"Gosto de Jean-Luc Godard e de Ingmar
Bergman. Não gosto de grão-de-bico. Gosto de Espanha. Não gosto de Espanha.
Gosto muito de França, porque a conheço muito pouco. Gosto da comédia,
inclusive por cima do respeito, porque como dizia Larry Flynt, famoso
pornógrafo, o nosso sistema está criado para assegurar as liberdades dos piores
de nós. Gosto dos meus amigos. De ler e de beber com os meus amigos. Não gosto
nada que o Papa vá num papamóvel, porque se Cristo tivesse tido guarda-costas
não teria existido Cristianismo. E falando de Cristo, Lenny Bruce, o
irreverente e tristíssimo cómico norte-americano, dizia que se Cristo tivesse
nascido no Texas no século XX, e não em Jerusalém há dois mil anos, os
católicos usariam cadeiras eléctricas à volta do pescoço em vez de cruzes".
(Ray Loriga)
"O pior de tudo não são as horas
perdidas, nem o tempo por detrás e por diante, o pior são esses espantosos crucifixos
feitos com pinças para a roupa". Com esta frase, Ray Loriga (Madrid, 1967) principia Lo peor
de todo (1992), a sua primeira novela, rapidamente conotada com a "Geração X" de escritores espanhóis, cujo
estilo transpirava álcool, drogas e rock
and roll, rótulo que Ray Loriga sempre renunciou, ao afirmar que nunca ambicionou
pertencer – ou deixar de pertencer - a qualquer geração.
Lo peor de todo é uma viagem incisiva ao fundo de Élder Bastidas, o solitário, contundente e ambíguo protagonista, escrita na primeira pessoa – com muito de auto-biográfica – e num registo puro, rude e descontínuo, como se fossem coladas páginas rasgadas de diários dispersos no tempo, repletos de frases e imagens fortes, mesclando dor, medo, perda, malvadez, afeição, generosidade, escárnio, inquietação, alucinações e, sobretudo, uma enorme honestidade, bem patente no seu discurso directo, sem adornos e, aparentemente, simples. A história parte de uma infância equidistante da felicidade e da adversidade, mas onde são dados os primeiros passos de encontro a uma adolescência sem rumo, combinando as memórias do colégio – dos jogos de futebol e da paixão pelo Real Madrid às lutas no recreio e aos crucifixos de madeira na aula de trabalhos manuais – e do seu quarto – o seu irmão mais velho a entrar e sair de manicómios, a obsessão pela guerra do Vietname e a paixão pelas revistas de banda de desenhada de Shang-Chi, o mestre do Kung-Fu.
Tudo conflui no presente, repleto de
incompreensão e melancolia, na luta pela sobrevivência entre empregos sem
sentido e interesse, afogado na certeza da sua incapacidade e falta de vontade
para poder mudar o Mundo. O que não o impede de procurar a verdade e de assumir
posições e ódios que o agarram à vida: com uma visão desoprimida do sexo, da
violência e da morte, Élder não gosta de professores, de palhaços, de
curandeiros e de adeptos do Barcelona. Contudo, é nas canções rock e no amor
desmesurado por T., a menina loira e escandinava capaz de clarear os seus dias,
que encontra a tábua de salvação para o desânimo e a esperança em tempos
melhores. Só que, no fim, todo o amor do Mundo não foi suficiente.
"As meninas bonitas sempre são as que
estão mais tristes porque sabem que há mais gajos dispostos a fazer-lhes mal".
(Ray Loriga)
Héroes (1993), a segunda novela de Ray
Loriga, surge um ano depois. Premiado e aclamado por parte da crítica, que
guindou o autor ao estatuto de rockstar
e a símbolo de uma geração, malquerido, estéril e pedante para outra parte, Héroes não deixou ninguém indiferente.
Prosseguindo na senda da viagem caótica ao fundo da solidão de Lo peor de todo, Loriga, num registo
mais lírico, aproximou-se da estética norte-americana de short story, bem patente em Raymond Carver, uma das suas maiores
referências literárias, e construiu uma história não linear, sem estrutura
narrativa definida, endurecendo a escrita: "-Nos
teus sonhos, a menina loira faz-te um broche? –Nos meus sonhos é Deus que me faz
um broche".
A personagem principal da novela é um adolescente sem nome que,
desiludido com o mundo exterior e enfadado com a sucessão de noites vazias, se fecha
num quarto, abandona a realidade e constrói um mundo de fantasia, pleno de
álcool, drogas, sexo e rock and roll,
do qual jura não pretender sair, até porque lhe permite dialogar com os seus
heróis – David Bowie, Bob Dylan, Lou Reed, Iggy Pop, Velvet Underground,
Rolling Stones, Beatles ou Doors –, que funcionam, a partir de um rádio, como
banda sonora aos seus devaneios. Intercalando instantes de pessimismo e dor com
momentos de alegria e esperança, o solitário protagonista – que gostava de ser
um anjo – nunca perde a capacidade de sonhar e insiste na sua busca, entre
jarros de cerveja, pela menina loira e escandinava capaz de clarear os seus
dias: "Bebíamos cerveja e pedíamos a Deus
uma menina bonita". Mas Héroes é, acima de tudo, um manual de inquietação e de esperança em dias melhores,
capaz de espicaçar uma revolução interior.
«Qualquer idiota pode ferir uma
mulher, mas só um grande homem é capaz de a levar para sempre».
(Ray Loriga)
P - O que te parecia se te dissesse
que roubei todos os teus livros de grandes armazéns?
RL - Parecia-me bem. Roubar livros
não devia ser delito.
Rui Malheiro, 36 anos, analista de futebol e scout. Escreveu Anuário do Futebol 2008/09 e Anuário do Futebol 2009/10. Adora música,
escrever canções e ler os seus autores preferidos, apesar de ter menos tempo
livre do que gostaria. Ray Loriga é um deles. Apaixonou-se a ler Heróis e
gostava de ter participado, nem que fosse como figurante, em La pistola
de mi hermano.