domingo, 6 de outubro de 2013

O Corpo de Lúcifer (Ensaio poemático)

|Luís Coelho

Se bem que uma certa Espiritualidade esotérica – e em particular a Teosofia de Blavatsky – pretenda fazer do aparente binómio «Corpo – Espírito» uma Mónada de substancialidade espiritual em que tudo é Uno e em que o Uno é o Absoluto, a tentação de contrapor a tal coerente monismo o protótipo de uma dualidade do tipo «Espírito vs. Matéria» não pode deixar de ser sentida enquanto produto de uma natural devassa interna, que é aquela que, urgindo o mecanismo de defesa de cariz psicanalítico, contenta a natural aversão à Unidade e a atracção à transubstanciação de fronteiras.
Jaz já, então, a tentação demoníaca nesta tão grotesca tendência para a fragmentação de uma Unidade, na qual toda a diversidade e todo o movimento conspiram nos termos de um jogo de ilusões, teatro de máscaras que apela à multiplicidade de um Demiurgo que se contenta com a quimera do livre-arbítrio decisor. 

A tentação a apelar à queda babélica no mundo do “Relativo”, perfeito na Matéria das diferentes línguas e distintos paradigmas, e a assumir que a Origem divina está em Deus, que o Governo está no Demiurgo e que estes encenam um “Arché” que, quando o é já não o é, que quando se subsume na concretude é já o animismo consubstanciado, a vida – porque movimento – tornada Terra, Água, Ar e Fogo, e estes a esculpirem a divergência a partir do “Logos”, na estúpida certeza de que a saudade do “Princípio” e a nostalgia das Origens rematará o ensejo de uma luta, feita epopeia, ‘ethos’ convertido em tragédia heróica, que mais não visa do que recuperar o momento do “Arché”, para que este deixe de o ser e para que, após a morte de Deus, o “Eu” – que nunca deixou de o ser – passe a acusar o seu próprio “Princípio” - “Logos” - “Divino”, na sempre eterna certeza de que estamos destinados a ser Deuses por mais que não o desejemos.
É o próprio “Logos” que, partindo de uma qualquer Ordem cósmica racional e hierarquicamente superior, determina que o destino de Cristo, Buda ou Deus se inteirize em cada um de nós, com o adiamento da via crística a preludiar a neurose do “eterno retorno”, e a concretizar-se numa rota de pecados ou falhanços de um caminho que mais não é do que o do desvelamento (ou tentativa de) do Princípio ou do encontro com o verdadeiro ‘Arché’.
E é indubitavelmente da busca do ‘Princípio’ de que se trata no corpus das diferentes manifestações espirituais e nunca nada passou disso, da busca das Origens que habitam o ‘Eu’, do encontro com o ‘Eu’ incondicionado, com o ‘Eu’ que só pode criar e amar se se descobrir na Estrutura virginal e imaculada, não de uma virgindade selvagem e intocada, mas de uma virgindade readquirida – portanto, uma desconstrução que requer a prévia construção – uma indeterminabilidade que postula a revelação sapiente (e já não “sapiente”, porque de uma “douta ignorância”) do molde arquetípico que nos conforma, não descurando a relação dialéctica do modelo originário com o cumular das experiências que transcrevem a vivência no mundo da substância.
É desta alquimia de “autotransformação” que se subjaz a possibilidade real de uma Ética, da via fraterna que só pode ser concebida como resultado da descoberta e securização iniciática do ‘Eu’. Pois que não pode “o outro” existir e ser investido sem que o ‘Eu’ se propicie e descubra a si-mesmo, nas suas múltiplas potencialidades
luciferinas, potenciadoras de um devir, que acabará por ser o de toda uma “Civitas”. E é também daqui que surge a “fé em Deus”, com a lógica analogia com a “fé” na capacidade de mudança, na Palavra capaz de “mover montanhas”, no Verbo que se reifica de tanto ser crido e repetido, como se só uma imagem já transpusesse todas as possibilidades de um ‘Eu’, que só pode ser Deus-Amor depois de ter sido amado e reconhecido pelo Deus-Mater-Pater, pelo Outro e, sobretudo, por Si-mesmo.
