|Alexandra Malheiro
Escrevo-vos
da mesa do canto do meu café. O meu café é na baixa do Porto, tem uma montra
larga de onde vejo o sol, ou a sua ausência. Daqui vislumbro a granítica sombra
da cidade seguindo com o olhar a esquina
onde o eléctrico curva chiando o seu doce gemido, lembrando-me que é pouco mais
que uma memória actualizada para turista ver.
A
minha mesa de canto é onde me sento e medito, riscando estas palavritas e
ideias que convosco conto ir partilhando. Assim a musa, a pena (que a bem dizer
é esferográfica) e a memória me ajudem, dar-vos-ei conta do que vejo e sinto
desde a montra do meu café. Contar-vos-ei também dos que aqui passam, entre
eles alguns amigos que, sentando-se à minha mesa, partilham cafés, torradas e
ideias.
Hoje,
mirando a montra e por ela as personagens da cidade, dizia-me um amigo que há
agora, na literatura, uma espécie de renascimento literário, apesar da crise e
não a propósito dela, isto por a literatura e as artes serem o espelho do tempo
que vivem. Renascimento, diz ele. Refundamento? Pergunto, metade ironia, metade
vontade de perceber. Refundamento, porque não? Responde-me que a palavra até é
boa e dispersa-se depois numa longa dissertação de literatura que começa no
“Húmus” de Raúl Brandão, que eu não li mas que me descreveu como uma obra
escura, húmida, de volta dos líquenes, enfim do húmus. Como não li alvito – é,
portanto, um romance vegetal.
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Sim, podemos dizer que sim – e continua que depois disso surgem os poetas
solares como o Eugénio e eu vou ouvindo tudo aquilo sem bem perceber se a tal
refundação, que ainda não entendi e desconheço, é de agora ou de meados do
século passado. Na verdade pelo caminho fala-me dos surrealistas mas já nem
ouço bem, por toda aquela lição de literatura “au café” interrompida por chistes avulsos, me parecer em si mesmo
surreal. Julgo nada ter compreendido da conversa que tivemos. Naquele momento apenas
ouço o marulhar do café e invento um gato no colo de Eugénio, ronronando sob o
sol a prumo num laranjal, talvez o mesmo gato no ombro do Pina,
enroscando-se-lhe ao pescoço ou na crónica ou talvez ainda Modigliani, o
bosques da Noruega que João Luís Barreto Guimarães talvez afagasse quando
escrevia sobre ele no seu Você está aqui.
Na
verdade nada sei, se a poesia se renova ou se refunda, com ou apesar da crise,
mas sei que também eu, às vezes, me sinto tornada ao local da partida e tal
como num poema sinto-me “no carrocel dos dias” e nunca mais é minha mala, nunca
mais é a minha mala, nunca mais é a minha mala...