sábado, 16 de novembro de 2013

Mais algumas lições das Substâncias Perigosas

| Pedro Eiras


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Evolução para o ponto de partida

Freud não é um escritor perigoso: é o próprio perigo. Leio-o há muitos anos e cada texto que encontro perturba-me como se fosse o primeiro. Não exagero se contar aqui que discuto, há anos, com Freud. Literalmente. Não posso impedir-me. Leio, e vou sussurrando todas as formas do meu espanto. Acho-o louco. Depois, genial. Depois, outra vez louco. Abandono os livros, volto aos livros. Dou por mim a observar-me, de fora, por dentro, por dentro de fora de mim – e vice-versa. Descubro pulsões e sintomas em cada um dos meus gestos. Interpreto os meus gaguejos, os meus esquecimentos, as minhas distracções. Invento-me. Deito-me com pavor. Acordo com angústia. Freud é o próprio perigo, um génio – e também o meu pior pesadelo.

Impossível dominá-lo. Passou a vida a rever as suas certezas, reescrevendo as teses nucleares dos livros anteriores. Mesmo a ideia de que o sonho é a satisfação de um desejo, resumo mínimo de A Interpretação dos Sonhos, em 1900, se verá secundarizada após o ensaio fundamental “Para além do princípio de prazer”, de 1920. A pulsão erótica encontrava uma tenebrosa rival: a pulsão de morte, o desejo de morrer, de voltar a um estado originário de não-vida. Porque, como Freud descobria, somos conduzidos pela vontade de repetir o que fomos anteriormente.

São páginas célebres, mas não resisto a citar aqui a frase onde toda a psicanálise se revê numa homenagem a Tanatos:

Se aceitarmos como verdade sem excepção que tudo o que é vivo morre por razões internas – se torna de novo inorgânico – então ver-nos-emos obrigados a afirmar que “o alvo de toda a vida é a morte” e, em retrospectiva, que “as coisas inanimadas existiram antes das vivas”.

O alvo da vida é, não a sobrevivência, não a vida eterna, mas a morte. O grande sono. Menos-que-sono.

E, se a vida é sonho, talvez se possa dizer ainda que nós, a nossa vigília, a nossa cultura, toda a literatura e a lógica, a matemática e o canto, a ignorância e a própria psicanálise, tudo isso – é só um acidente, um complexo acidente que nos impede de sermos nada, “uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria”, um intervalo entre nada e nada, e nada mais.


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Revisões sucessivas

            Freud revia continuamente tudo o que escrevia. A omnipotência de eros em 1900 é ensombrada pelo veneno de tanatos em 1920. O próprio conceito de inconsciente, central em Freud já nos últimos anos do século XIX, não surge uma única vez no livro final O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, de 1938, como se a psicanálise abdicasse da sua própria raiz.

            Em 1939, Freud morre deixando inacabado o seu Esboço de Psicanálise. Que novas, estranhas perturbações teóricas se preparavam aí?

           Curiosa coincidência: Mário de Sá-Carneiro morre deixando incompleta uma novela intitulada Mundo Interior. Sabe-se de pelo menos um capítulo escrito, deixado entre as cartas de Pessoa e outros textos inéditos, que ficaram no hotel onde Sá-Carneiro se suicidou e que se perderam (onde? como? perderam deveras? mistério…). Quanto ao novo tratado de Freud, fica interrompido num capítulo chamado também, precisamente, “Mundo interior”.

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Memo

            Nunca começar a escrever um livro chamado Mundo Interior.

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O super-ego cultural

O século XIX postulou que (e sabemos hoje que houve usos e abusos dessa teoria) o que acontece ao homem acontece também à civilização. O indivíduo e a sociedade têm as mesmas doenças psicológicas. De resto, diz Freud incansavelmente, a própria criança vive durante alguns anos os mesmos processos de desenvolvimento psíquico que ocuparam a humanidade durante milhares de anos: a ontogénese repete a filogénese. A ser assim, a pulsão de morte que programa o aniquilamento de cada homem também deve existir na sociedade. Freud viveu a Primeira Guerra Mundial e os primeiros meses da Segunda; os seus livros foram ignominiosamente queimados pelos nazis na praça pública. E Mal Estar na Civilização sai em 1930, quando os nazis entravam no Reichstag.

