Entrevista a Susana Sánchez Aríns
– parte dois
|Eduardo Estevez
Sou assim tão ingénua que ainda, apesar dos
tempos que estamos a viver, acredito na possibilidade de deixar um mundo melhor
para as gerações vindouras.
A terra da que se alimentam as minhas raízes
foi semeada, irrigada e estercada por outras pessoas, algumas sabidas, a
maioria anónimas. Deram forma a uma língua, uma cultura, uma comunidade.
Língua, cultura e comunidade que hoje estão em perigo de extinção. Ao tempo,
tocou-me em sorte nascer mulher, mas o acaso colocou-me numa região do planeta onde
a questão de género implica menos perigos: pude estudar, sou uma pessoa
independente social e economicamente e posso erguer a voz sem medo da
represália.
Sinto-me em dívida com aquelas pessoas que me
precederam ou que não compartem a minha fortuna; e só posso pagar a dívida com
a participação social, cultural. Isso implica oferecer e partilhar com a
sociedade o melhor de cada uma de nós. Fazendo democracia a pé de rua e a pé de
verso. Como já te contei antes, sempre escutei que o meu melhor era a escrita,
e eis que a ponho à disposição da minha comunidade. Ajudo a dar diversidade e
riqueza à língua que é minha, à cultura da que faço parte, às pessoas com as
que partilho o planeta; e coloco uma voz de mulher a abrir-se oco entre
omnipresentes falares masculinos.
Neste mundo onde só parece importar o
capital, a propriedade, o lucro e a utilidade reivindico a comunidade, o bem comum,
o lazer e a inutilidade. Porque já sabemos que a poesia nom vale para nada.
Quero contribuir a que a poesia volte a ser popular e tradicional. Afastá-la da
torre de marfim em que foi encadeada por interesses espúrios.
Concordo com essa concepção materialista do processo de produção literária.
Ora bem, entendo que se trata duma noção recente na história da literatura. Já
que logo, costumo questionar-me como puderam configurar-se obras poéticas nas
épocas em que o poeta era considerado um eleito (pelo mundo mas também por si
mesmo), um iluminado.
Com dizem as avós galegas; o papel segura
tudo quanto lhe escrevamos...
Eu não penso que seja uma concepção assim tão
recente. Melhor dizer que só recentemente prevaleceu sobre outras (ou não, se
atendemos a como agromam sisudas intelectuais que nos tratam ao resto da
humanidade com funda condescendência).
A minha preocupação não está nas obras que
foram escritas mas na ideia de poesia/literatura/cultura que é inoculada na
população para vaciná-la contra a tentativa de fazer-se dona da(s) sua(s)
voz(es). A história da literatura, como todas, é uma história de luta entre
ideologias. E entre nós quase sempre imperaram as elitistas -a única vez que
uma outra ideia de cultura chegou ao poder, foi arrasada por uma ditadura
canibal e fascista. Se só uma eleita pode escrever versos, só outra (ou só a
mesma) iluminada pode interpretá-los em toda a sua imensidade. E isso deixa-nos
fora ao 99% das mortais. Mais, a iluminação fecha as portas a qualquer
possibilidade de aprendizagem.
A poesia é uma velhota que toda a vizinhança
respeita mas com a que ninguém pára a falar. Eu estou na escola no ensino
secundário e reparo como os meus alunos herdaram essa ideia. Sei que é
importante mas eu não sei entendê-la; para mim não é, eu não valho para este
tipo de escritos; apõe-me menos o romance. É a mesma atitude com que são
recebidos os meus livros polas pessoas do meu entorno que não fazem parte do
universo leitor/escritor, enorme orgulho e medo a abrir a página: e se não
percebo?
Obrigar-nos a encarar a obra de arte com
medo, ou, quanto muito, prevenção é a grande vitória das ideologias elitistas.
Comigo não o conseguiram no campo das letras, mas sim no da música, por
exemplo. Esse cifrado estranho do que só umas escolhidas possuem a chave faz-me
simpatizar com todas as pessoas iletradas ou alheias aos códigos literários.
Depois de uma geração maioritariamente mais culturalista nos 80, alguns
críticos dizem que baixar a poesia do pedestal e chega-la à gente da rua é uma
das marcas de identidade mais evidentes da chamada geração poética galega dos
90. Seguindo com esta perspectiva cronológica, parece que haveria que enquadrar
a tua poesia na geração seguinte, a de começos do século. Esta geração parece
querer distanciar-se desta opção, fazendo uma aposta mais intelectual (aprofundando,
diríamos, a linha “ferriniana” ou “chuspatiana” minoritária nos 90). Não sei se
concordas com esta descrição apressada; depois do que acabas de comentar gostaria
de saber se te consideras parte da geração à que por cronologia parecerias
pertencer ou a outra e, em todo caso, gostaria saber qual é a tua percepção
sobre o conceito de geração literária nuns tempos em que parece que as apostas
individuais primam sobre os posicionamentos colectivos.
