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Evolução
para o ponto de partida
Freud não é um escritor perigoso: é o
próprio perigo. Leio-o há muitos anos e cada texto que encontro perturba-me
como se fosse o primeiro. Não exagero se contar aqui que discuto, há anos, com
Freud. Literalmente. Não posso impedir-me. Leio, e vou sussurrando todas as
formas do meu espanto. Acho-o louco. Depois, genial. Depois, outra vez louco. Abandono
os livros, volto aos livros. Dou por mim a observar-me, de fora, por dentro,
por dentro de fora de mim – e vice-versa. Descubro pulsões e sintomas em cada um
dos meus gestos. Interpreto os meus gaguejos, os meus esquecimentos, as minhas
distracções. Invento-me. Deito-me com pavor. Acordo com angústia. Freud é o
próprio perigo, um génio – e também o meu pior pesadelo.
Impossível dominá-lo. Passou a vida a
rever as suas certezas, reescrevendo as teses nucleares dos livros anteriores.
Mesmo a ideia de que o sonho é a satisfação de um desejo, resumo mínimo de A
Interpretação dos Sonhos, em 1900, se verá secundarizada após o ensaio
fundamental “Para além do princípio de prazer”, de 1920. A pulsão erótica
encontrava uma tenebrosa rival: a pulsão de morte, o desejo de morrer, de
voltar a um estado originário de não-vida. Porque, como Freud descobria, somos
conduzidos pela vontade de repetir o que fomos anteriormente.
São páginas célebres, mas não resisto a
citar aqui a frase onde toda a psicanálise se revê numa homenagem a Tanatos:
Se aceitarmos como verdade sem excepção que
tudo o que é vivo morre por razões internas – se torna de novo
inorgânico – então ver-nos-emos obrigados a afirmar que “o alvo de toda a
vida é a morte” e, em retrospectiva, que “as coisas inanimadas existiram
antes das vivas”.
O alvo da vida é, não a sobrevivência, não
a vida eterna, mas a morte. O grande sono. Menos-que-sono.
E, se a vida é sonho, talvez se possa
dizer ainda que nós, a nossa vigília, a nossa cultura, toda a literatura e a
lógica, a matemática e o canto, a ignorância e a própria psicanálise, tudo isso
– é só um acidente, um complexo acidente que nos impede de sermos nada, “uma
história contada por um idiota, cheia de som e de fúria”, um intervalo entre
nada e nada, e nada mais.
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Revisões
sucessivas
Freud revia
continuamente tudo o que escrevia. A omnipotência de eros em 1900 é
ensombrada pelo veneno de tanatos em 1920. O próprio conceito de inconsciente,
central em Freud já nos últimos anos do século XIX, não surge uma única vez no
livro final O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, de 1938, como se a
psicanálise abdicasse da sua própria raiz.
Em 1939,
Freud morre deixando inacabado o seu Esboço de Psicanálise. Que novas, estranhas perturbações teóricas
se preparavam aí?
Curiosa coincidência: Mário de
Sá-Carneiro morre deixando incompleta uma novela intitulada Mundo Interior. Sabe-se de pelo menos um capítulo escrito, deixado entre as cartas de
Pessoa e outros textos inéditos, que ficaram no hotel onde Sá-Carneiro se
suicidou e que se perderam (onde? como? perderam deveras? mistério…). Quanto ao
novo tratado de Freud, fica interrompido num capítulo chamado também,
precisamente, “Mundo interior”.
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Memo
Nunca começar
a escrever um livro chamado Mundo Interior.
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O
super-ego cultural
O século XIX postulou que (e sabemos hoje
que houve usos e abusos dessa teoria) o que acontece ao homem acontece também à
civilização. O indivíduo e a sociedade têm as mesmas doenças psicológicas. De
resto, diz Freud incansavelmente, a própria criança vive durante alguns anos os
mesmos processos de desenvolvimento psíquico que ocuparam a humanidade durante
milhares de anos: a ontogénese repete a filogénese. A ser assim, a pulsão de
morte que programa o aniquilamento de cada homem também deve existir na
sociedade. Freud viveu a Primeira Guerra Mundial e os primeiros meses da
Segunda; os seus livros foram ignominiosamente queimados pelos nazis na praça
pública. E Mal Estar na Civilização sai em 1930, quando os nazis
entravam no Reichstag.