Mal Estar na Civilização é um livro corajoso. Diz que toda a civilização, que entendemos como conquista cheia de méritos, implicou a renúncia às pulsões. Não se trata de qualquer simples marcha triunfal do humanismo (ou outros -ismos), mas de um perigosíssimo, violentíssimo cancelamento de energias primitivas. A História encarregou-se de mostrar a que resultados conduziria tal desenvolvimento. De facto, “Para além do princípio de prazer” tinha defendido que não há uma generalizada “pulsão para a perfeição” na humanidade. Ilusão filosófica e académica, que um Schopenhauer já denunciara.

(Freud afirma algures que leu muito Schopenhauer; quanto a Nietzsche, confessa que evitou lê-lo, para evitar ser contagiado, tão próximo se sentia; e quanto à literatura em geral, simplesmente diz que ela sempre soube tudo sobre a psicanálise, avant la lettre; a um jornalista que lhe perguntava aonde tinha ido buscar todas as suas intuições sobre o inconsciente, Freud respondeu apontando simplesmente para um estante, atrás dele, cheia de obras literárias).

Na verdade, não se trata só de não haver pulsão para a perfeição em todos os homens; trata-se de evidenciar a luta entre Eros e Tanatos. O homem / a sociedade inclui em si a vontade de destruição, a agressividade, o sadismo. Ninguém encarna Eros sem conter uma miríade de outras pulsões. Édipo não pode amar Jocasta sem matar Laio. E séculos de educação impedem-nos de aceitar de bom ânimo que alguém nos diga, tout court, que todo o ódio do mundo faz parte da nossa natureza.

Qual natureza? A subtileza freudiana lembra, no conceito de ambivalência, que o pai também é amado. Que toda a criança vive uma bissexualidade inicial. E que o egoísmo incestuoso infantil acaba por ensinar o amor. A psicanálise diz o nosso plural, a nossa indefinível natureza.

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O que se segue é especulação

“O que se segue é especulação, amiúde pura especulação, que o leitor pode considerar ou esquecer, conforme preferir” – assim começa o capítulo IV de “Para além do princípio de prazer”, que cito pela última vez.

Vamos supor que toda a psicanálise estava errada.

De alguns estudos de Freud é costume dizer que estão literalmente errados; pelo menos em relação a “Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci”, que parte de uma palavra mal traduzida para um retrato da vida psíquica do pintor, com evidente descalabro, dizem os detractores. Mas vamos mais longe, vamos supor que tudo estava errado, da Interpretação dos Sonhos ao Homem Moisés, da Psicopatologia da Vida Quotidiana ao Esboço de Psicanálise. Resta saber o que é “estar errado”. Este é apenas um dos caminhos por onde complicar a questão, apenas um. E eu postulo que sempre houve muitas capacitações, seja isso o que for, na psicanálise.

Mesmo assim, vamos supor que tudo estava errado, tão errado como a palavra que Freud traduziu obviamente mal. Bem, confesso que continuaria a ler Freud com o mesmo empenho. Porque não me interessa que os textos confirmem uma verdade anterior; interessa-me que me levem a lugares inesperados, que me obriguem a pensar o novo. E não restam dúvidas: os caminhos da psicanálise foram novíssimos.

Os escândalos que o digam, ainda hoje. Quando falo da psicanálise ou simplesmente digo o nome de Freud, continuo a ouvir fórmulas de esconjuro. E essa repulsa nunca se reduz a um mero desprezo, vaga impaciência, alguma refutação lógica e argumentada. Não: é sempre violenta, taxativa, furiosa, apaixonada. Pronta para ser analisada.

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Esconjuros e mentiras

            Uma ciência do erro.

            Sempre preferi ler textos obviamente errados mas cheios de possibilidades de pensamento – a textos certos que só repetem o que já sei.

            E o que se lê, ainda que seja errado, começa a tornar-se real, porque cada livro reinventa o mundo.

            Viver no mundo certo inventado pelo livro errado.

            O que interessa, de facto, é algumas operações. Não mais matéria, menos matéria, mais sumário, menos sumário. Interessa uma pequena operação de pensamento: inventar uma pequena nova torção para a realidade.

            Não confirmar nada: surpreender tudo.



Substâncias Perigosas, Pedro Eiras, Livrododia Editores