Eu não me vejo nada ferriniana!! Se é provável
que a minha obsessão com fazer-me entender é porque fiquei traumatizada com a
leitura de Arnoia Arnoia (era mui novinha, tudo deve ser dito).
É certo que me sinto um pouco fora de lugar
com respeito às poetas da minha geração; a minha maneira de evoluir fez que não
tivesse contactos diretos com pessoas que andavam a escrever ou a encetar
projetos culturais. Toda a minha relação com outras poetas, a nível literário,
é uma relação leitora: a umas li, a outras não. Por isso vejo um pouco
desnecessária a classificação assim tão cronologista das gerações.
Não é que a minha aposta seja individual, mas
é certo que não faço parte de nenhum grupo (eu falaria melhor de grupos) ligado
por uns estudos, uma revista, uma associação (A porta verde do sétimo andar)
uma editora (Letras da Cal) e muito menos por uma idade comum. Boa parte
das poetas com as que trato, dentro do panorama galego, chegaram a mim, ou eu a
elas, por caminhos extra-poéticos, não por fazermos parte duma iniciativa comum
em relação à poesia.
Além disso, a diversidade atual de vozes faz
mui complicado estabelecer gerações. As ligações em muitos casos não são
literárias, mas políticas ou sindicais -que acredito mais legítimas, na
verdade, pois o feminismo, por exemplo, pode ser reivindicado desde posições
literárias mui diversas. Falaria mais facilmente duma geração Prestige,
por exemplo, que de culturalistas ou popularistas. Porque essa
catástrofe meio-ambiental e a necessária reacção popular mexeu muito mais o
mundo da cultura que qualquer manifesto literário.
O conceito de geração é muitas vezes
enganoso, e as gerações acabam, em muitas ocasiões, nascendo forçadas pelos estudiosos,
necessitados de taxonomizar tudo. Ponho um caso: se alguém pesquisar a minha
história pessoal no futuro, daria com que, apesar da diferença de idade -sou
lenta em muitas coisas-, fiz estudos de doutoramento com Mario Regueira, Samuel
Solleiro, David Pobra ou Lorena Souto, escritoras que eu sim colocaria num
grupo ligado aos Violentos Anos Dez, que cantam os Ataque Escampe.
Mesmo Mario e Lorena ganharam o mesmo certame poético que ganhei eu, noutras
edições. O simples seria colocar-me a mim nesse grupo, quando, apesar de as
conhecer, de parte delas integrar a editora que publicou o meu aquiltadas,
nunca tivemos, por exemplo, uma conversa comum sobre a escrita, o sentido da
poesia ou o nosso possível posicionamento colectivo, coisa que, penso, elas sim
têm feito. Aconteceria algo semelhante com María Reimóndez, outro caso. Naquela
viagem a Tamil Nadu da que te falei também participou ela, enquanto presidenta
da ONG e mediadora. As nossas conversas sobre literatura limitaram-se a nenhuma.
Mas é provável que alguém sinta a tentação de colocar-nos num mesmo grupo
literário.
Estabelecer gerações, para mais, uniformiza,
comunica uma ideia de univocidade perigosa. É como quando somos colocadas as
mulheres na mesma sacola da literatura feminina, ou de mulher. Ainda que tenhamos
interesses diversos, umas e outras!
Para fechar, falemos de caminhos: ouvi por aí que estás a trabalhar (ou a
pensar começar a trabalhar) num novo livro e que, desta vez, vais experimentar
a prosa. Conta-me algo desse projecto.
É um projeto que está a ser interrompido
continuamente por outras aventuras, em aparência menores, que, no melhor, dão
fruto antes.
Outra vez a maldita guerra! Há tempos que
queria pesquisar uma história privada relacionada com a repressão de 36. Porém,
como é uma história mínima, de pessoas quase anónimas, não posso abordá-la
desde o campo da história, que era o que eu desejava, porque não tenho achado
quase documentação oficial em julgados ou arquivos históricos. Só conto com
testemunhas orais indiretas, de segundas e terceiras gerações. Assim que a
maneira que tenho de contar essa história, cheia de lacunas e ocos em negro, é indo
pela fabulação do discurso literário. E nisso ando. Mas estou certa de que
antes de finalizar esse projeto, outros nascerão e crescerão e florirão, porque
aqui a dificuldade é evitar que a fabulação eclipse o facto histórico, que a
leitora saiba sempre onde começa uma e acaba outro, mas evitando o pastiche. Para mim, algo complicadinho.