A via do ‘Arché’ é a via do Demiurgo: alcançando os alicerces do manifesto, a tentação que se consome visa a duplicidade de um desejo do Inominável e de um desejo de Individualidade, como a criança que, na eterna saudade do ventre consolador, vislumbra a possibilidade de um devir que mais não é do que a solidão de uma aventura que, perpassando trevas, mas também recompensas e letargias, visa a Unidade do ‘Eu’, que, não sendo porventura a Totalidade, é a derradeira pacificação do Ego, que já não é Narciso porque consolidou o momento originário, o instante em que a consciência teve origem e já não era autoconsciência ou o era sem o ser porque era já o baldio de uma argamassa de Logoi desconformes, porque de outros que já outros não são, porque já são o ‘Eu’, que nunca ‘Eu’ será, mas que, todavia, é Ego afogado em sonhos, esperanças, desejos, ambições, necessidades, com tudo isto a ser o prelúdio da ilusão que se derrete no devaneio da identidade, na falsa noção de que se é num mundo em que nada É verdadeiramente, porque o Espírito tudo dilui, porque o Espírito se escoa num movimento perpétuo criando poros e fragmentos onde a densidade se permitia afirmar numa coisa irrealizável, porque o Espírito tudo é e subsume, tudo transtorna num Nada que é precisamente a Realidade tornada incognoscível pela pérfida incerteza, e esta a manar num fluxo permanente de relatividades, que pareciam ser somente desalentos, ou falta de talentos, e acabou por ser a Verdade colapsada no Vazio, de um caos que harmoniza as ordens incertas, irreparavelmente prementes da premência da iminência de Universos, coevos e derivados, que se parodiam de ser alguma coisa quando a Verdade não o é e mais se afirma pela frustração de querer ser o que É, quando Nada Ser é a derradeira fantasia.
No oceano da ilusão do Éter que tudo atravessa, em que o grande é como o pequeno, e o superior como o inferior, derretem-se as dimensões a uma Unidade que, sendo Absoluta, já não relaciona ou se compara, o que é o mesmo que dizer que já não há sequer o grande ou o pequeno, o superior ou o inferior, porque as escalas e os mapas servem só para dirigir o que inevitavelmente acabará por ser um homem desamparadamente aprisionado. Assim mesmo, o peregrino que se inicia e se transcende não cederá jamais às directrizes da Realidade tornada irreal, pois já peregrino não seria se o mapeamento viesse antepor uma via que não seria decerto a Via, uma só, porque só uma rareia na já rara perscrutação do Horizonte que é de facto a Verdade revelada e esta o adiamento consentido da Luz.
A via final evoca temporalmente os níveis inferiores, os níveis infernais que são pouco mais que o mais que são os demónios que nos dominam, os fantasmas que chegam a transcender as nossas fronteiras exteriores para ansiar o controlo do comportamento, do instintivo ao racional, do pulsional ao supergóico, do individual ao colectivo. Estas trevas do ‘Eu’, este ‘Inferno’ da Individualidade, o nível menos manifesto do patamar mais manifesto, este submundo que preside ao que é tornado comum, este mito entrosado por um Inconsciente Colectivo que teve o seu prelúdio na diáspora do ‘Eu’ que se extrapola, a alegoria, o símbolo, os contos de fadas e os instrumentos de um Imaginário lunar, os nocturnos de uma Arte feita Harmonia, que milénios de construção
pictórica, musical e poética viriam enaltecer, este mundo que reúne o helenismo, a epopeia greco-latina, os romances iniciáticos de Petrónio e Apuleio, a poesia de Dante, Milton e Blake, as depravações de Sade ou de Boccaccio, o espírito romântico de Novalis, Hölderlin, Goethe e Schiller, o ambiente “noir” de Poe, Hoffmann e Gogol, o romance francês e o Surrealismo em arte e poesia, e até mesmo o cinema, desde os musicais “inocentes” ao “radicalismo” de Buñuel e Pasolini, todas estas obras entre muitas que fazem o hino ao Inferno, ao caminho da floresta que o crescimento exige e denuncia, ao Deus feminino, Pandora embriagante, a via que se anuncia em Prometeu, a condenação da via Crística que exige mérito mas nunca desejo ou ambição, este caminho que a Fortuna já anunciava e que o mesmo Destino obstaculiza, para gáudio de uma incompreensão, que é aquela que reside no “Para quê tudo isto?”.
Onde estará o maior mal? Na via do Inferno que tem de ser vivida necessariamente ou na via do Inferno que se pretende eternizar, porque é o próprio “eterno retorno” que se tornou uma tentação, porque a compreensão da ausência de sentido de todo o Caminho comprometeu decisivamente toda a vontade genuína de crescer (quando, no fundo, nem existe uma vontade autêntica de crescimento, pois a vontade e a ambição matam a própria possibilidade de evolução)?...