Mal Estar na Civilização é um livro
corajoso. Diz que toda a civilização, que entendemos como conquista cheia de méritos,
implicou a renúncia às pulsões. Não se trata de qualquer simples marcha
triunfal do humanismo (ou outros -ismos), mas de um perigosíssimo,
violentíssimo cancelamento de energias primitivas. A História encarregou-se de
mostrar a que resultados conduziria tal desenvolvimento. De facto, “Para além
do princípio de prazer” tinha defendido que não há uma generalizada “pulsão
para a perfeição” na humanidade. Ilusão filosófica e académica, que um
Schopenhauer já denunciara.
(Freud afirma algures que leu muito
Schopenhauer; quanto a Nietzsche, confessa que evitou lê-lo, para evitar ser
contagiado, tão próximo se sentia; e quanto à literatura em geral, simplesmente
diz que ela sempre soube tudo sobre a psicanálise, avant la lettre; a um
jornalista que lhe perguntava aonde tinha ido buscar todas as suas intuições
sobre o inconsciente, Freud respondeu apontando simplesmente para um estante,
atrás dele, cheia de obras literárias).
Na verdade, não se trata só de não haver
pulsão para a perfeição em todos os homens; trata-se de evidenciar a luta entre
Eros e Tanatos. O homem / a sociedade inclui em si a vontade de destruição, a
agressividade, o sadismo. Ninguém encarna Eros sem conter uma miríade de outras
pulsões. Édipo não pode amar Jocasta sem matar Laio. E séculos de educação
impedem-nos de aceitar de bom ânimo que alguém nos diga, tout court, que
todo o ódio do mundo faz parte da nossa natureza.
Qual natureza? A subtileza freudiana
lembra, no conceito de ambivalência, que o pai também é amado. Que toda a criança
vive uma bissexualidade inicial. E que o egoísmo incestuoso infantil acaba por
ensinar o amor. A psicanálise diz o nosso plural, a nossa indefinível natureza.
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O
que se segue é especulação
“O que se segue é especulação, amiúde pura
especulação, que o leitor pode considerar ou esquecer, conforme preferir” –
assim começa o capítulo IV de “Para além do princípio de prazer”, que cito pela
última vez.
Vamos supor que toda a psicanálise
estava errada.
De alguns estudos de Freud é costume dizer
que estão literalmente errados; pelo menos em relação a “Uma recordação de
infância de Leonardo da Vinci”, que parte de uma palavra mal traduzida para um
retrato da vida psíquica do pintor, com evidente descalabro, dizem os
detractores. Mas vamos mais longe, vamos supor que tudo estava errado, da Interpretação
dos Sonhos ao Homem Moisés, da Psicopatologia da Vida Quotidiana
ao Esboço de Psicanálise. Resta saber o que é “estar errado”. Este é apenas
um dos caminhos por onde complicar a questão, apenas um. E eu postulo que sempre
houve muitas capacitações, seja isso o que for, na psicanálise.
Mesmo assim, vamos supor que tudo estava
errado, tão errado como a palavra que Freud traduziu obviamente mal. Bem,
confesso que continuaria a ler Freud com o mesmo empenho. Porque não me
interessa que os textos confirmem uma verdade anterior; interessa-me que me
levem a lugares inesperados, que me obriguem a pensar o novo. E não restam
dúvidas: os caminhos da psicanálise foram novíssimos.
Os escândalos que o digam, ainda hoje. Quando
falo da psicanálise ou simplesmente digo o nome de Freud, continuo a ouvir
fórmulas de esconjuro. E essa repulsa nunca se reduz a um mero desprezo, vaga
impaciência, alguma refutação lógica e argumentada. Não: é sempre violenta,
taxativa, furiosa, apaixonada. Pronta para ser analisada.
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Esconjuros
e mentiras
Uma ciência
do erro.
Sempre
preferi ler textos obviamente errados mas cheios de possibilidades de
pensamento – a textos certos que só repetem o que já sei.
E o que se
lê, ainda que seja errado, começa a tornar-se real, porque cada livro reinventa
o mundo.
Viver no
mundo certo inventado pelo livro errado.
O que
interessa, de facto, é algumas operações. Não mais matéria, menos matéria, mais
sumário, menos sumário. Interessa uma pequena operação de pensamento: inventar
uma pequena nova torção para a realidade.
Não
confirmar nada: surpreender tudo.
Substâncias Perigosas,
Pedro Eiras, Livrododia Editores