, aparentemente, simples. A história parte de uma infância equidistante da felicidade e da adversidade, mas onde são dados os primeiros passos de encontro a uma adolescência sem rumo, combinando as memórias do colégio – dos jogos de futebol e da paixão pelo Real Madrid às lutas no recreio e aos crucifixos de madeira na aula de trabalhos manuais – e do seu quarto – o seu irmão mais velho a entrar e sair de manicómios, a obsessão pela guerra do Vietname e a paixão pelas revistas de banda de desenhada de Shang-Chi, o mestre do Kung-Fu.

Tudo conflui no presente, repleto de incompreensão e melancolia, na luta pela sobrevivência entre empregos sem sentido e interesse, afogado na certeza da sua incapacidade e falta de vontade para poder mudar o Mundo. O que não o impede de procurar a verdade e de assumir posições e ódios que o agarram à vida: com uma visão desoprimida do sexo, da violência e da morte, Élder não gosta de professores, de palhaços, de curandeiros e de adeptos do Barcelona. Contudo, é nas canções rock e no amor desmesurado por T., a menina loira e escandinava capaz de clarear os seus dias, que encontra a tábua de salvação para o desânimo e a esperança em tempos melhores. Só que, no fim, todo o amor do Mundo não foi suficiente.


"As meninas bonitas sempre são as que estão mais tristes porque sabem que há mais gajos dispostos a fazer-lhes mal"
(Ray Loriga)

Héroes (1993), a segunda novela de Ray Loriga, surge um ano depois. Premiado e aclamado por parte da crítica, que guindou o autor ao estatuto de rockstar e a símbolo de uma geração, malquerido, estéril e pedante para outra parte, Héroes não deixou ninguém indiferente. Prosseguindo na senda da viagem caótica ao fundo da solidão de Lo peor de todo, Loriga, num registo mais lírico, aproximou-se da estética norte-americana de short story, bem patente em Raymond Carver, uma das suas maiores referências literárias, e construiu uma história não linear, sem estrutura narrativa definida, endurecendo a escrita: "-Nos teus sonhos, a menina loira faz-te um broche? –Nos meus sonhos é Deus que me faz um broche". 

A personagem principal da novela é um adolescente sem nome que, desiludido com o mundo exterior e enfadado com a sucessão de noites vazias, se fecha num quarto, abandona a realidade e constrói um mundo de fantasia, pleno de álcool, drogas, sexo e rock and roll, do qual jura não pretender sair, até porque lhe permite dialogar com os seus heróis – David Bowie, Bob Dylan, Lou Reed, Iggy Pop, Velvet Underground, Rolling Stones, Beatles ou Doors –, que funcionam, a partir de um rádio, como banda sonora aos seus devaneios. Intercalando instantes de pessimismo e dor com momentos de alegria e esperança, o solitário protagonista – que gostava de ser um anjo – nunca perde a capacidade de sonhar e insiste na sua busca, entre jarros de cerveja, pela menina loira e escandinava capaz de clarear os seus dias: "Bebíamos cerveja e pedíamos a Deus uma menina bonita". Mas Héroes é, acima de tudo, um manual de inquietação e de esperança em dias melhores, capaz de espicaçar uma revolução interior.

«Qualquer idiota pode ferir uma mulher, mas só um grande homem é capaz de a levar para sempre»
(Ray Loriga)


P - O que te parecia se te dissesse que roubei todos os teus livros de grandes armazéns?
RL - Parecia-me bem. Roubar livros não devia ser delito.



Rui Malheiro, 36 anos, analista de futebol e scout. Escreveu Anuário do Futebol 2008/09 e Anuário do Futebol 2009/10. Adora música, escrever canções e ler os seus autores preferidos, apesar de ter menos tempo livre do que gostaria. Ray Loriga é um deles. Apaixonou-se a ler Heróis e gostava de ter participado, nem que fosse como figurante, em La pistola de mi hermano.