Onde estará o maior mal? Na via do ‘Eu’ feito demiurgo ou na via do ‘Eu’ feito ‘Deus’ e portanto já Não ‘Eu’? O primeiro governa e pacifica mas não é livre. É homem com desejo e consciência, apela ainda à matéria e à encarnação. O segundo é a liberdade propiciadora, possui todas as potencialidades, todos os Logoi em si transcorrem, mas não é ninguém em particular, não é consciência de si ou de outrem, é só Consciência pura e total, que é uma Não Consciência, o Todo Nada irredutível.
Ser ‘Deus’ ou ‘Demiurgo’, ou ser homem simplesmente, a tentação de estar “para além do Bem e do Mal” augura a dialéctica da existência, quando o destino de nada ser lobriga a hipótese de redenção face ao sofrimento eternamente adiado.
Quando o sofrimento é a confluência do vazio e a confrontação da angústia com a cognoscibilidade de um corpo depuradamente emasculado, porque infecundado da vitalidade de um Eros que é já, desde o primeiro sopro, pérfida entropia… Um sofrimento que perspectiva a sua resolução acima de todas as outras necessidades, uma transposição que se fará recrutar pelo instrumento anestésico, que só será alquimia profunda se a fisiologia da celeridade não tiver surtido um efeito razoavelmente embriagador. 
Quando a verdadeira embriagação é somente aquela que denuncia a renúncia ao caminho, a anquilose da carne transtornada em Ego compulsado em megalomania de um Narciso que mergulha incessantemente nas águas da ilusão, feito já Sísifo a arrastar o seu próprio mundo como uma pedra espelhada de um teatro que é do tamanho de um Atlas, titã da efeméride de uma forma que não cede ao Espírito, que permanece pura escatologia terrena no “eterno retorno” que mais não é do que neurose de uma obsessivo-compulsividade em que a retroatividade positiva subjaz ao “regresso” sem sentido, aquele que um mal compreendido Nietzsche viria conceber e parodiar, para que, mais a mais, todos nós, “pós-Nietzsches”, viéssemos a sucumbir à vergonha de encontrarmos o Nada na nossa Caverna sem que nada encontrássemos de forma primeva, mesmo que o nosso a priori pareça ter sido descoberta recheada de plenitude narcisicamente masturbatória… (vã ilusão a de pensarmos que ainda há algo que não tenha sido pensado ou sonhado) … 
E já a nossa caverna é toda a Caverna do Mundo, que é realidade de conceitos, prescrições, fronteiras que não são Sabedoria, porque esta não é distância mas proximidade, porque esta é conhecimento puro, como se isso fosse possível, pois a consciência pura, razão da Testemunha, transpõe toda a Razão (quando esta é feita de conceitos que são jangadas de um rio lodoso que vai do Eu ao Outro, do Sujeito ao Objecto), que já Razão não era, porque só há a nossa razão, porque o conhecimento é todo íntimo, como a observação é apenas um olhar para dentro, porque neste vislumbre se encandeia a impossibilidade de olhar o que as coisas são, se é que são alguma coisa, se é que nós mesmos somos alguma coisa, se é que há alguma coisa, quando o ato desta escrita e do tolo que me lê nada são, porque tudo é inútil, mas já a consciência da inutilidade é apenas consciência, uma entre tantas que se perdem no conforto da droga mundana, que é a mesma droga a que quero sucumbir, mas já o sentimento de culpa me limita o mergulho, com este a ser ilusão, e esta a ser compulsão, com a linguagem a transcorrer e a não conseguir pará-la, tudo se mistura e não há ordem, mas o Caos é a incausalidade, não é o que queremos a liberdade,
Porquê o medo de nos arrancarmos
À súbita ausência de limites
Porquê o medo do infinito
Quando tudo é sem fim
Expansão e retroacção 
Evolução e involução
Nesta paródia dos devas
Imponderáveis que pretendem saciar o caminho
Sancionar a aparição de um fim que é início, de um fim que é somente fim de um fim, início de um fim do fim, fim de um início de um fim de um início de um fim de um início de um fim de um início de um início de um início de um fim de um início, com tudo isto a precisar de ser parado, por uma dor que esmaga pela ansiedade, pelo bloqueio que impede o suicídio, e este a ser tão desejado, o maior direito do homem, o direito a dispor do fim,
Para uma nova angústia urgir,
Pois se não há fim da Consciência,
Haverá o fim merecido da angústia?
