Entrevista a Susana Sánchez Aríns
– parte um
|Eduardo Estevez
Apesar ter nascido em 1974 em
Vilagarcía de Arousa, Susana Sánchez Aríns diz-se estradense (do concelho da
Estrada, no interior da província galega de Pontevedra). Contudo, desde há
tempo mora no contorno da ilha de Arousa onde dá aulas de língua espanhola e
literatura num centro de ensino secundário.
É licenciada em Filologia
Hispanica e em Filologia Portuguesa pela Universidade de Santiago de
Compostela.
Mantem um blogue de poesia desde
2006 (dedos como vermes),
mas não será até 2009 quando a autora veja publicada a sua primeira obra em
forma de livro: [de]construçom, com a que obteve a edição de 2008 do Prémio
Nacional de Poesia Xosemaría Pérez Parallé para autores e autoras inéditas. O
livro foi editado pela Espiral Maior, a mais importante editora de poesia em
língua galega.
Em 2012 publica mais dois títulos:
Aquiltadas (na Estaleiro Editora) e A noiva e o navio (na Através Editora).
É uma autora muito ligada à net. Para
além do blogue mencionado, mantém um outro: como pam da boca,
no que deixa constância das suas leituras e criou dois blogues para acompanharem
o percurso de cada um dos seus últimos títulos: a noiva e o navio
e aquiltadas.
Publicaste o primeiro poemário em 2009 com 35 anos e como consequência de
teres ganho um prémio. 35 anos é uma idade algo tardia para começar a publicar
na Galiza. Gostaria de começar pela tua avaliação destas circunstâncias em relação
com o facto de teres escolhido uma norma diferente da maioritária para a tua
poesia.
Tenho-me por uma poeta de lêvedo lento. Mas
duradoura.
A minha chegada serôdia à publicação tem mais
a ver com questões pessoais que com a organização do sistema literário galego.
A adolescência atacou-me pelo lado da
escrita, e foi mui vagarosa a recuperação... Desde menina carreguei com o
rótulo da ser boa a escrever, era a que participava nos certames escolares, a
que havia de acabar sendo escritora... e no momento de marcar o meu próprio
caminho, foi essa a primeira renúncia. Queredes que escreva, malditas
adultas?, pois nom escrevo mais. Uma análise freudiana encontraria aí a
prova do temor ao fracasso.
Com os anos fui recuperando o gosto pela
escrita, embora preferisse a leitura. Lia dez vezes mais do que escrevia, e a
minha obsessão centrou-se em encontrar uma voz que fosse minha, como diria a
Wolf. O medo todo era o de virar imitadora, arremedante de outras vozes.
E quando a voz aí estava, toda minha e
inteiramente própria, dei com um novo obstáculo: o padrão linguístico que eu
utilizava. Na Galiza, o galego conta com um padrão que é o aceite pelos poderes
políticos e culturais, o chamado ILG-RAG, que segue para a língua o modelo
ortográfico espanhol. Mas há outra(s) norma(s) que escolhe(m) como modelo o
português e pretende(m) aproximar o galego ao mundo lusófono. Eu sou defensora
dessa segunda opcão para a língua galega, e portanto, utente, ao primeiro, da
norma AGAL e, na atualidade, do AO. Porém não se deu um caso de censura das
editoras ou dos júris; eu mesma decidi que não tinha possibilidades na
literatura galega por causa da minha eleição, e renunciei a publicar sem
tentá-lo sequer. Aquilo que eu escrevia passava directamente da minha cabeça ao
papel e ao fundo das gavetas.
Enfim, no ano 2007, visitei com IND, uma ONG galega, o estado de Tamil
Nadu, na Índia. Lá pude conhecer duas grandes escritoras em língua támil, Salma
e Kutthy Revathy, mulheres que por exercer o seu direito a escrever viviam
ameaçadas de morte. Naquelas tardes em que nos contaram as suas histórias e a
sua luta, senti tanta tanta vergonha, que até penso que corei cada vez que
dirigia o meu olhar aos seus corpos: eu escudava-me numa falsa humildade e numa
potencial censura ortográfica para não fazer valer a minha voz, que não corre
perigo de morte algum. Só o risco da crítica negativa.
Ao voltar da viagem, preparei um poemário,
apresentei-me a um certame literário (a maneira de fazer-se ver uma escritora
principiante na Galiza), ganhei e aqui estou, fazendo-me escutar...
Se me leva contar isto tantos parágrafos, é
normal que reflexão e acção consequente levassem anos.
Mas na realidade a questão quiçás devera ser
por que é que a gente publica assim tão nova no sistema galego? Penso que
muitas vezes não se nos dá tempo a seguir o processo lógico da evolução e o
crescimento. Muitas das nossas poetas publicaram já sendo adolescentes, muito
novas, e celebra-se isso com grandes palmas. E já mui novas entram no sistema,
com as suas editoras, as suas críticas, os seus suplementos literários,
submetidas a uma roda que gira e gira e perturba o que seria o seu processo
natural de maduração. Parece como se houvesse medo a deixar fugir artistas
potenciais.
Faz-se necessário defender o direito à
lentidão, ao slow writting. Horroriza-me pensar que alguém tivesse
publicado aquilo que escrevi aos vinte anos!
O teu primeiro livro, [de]construçom, partindo das casas familiares,
surge durante o processo de ergueres a tua própria casa. O segundo, A noiva
e o navio, tem o mar como centro e o terceiro, aquiltadas, é uma
espécie de homenagem às mulheres esquecidas. A pergunta é: os teus livros são
fruto da decisião de falar dum tema concreto? Ou nascem de preocupações vitais?
Ou, dito de outro jeito, os livros são produto duma decisão intelectual? Ou vês
o processo de escrita como uma necessidade mais emocional?
Não concordo em absoluto com a concepção
romântica da arte que confronta paixão e razão. Para mim, sem processo
intelectual, sem abstração, não se dá o feito artístico. A única maneira que
tenho de chegar às outras desde o meu eu é analisando aquilo que sinto e
buscando o denominador comum como o que creio que elas sentem, e que possa
fazer-lhes perceber como é que eu vejo o mundo. Esse denominador comum é a
metáfora, a imagem poética. A minha ideia de poesia é aquela que reflete o
poema do fingidor Pessoa: finjo tão completamente que chego a fingir que
é emoção, a emoção que deveras sinto.
De certeza os meus poemas nascem de preocupações
vitais, mas crescem a partir do trabalho linguístico e literário. E se maduram
bem, acabam por florescer livros. Por trás de cada um dos três poemários que publiquei
havia uma decisão intelectual, como tu
dizes, um projecto de trabalho, diria eu: encontrar a face lírica duma obra de
construção, fazer literária a língua da gente marinheira, prestar homenagem a
uma bisavó lavandeira. Porém, o resultado final sempre é inesperado, nunca
responde a esse plano inicial, porque no processo de reflexão surgem novos
matizes, ideias, emoções, que enriquecem o conjunto.
Uma das coisas que mais me diverte no
processo de escrita é justo isso: marcar-me uns limites (temáticos, formais)
aos que cingir-me, aceitar o meu próprio repto, e seguir as normas
auto-impostas como se dum jogo se tratasse. É mais, vivo a escrita como um jogo
que me distrai e entretém, nada a ver com essa ideia, romântica, como sempre,
da escrita como expiação da dor.