domingo, 5 de maio de 2013

Mesa do Canto – Uma memória de cafés

|Alexandra Malheiro


Escrevo-vos, hoje, do Café Imperial, não o do Porto, de 1936, com a águia em bronze gigante, de Henrique Moreira, encimando a porta giratória, com profusão de espelhos e prateados e um longo balcão ao fundo e o vitral Art Déco de Leon, até porque esse velho Imperial tem hoje, sobreposta à sua pujante arquitectura, a decoração pastilhada do MacDonalds em que se transformou há vários anos, com isso descaracterizando por completo o café que antes fora. Este de onde vos escrevo é, também ele, Art Déco com colunas de inspiração oriental e motivos animais, com altos-relevos e espelhos largos e encontra-se em Praga sendo um dos vários cafés praguenses a não perder. Escreveu Garrett que o viajante experimentado e culto chegando a um café, em qualquer lugar que visitasse, facilmente reconheceria onde se encontrava pelos seus usos, costumes, pelo aspecto e pela fauna que nele achasse. Fiz, pois, como Garrett e, em chegando a Praga para umas curtas férias, tratei de assentar arraiais num dos seus cafés para dele fazer a minha mesa do canto. Acomodo a meu lado “Imagens de Praga”, uma espécie de livro de viagem em bom, do irlandês John Banville, recentemente editado pela ASA. Nada como um livro e um café para nos contextualizarmos com o lugar que visitamos. A “ideia de europa” de Steiner desenha-se através do mapa das cafetarias. E eu dou por mim, uma vez mais, a resvalar para a memória pessoal dos meus cafés.

A ter de escolher o café dos meus afectos certamente não seria o portuense Imperial do qual guardo, apesar de tudo, gratas recordações de noites de queima das fitas, quando estas decorriam entre o largo da Sé e o Palácio de Cristal e, por qualquer motivo obscuro, todos e repito todos os grupos de estudantes convergiam como ponto de encontro na estátua equestre do D. Pedro mesmo defronte ao café. Assim, do Imperial e dessas noites, recordo sobretudo guerras de tremoços entre as mesas e longuíssimas, intermináveis filas à porta das casas de banho, permitindo as mais bizarras tertúlias entre os grupos de capas negras. O “meu” café é outro, magnífico por fora e por dentro, Arte Nova, do ano de 1921, antes Café Elite, mais tarde Café Majestic, na rua de Santa Catarina. É a montra mais fiel da baixa do Porto que se observa da esplanada. No seu interior tectos em baixos relevos, figuras esculpidas em gesso, espelhos de cristal debruados a madeira trabalhada, mesas de mármore, sofás e cadeiras em pele gravada e ainda ao fundo um jardim de inverno. Entrar no Majestic é apanhar um comboio a uma idade anterior, nele podemos navegar até onde nos deixar a fantasia e talvez pela sua beleza e sumptuosidade sempre foi lugar de artistas até aos dias de hoje.

Depois há os outros, os banais, aqueles cuja arquitectura não deixa saudade nem registo mas deixam nos seus assentos puídos a memória dos amigos, dos amantes, das frases e poemas incompletos. Tenho muitos desses, espalhados pela cidade. A cada um o seu tempo, o seu lugar, uma memória muito própria como um odor particular, cada um com a sua fauna e o registo de amor que deixamos impresso quando beijamos a chávena do cimbalino.