Pois se esta pode cessar porque morre a mente na morte do corpo, pode, afinal de contas, expirar a busca?
Não terei eu o direito de não buscar, 
De não transpor, de não acolher a Totalidade,
Porque quero ser Eu para a eternidade,
Mas sendo Eu e estando na busca,
Já começo a ser o Outro e o Infinito,
Que cessará a minha consciência,
E com essa cessação, findará a minha busca, mas nem cheguei ao consolo do Eu, porque quando o encontrei já Eu não era, daí que nada tenha encontrado, para o ter feito era preciso ser Eu, para ter de facto encontrado já não podia ser Eu, já não podia desejar sequer, quando este ‘Eu’ que escreve tem desejos e vislumbres, mas se o Todo é o não desejo, como desejar o não desejo, sendo o Eu a desejar nada ser, condição da impossibilidade de ser Todo querendo sê-lo, e lá continua a angústia da busca imbecil, filosofia da doença, fisiologia da filosofia da doença que é fisiopatologia da filosofia, 
Vou medicar esta doença
Calar o fogo ruminativo
Quando não ruminar é condição de não crescer, e não crescer é condição de eternidade na carne, mas ruminar é condição fisiológica, necessidade de um Ego cujo transtorno requer superação e a superação reitera crescimento e o crescimento demanda transtorno, 
O Ego a precisar de si mesmo para não o Ser
Nada Ser em separado, o Todo a requerer o Todo,
O Todo a ordenar a superação da Parte,
E este superar a ter o requerimento da Parte,
Como atingir a via final do Não Ser desligando a determinação do Ser que deseja, e porque deseja É, e porque É não pode SER? Somente pelo Livre-arbítrio poderíamos explicar o afectar de uma Liberdade que nem sequer existia e até precisava de existir para o Livre-arbítrio assomar. 
E o sufoco de não saber explicar a Liberdade, porque ser Livre é já não requerer Deuses, porque aí somos nós os Deuses, mas o caminho é feito sob o repto dos Deuses, os que não somos mas queremos ser, os que criaram o Arché que somos, o Arché que limita a Liberdade,
O Arché que condiciona o próprio mérito,
E, portanto, condiciona a própria ambição, a própria possibilidade de evoluir (ou uma não ambição e/ou o desejo de ser Eu, condição saturnina a trazer o prazer e este a ser tentação só ultrapassável pela existência da dor).
Com o Mal a ser a única garantia de crescimento, quando este é o mal próprio – o sofrimento – e não o mal do Outro. Com o Mal a ser a única garantia de ser o Outro, porque o desejo de o Inferno abandonar reside somente no desejo de não sofrer, e é por isso que toda a Espiritualidade se resume a um Eu que pretende a salvação, uma Bem-aventurança que o Eu não percebeu já não ser Vida, não ser Eu, não ser Autoconsciência. É portanto o Mal que leva ao Espírito. E não o ‘bem’, pois se este existisse perpetuamente nunca auguraríamos abandonar o Ego, porque a via Crística que há em nós é pura determinação egóica, porque o Deus que estamos destinados a ser só pode ser obtido quando queremos ser Eros (mas um Eros afrodítico, terreno). Porque a Ética é ilusão e tudo é fuga do Eu que sofre, do Eu que se dissolve, e escrevo isto neste desejo de que tamanha ruminação nunca tivesse ocorrido, nesta perfeita certeza de que o diabólico é condição do simbólico, de que o demoníaco é condição da Perpetuidade, muito mais do que mera contraparte do Espírito, e por estas e por outras, as religiões se voltam a aproximar, temos o desejado “religare”, com tudo a ser pó, tudo a ser partículas, o Divino a igualar o Caos quântico, e o Caos quântico a ser feito das múltiplas e caóticas ordens terrenas (falsos absolutos, ilusões de permanência), e o Caos final a ser nutrido pelo combustível demoníaco, para concluirmos, no fim, que tudo isto é o mesmo, e que o único diabolismo é o conjunto das etiquetas, por que tudo é a mesmidade, tudo é Uno, tudo é:… .. .


Luís Coelho
Ensaísta

Autor, entre outras obras, de «O Corpo e o Nada. Mini-ensaios teofilosóficos» (Apeiron Edições, 2013)