Existir-te é ser como um labirinto. Aproximar às minhas mãos o poder de criar e destruir todo um novo ser, alguém que aparece e logo se evapora, nas demoradas noites que inventas.
Existir-te é como me dar a perder, estar sempre prestes a oferecer-me como um objecto aos olhos de quem mais não quer ver do que o simples objecto em que me torno. E tudo isto acaba por se tornar num grande mar onde nos perdemos: eu, eles, e até tu, quem sabe, porque o facto de seres coloca-te a um pequeno passo de seres perdida.
Nas entrelinhas da história, cresce em mim a inexactidão desta vida. Pois se fui livre para me fazer assim, pois se foi gozo o que colhi das primeiras noites. [uma viagem para além do que sempre fui, na barca que eu sempre quis experimentar, no oceano que eu desejei depois de lido nos livros que escondo no fundo da gaveta]. Chego mesmo, quando me preparo para ser-te, a sentir uma espécie de ingratidão por mim. Pois se eu sou a beneficiária de te ter criado, pois se sou eu a razão de existires.
Na génese de tudo isto surgiu o desejo recalcado, a ausência de quem me confortasse. Demasiados anos à espera de encantamento. Despropositadas esperanças no encontro de um amor, de algo próximo disso. Nenhum abraço, nenhum olhar. E em cada noite, ao deixar cair a cabeça na almofada, a lágrima escorrida, o desejo que crescia. Ao acordar, onde nada restava que não fosse depressão, a chuva de readquiridas esperanças, frustradas logo ao sair da porta.
Na génese de tudo isto, uma menina que sonha. Uma criança que chora. Uma mão que se fecha. [e há quem espere toda a vida, sempre no mesmo círculo de ilusões, e até ao último passo para a morte, nunca se aperceba, nunca se encontre a si, no centro da arena do circo, ignorada por uma plateia vazia]. Um dia eu vi-me. Um dia eu vi-me. Senti-me. E estava vazia.
Como é incrível que o vazio possa ser tão dinâmico e venha a retirar do vácuo todos os elementos necessários à criação de um novo ser. Como é fabuloso perceber de onde viemos, ao sermos nós a mão formadora de uma nova vida, iludidos na possibilidade de sempre ter o controlo sobre o novo ser que nasce.
Eu sou a que aparece atrás da porta da casa de banho, eu sou a que cresce entre as árvores do bosque, eu sou a que se descobre num banco pútrido do jardim. Onde eles me desejam, eu sou. Quando eles me desejam, eu estou. Tudo isso em mim. Tudo isso em ti. E no entanto…
Em todo o poder há um descontrolo. Quando o poder é maior, tornando-se absoluto e absolutista, a proximidade da perda está lá, a hipótese do abismo aparece proporcionalmente. É nesse canto que eu me perco. É aí que existir-te é como me dar a perder. A construção é objecto mas o objecto fere-me a mim. Ao conquistar a antítese do sonho, volta a nós a necessidade dele, a lágrima caída na almofada suja do contacto com os cabelos, os meus cabelos que quando teus ficam marcados pelas mãos porcas daquele outro objecto que são eles.
Apercebo-me… No fundo, o objecto gera objecto. Eu não te criei. Eu apenas persegui o que pensava poder encontrar. E não mais fiz do que me enganar, pois que fui tu, e enganar-te, pois que, ainda assim, sempre fui eu. Existir-te é existir-me. Existir-me é um labirinto.