terça-feira, 12 de março de 2013

A face lírica de uma obra em construção


Entrevista a Susana Sánchez Aríns – parte um

|Eduardo Estevez


Apesar ter nascido em 1974 em Vilagarcía de Arousa, Susana Sánchez Aríns diz-se estradense (do concelho da Estrada, no interior da província galega de Pontevedra). Contudo, desde há tempo mora no contorno da ilha de Arousa onde dá aulas de língua espanhola e literatura num centro de ensino secundário.
É licenciada em Filologia Hispanica e em Filologia Portuguesa pela Universidade de Santiago de Compostela.
Mantem um blogue de poesia desde 2006 (dedos como vermes), mas não será até 2009 quando a autora veja publicada a sua primeira obra em forma de livro: [de]construçom, com a que obteve a edição de 2008 do Prémio Nacional de Poesia Xosemaría Pérez Parallé para autores e autoras inéditas. O livro foi editado pela Espiral Maior, a mais importante editora de poesia em língua galega.
Em 2012 publica mais dois títulos: Aquiltadas (na Estaleiro Editora) e A noiva e o navio (na Através Editora).
É uma autora muito ligada à net. Para além do blogue mencionado, mantém um outro: como pam da boca, no que deixa constância das suas leituras e criou dois blogues para acompanharem o percurso de cada um dos seus últimos títulos: a noiva e o navio e aquiltadas.


Publicaste o primeiro poemário em 2009 com 35 anos e como consequência de teres ganho um prémio. 35 anos é uma idade algo tardia para começar a publicar na Galiza. Gostaria de começar pela tua avaliação destas circunstâncias em relação com o facto de teres escolhido uma norma diferente da maioritária para a tua poesia.

Tenho-me por uma poeta de lêvedo lento. Mas duradoura.
A minha chegada serôdia à publicação tem mais a ver com questões pessoais que com a organização do sistema literário galego.
A adolescência atacou-me pelo lado da escrita, e foi mui vagarosa a recuperação... Desde menina carreguei com o rótulo da ser boa a escrever, era a que participava nos certames escolares, a que havia de acabar sendo escritora... e no momento de marcar o meu próprio caminho, foi essa a primeira renúncia. Queredes que escreva, malditas adultas?, pois nom escrevo mais. Uma análise freudiana encontraria aí a prova do temor ao fracasso.
Com os anos fui recuperando o gosto pela escrita, embora preferisse a leitura. Lia dez vezes mais do que escrevia, e a minha obsessão centrou-se em encontrar uma voz que fosse minha, como diria a Wolf. O medo todo era o de virar imitadora, arremedante de outras vozes.
E quando a voz aí estava, toda minha e inteiramente própria, dei com um novo obstáculo: o padrão linguístico que eu utilizava. Na Galiza, o galego conta com um padrão que é o aceite pelos poderes políticos e culturais, o chamado ILG-RAG, que segue para a língua o modelo ortográfico espanhol. Mas há outra(s) norma(s) que escolhe(m) como modelo o português e pretende(m) aproximar o galego ao mundo lusófono. Eu sou defensora dessa segunda opcão para a língua galega, e portanto, utente, ao primeiro, da norma AGAL e, na atualidade, do AO. Porém não se deu um caso de censura das editoras ou dos júris; eu mesma decidi que não tinha possibilidades na literatura galega por causa da minha eleição, e renunciei a publicar sem tentá-lo sequer. Aquilo que eu escrevia passava directamente da minha cabeça ao papel e ao fundo das gavetas.
Enfim, no ano 2007, visitei com IND, uma ONG galega, o estado de Tamil Nadu, na Índia. Lá pude conhecer duas grandes escritoras em língua támil, Salma e Kutthy Revathy, mulheres que por exercer o seu direito a escrever viviam ameaçadas de morte. Naquelas tardes em que nos contaram as suas histórias e a sua luta, senti tanta tanta vergonha, que até penso que corei cada vez que dirigia o meu olhar aos seus corpos: eu escudava-me numa falsa humildade e numa potencial censura ortográfica para não fazer valer a minha voz, que não corre perigo de morte algum. Só o risco da crítica negativa.
Ao voltar da viagem, preparei um poemário, apresentei-me a um certame literário (a maneira de fazer-se ver uma escritora principiante na Galiza), ganhei e aqui estou, fazendo-me escutar...
Se me leva contar isto tantos parágrafos, é normal que reflexão e acção consequente levassem anos.

Mas na realidade a questão quiçás devera ser por que é que a gente publica assim tão nova no sistema galego? Penso que muitas vezes não se nos dá tempo a seguir o processo lógico da evolução e o crescimento. Muitas das nossas poetas publicaram já sendo adolescentes, muito novas, e celebra-se isso com grandes palmas. E já mui novas entram no sistema, com as suas editoras, as suas críticas, os seus suplementos literários, submetidas a uma roda que gira e gira e perturba o que seria o seu processo natural de maduração. Parece como se houvesse medo a deixar fugir artistas potenciais.
Faz-se necessário defender o direito à lentidão, ao slow writting. Horroriza-me pensar que alguém tivesse publicado aquilo que escrevi aos vinte anos!

O teu primeiro livro, [de]construçom, partindo das casas familiares, surge durante o processo de ergueres a tua própria casa. O segundo, A noiva e o navio, tem o mar como centro e o terceiro, aquiltadas, é uma espécie de homenagem às mulheres esquecidas. A pergunta é: os teus livros são fruto da decisião de falar dum tema concreto? Ou nascem de preocupações vitais? Ou, dito de outro jeito, os livros são produto duma decisão intelectual? Ou vês o processo de escrita como uma necessidade mais emocional?

Não concordo em absoluto com a concepção romântica da arte que confronta paixão e razão. Para mim, sem processo intelectual, sem abstração, não se dá o feito artístico. A única maneira que tenho de chegar às outras desde o meu eu é analisando aquilo que sinto e buscando o denominador comum como o que creio que elas sentem, e que possa fazer-lhes perceber como é que eu vejo o mundo. Esse denominador comum é a metáfora, a imagem poética. A minha ideia de poesia é aquela que reflete o poema do fingidor Pessoa: finjo tão completamente que chego a fingir que é emoção, a emoção que deveras sinto. 
De certeza os meus poemas nascem de preocupações vitais, mas crescem a partir do trabalho linguístico e literário. E se maduram bem, acabam por florescer livros. Por trás de cada um dos três poemários que publiquei  havia uma decisão intelectual, como tu dizes, um projecto de trabalho, diria eu: encontrar a face lírica duma obra de construção, fazer literária a língua da gente marinheira, prestar homenagem a uma bisavó lavandeira. Porém, o resultado final sempre é inesperado, nunca responde a esse plano inicial, porque no processo de reflexão surgem novos matizes, ideias, emoções, que enriquecem o conjunto.
Uma das coisas que mais me diverte no processo de escrita é justo isso: marcar-me uns limites (temáticos, formais) aos que cingir-me, aceitar o meu próprio repto, e seguir as normas auto-impostas como se dum jogo se tratasse. É mais, vivo a escrita como um jogo que me distrai e entretém, nada a ver com essa ideia, romântica, como sempre, da escrita como expiação da dor.