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Onde
se defende que a vida é sonho
Algures na Poética,
Aristóteles sugere que a tragédia permite a catarse, ou purificação, de
sentimentos opressivos. Na verdade, não sei se compreendemos Aristóteles:
porque já não vivemos na Hélade, porque não podemos assistir às estreias de
Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, porque às vezes pensamos os aristotélicos antes
de pensar Aristóteles. Quanto à catarse, correram rios de tinta, e mais
ainda depois de haver Freud, e a sublimação, e o psicodrama…
A verdade é
que ninguém pode saber muito bem de que se trata aqui: a tragédia é “imitação
de uma acção de carácter elevado (...) que, suscitando o terror e a piedade,
tem por efeito uma purificação dessas emoções”, Poética dixit. E dixit
com génio, claro.
Mas, no
fundo, pergunto-me se a tragédia, a poesia, a literatura servem tal
apaziguamento. Que senti ao ler O Rei Édipo? E Crime e Castigo? Suscitaram
em mim terror e piedade, sim, mas não sei a que posso chamar “purificação”.
Porque esse terror, essa piedade – carrego-os comigo desde o instante em que li
Sófocles e Dostoievski. Nenhum regresso a um estado purificado, um estado sonolento
original.
Freud, defendendo que o sonho é só uma perturbação
necessária do sono, um ajuste de contas com as pulsões e os dias, pressupõe esse
estado neutro, vazio, alheado, que seria a pacificação absoluta pós-literatura.
Todavia, a
crer em Calderón, a vida é sonho, não sono.
Talvez a
literatura não purifique. Talvez deixe o leitor naquele estado de maldição a
que a antropologia chama tabu. E desta vez nenhuma quarentena o pode recuperar
para uso social. Fica indelevelmente impuro.
Mas não há
que lamentá-lo. O leitor procura formas de loucura inoculáveis, é capaz de
pagar por elas, não dormir por elas – até matar por elas. Quer tornar-se capaz
de literatura, conhecer o terror, a piedade, pranto e ranger de dentes, ser
digno de ser vítima do livro. Não é pequena missão.
Escolhendo
na estante, o leitor pergunta: será este o livro que me trará o terror e a
piedade? será este o livro que me trará a morte? poderei sobreviver-lhe? E sabe
que a solução da sobrevivência tem de ser inventada de cada vez, porque a
doença inoculada é única, nunca existiu. O que ele procura não é a purificação.
É o insustentável. Quer tornar-se digno do insustentável. Só deve ler se for
capaz de viver o livro até morrer por ordem dele.
4
Pedido
…uma
tragédia que enraizasse o terror, um poema que incendiasse a piedade…
5
Medidas
anti-pedagógicas
Há ainda outro modo de dizer o mesmo.
Estou a
pensar num livro de Daniel Pennac que encontrou muitos leitores há alguns anos.
Defendia algo a que chamava, como numas novas tábuas da lei, os dez direitos do
leitor. Enumero alguns, de cor: o direito de saltar páginas, de deixar um livro
a meio. O prazer do leitor ficava salvaguardado pela liberdade
contemporaneíssima de dispor do livro como entender – podendo até abandoná-lo.
Eis como partimos o mar da literatura em duas metades e passamos pelo meio,
soberanos Moisés em busca da terra prometida.
Mas Moisés morreu sem chegar ao seu
destino.
Reivindicar
os direitos do leitor, eis a última emancipação. O escravo quebra as grilhetas.
Mas então, porquê só dez direitos? Por que não também o direito de usar os
livros como calços de mesas coxas?
Pelo
contrário, entendo que o leitor não tem direitos nenhuns. A sua única soberania
consiste em obedecer. E não é pouco. Não pode abandonar o livro, nem saltar
páginas. A leitura é monacal: inventa um claustro, regras, votos. Exige ao
leitor que morra para o mundo, que se emparede entre as páginas.
Se fizer com
o texto o que me apetecer, limito-me a cumprir o meu desejo. Não leio, só
existo tal como sou. Mas ler é deixar de existir.
Sob pretexto
de libertar o leitor, Daniel Pennac destrói-o, educando terroristas da leitura
que vão apagando as descrições em Eça, saltando as digressões em Musil,
simplificando o vocabulário em Aquilino, “corrigindo” a pontuação em Saramago.
Pelo contrário, acredito que o texto pode quase tudo, e o leitor quase nada.
Ler é obedecer. Se Daniel Pennac mata o leitor, é porque, ao dar-lhe todas as
liberdades, o condena ao tédio. Apenas vive o texto que nos contesta.
Aonde quero
chegar? Aqui: se soubermos ler, sabemos que a literatura pode tudo sobre nós.
Incluindo matar-nos. Devemos tornar-nos dignos da ameaça.
Substâncias Perigosas,
Pedro Eiras, Livrododia Editores