Conversa com Pedro Eiras a propósito do romance A Cura
(QuidNovi, 2012)
|Andreia Faria
- Descreve um book trailer possível
para A Cura.
Dois homens lutam. Um é psicanalista; o
outro, ***. Um round por mês: treze
consultas, mais um prólogo para definir as regras, um epílogo para sarar as
feridas. Como se uma ferida alguma vez sarasse.
- Um dos títulos possíveis para a A Cura, apresentado inclusivamente na capa, é Uma sátira. Uma sátira de quê ou de quem?
Outro dos títulos possíveis é Por que razão tudo o que escrevo se
transforma logo noutra coisa diferente? Talvez este livro comece por
satirizar um alvo, e termine a satirizar outro... Em todo o caso: uma sátira de
mim a mesmo mesmo, dividido entre várias personagens. Como sempre.
- O autor sai ileso das suas ficções?
Não. De maneira nenhuma. Ou então, é porque
as coisas correram mal, e então a vida continua, incólume. Mas o autor deve
sair ferido, morto e ressuscitado: absolutamente diferente de si mesmo depois
de escrever o livro. E não por um programa, uma metamorfose mecânica, mas
porque ao escrever atravessa um lugar que não conhecia, que ainda não existia.
Ele parte para esse lugar desconhecido, mas quem regressa já é o outro.
- Ouvi dizer que Freud é um dos teus autores favoritos, e A Cura vive muito das leituras que dele fizeste. A tua relação com Freud fica maculada pelas descobertas que o teu narrador faz ao longo do livro, ou continuas a lê-lo com a mesma frescura?
Bem, a minha relação com Freud nunca foi
imaculada; acho que ninguém pode ter uma relação imaculada com Freud, nem
sequer antes de o ler (somos freudianos e anti-freudianos mesmo antes de abrir A Interpretação dos Sonhos). Lembro-me
das minhas primeiras leituras, de Introdução
à Psicanálise, de Uma Recordação de
Infância de Leonardo da Vinci, etc.: eram leituras violentas, irascíveis.
Porquê? Muitas vezes, é para responder a esta pergunta que escrevo. Dito isto,
acho Freud um autor magnífico, e quanto mais discuto com ele mais ele me
fascina. Se as descobertas do meu narrador “maculam” Freud, isso só pode tornar
a leitura mais fascinante. Não me interessa fazer as pazes com Freud.
- O Tiago Sousa Garcia, que apresentou o teu livro no Porto, disse a certa altura que a psicanálise se assemelha em muito à crítica literária: na minúcia da análise, na ausência de crença na inocência do texto, na procura do não-dito, do que o texto quer esconder. Estás de acordo?
Sim, absolutamente de acordo. Sou professor
de literatura na Faculdade de Letras do Porto, e espero que as minhas aulas
sejam uma espécie de psicanálise do texto lido. Uma aula é interrogar um breve
poema durante uma, duas horas, como se fosse um analisando num divã. Ao fim de
duas horas, com sorte, o poema começa a revelar o seu inconsciente. E duas
horas é pouco tempo, porque a profundidade de um poema é infinita. Então, nenhuma
inocência e nenhum acaso: tudo fala, cada vírgula esconde um crime, cada
pergunta uma redenção.
- Miguel Real disse no JL que és um dos poucos críticos literários que ousa escrever romances e “sujar as mãos”. Sentes que, enquanto crítico, a escrita de romances te põe a cabeça a prémio?
Espero que os meus ensaios literários
estejam tão maculados como as minhas ficções: que se sintam os grãos de terra,
o atrito da escrita em todos os meus textos... E, no fundo, talvez não haja
contradição: eu coloco-me problemas a mim mesmo; se lhes tento responder com
argumentos teóricos, leituras lentas de textos de outros autores, ou com
personagens e enredos, o desafio seminal é o mesmo. Espero que os meus romances
sejam uma forma de pensar, como os meus ensaios são uma forma de ficção, uma
dramaturgia do pensamento.
- Em alguma circunstância o teu escritor foi boicotado pelo teu crítico?
Não. O crítico ajuda o escritor, e
vice-versa. O crítico lança obstáculos ao escritor, mas isso serve para o
acordar. E o escritor usa o crítico para tornar a escrita mais difícil. Na
verdade, nem sequer consigo distingui-los: trabalham juntos, sujam-se juntos.
- Como vês o teu lugar de escritor numa altura em que a publicação de livros passa da democratização à vulgarização? O acesso à publicação de tanta gente que, há umas décadas atrás, não seria validado como "autor(a)", abre novas possibilidades ou limita o trabalho do escritor tal como o entendes?
Não tenho nada contra o “acesso à
publicação”; pelo contrário. Não me reconheço, como leitor, em muitos dos
livros que são publicados hoje, mas isso também vale para os livros de qualquer
época histórica. Acho que um entendimento crítico do que se escreve e publica é
fundamental, claro, sobretudo quando existe uma tal sobrecarga de textos em
circulação. Mas é uma questão que não me incomoda; o que realmente importa é
só: que, no meio de tantos escritos, surjam os livros valiosos, os que me ferem.
Post-scriptum: ainda sobre as máculas, a sujidade, o
atrito –
em Stalker,
de Andrei Tarkovsky, há um travelling
picado sobre textos, moedas, ícones, terra, tudo submerso em água. Vemos esses
restos de civilização ascenderem na tela, devagar, muito tempo. Tarkovsky deitou
esses bocados de livros, textos e imagens na água, mãos-cheias de terra por
cima, e aos técnicos que preparavam o filme, estupefactos, explicou: «Isto – é
a matéria de que os sonhos são feitos.»