O Alemão era uma afronta. Foi presente da Cássia. Só podia. Era uma afronta com 22 centímetros de comprimento, 5 centímetros de diâmetro. Era azulão e tinha umas pérolas giratórias na ponta. Assim que abri o embrulho achei feio. Não. Primeiro nem achei nada. Fiquei foi é com muita raiva da Cássia. Me trazer um presente de grego daqueles? Onde é que iria meter aquilo, hein? Fiquei ofendida. Dois anos separada, no maior luto, duas filhas endemoniadas, sem tempo para pensar em trepar. Mas a Cássia não precisava esfregar aquela minha situação periclitante na cara, precisava? Não. Mas fez.
Trouxe o Alemão dentro de uma caixa embrulhada com papel cor de rosa com bolinhas azuis. Para combinar com ele, ué, disse, a cínica que, ao ver que eu estava avermelhando de raiva, saiu correndo sem nem me dar tempo de mandar levar aquele pedaço de mau caminho para o raio que a partisse – ao meio. As meninas ainda estavam na escola. Fiquei um tempo com aquele troção plantado na mesa de mármore branca, presente de casamento dos meus pais.
Aquela mesa havia visto de um tudo. Certeza. Quando eu tinha dois anos, rachei minha cabeça em uma das quinas e fiquei jorrando sangue no colo da babá até meu pai chegar e me levar para o pronto socorro. Nos dias de chuva, brincava de pique com meu irmão mais velho dentro de casa e era em volta dela que não deixava que ele me pegasse tão fácil. Aprendi a ler e a escrever debruçada naquela mesa. Servi comida para a Manu e para a Gabi ali. Mas nem nos sonhos a pobre mesa de mármore imaginou que iria servir de base para “a coisa”.
A empregada estava na feira e tive tempo de tomar fôlego até reagir. Escondi o Alemão no fundo do meu armário. Enchi de caixas de sapato na frente e pus o dito cujo com caixa e tudo atrás das tralhas. Sumi com o aquele caralhão quase psicodélico. Passei dias sem pensar nele. Meses. Dia dos namorados chegando e eu nada. Ninguém. Alemão me veio à cabeça. Dei risada. Imagina. Imagina. Imagina? Por que não?
Dia 12 de junho, de manhã, tava eu ligando para minha mãe. Pode ficar com as meninas? Não, não. Tem nada não. Vou pegar só um cineminha, é. Depois, vou bater papo com a Cássia. Também sozinha, mãe. Isso. Fica? Ela ficou. E eu saí. Primeiro fui ao shopping. Escolhi uma camisola de seda com rendas. A calcinha, eu comprei na Sex Shop perto de casa. Passei no supermercado e escolhi uns vinhos. Tomei banho de banheira à luz de velas, fiz jantinha afrodisíaca. Jazz na caixa, de leve.
Recebi o Alemão na mesa da sala de jantar. Dançamos ao som de Etta James. Descobrimos vários pontos em comum. Ele nem se importou quando contei que tinha duas filhas e já estava na faixa dos 40. Sabe, esse Alemão é perfeito. Viva Cássia!
O problema é que, depois que ele bateu vários bolões, acabei conhecendo o Beto. Ele não é exatamente o Alemão. Não tem aquelas pérolas giratórias e tal. Mas também é bacana. A coisa ficou séria e decidimos nos casar. Até as garotas estão adorarando a ideia. Só que fiquei preocupada. Muito preocupada, sabe? Com o Beto morando em casa, o armário nunca mais será só meu. Tenho que escolher e já tinha decido. Ia me livrar do Alemão. Seria difícil, mas preciso. O problema era como me libertar dele. Preparei noite de despedida. Desta vez, regada a champanhe e a James Brown. Uma noite inesquecível. Fato: não podia viver sem o Alemão. Não podia viver com o Alemão. Pensei em jogá-lo no lixo. Já imaginou a cara dos lixeiros quando me vissem entrando em casa? Não dava, né? Depois, em qual lixo colocá-lo? No reciclável? Até podia ser. Só que vai que alguém revirasse a lixeira. Ai...
Semanas pensando e cheguei a uma solução. Escondi o Alemão dentro de uma caixa que guardei dentro de outra caixa maior. Acontece que, desde então, passei a ter pesadelos terríveis. Acordei desesperada porque, no sonho, eu havia morrido. Pior. Depois de ser enterrada, minha mãe foi limpar meu guarda-roupa e deu de cara com o Alemão. Foi então que pensei melhor. Desmanchei com o Beto. Fiquei com o Alemão. Ele continua lá, escondido no armário. Mas tomei minhas precauções. Deixei um bilhete, just in case, que penduro nele, sempre, depois de usá-lo: “Não é nada disso que você está pensando, tá?”
Eliana Castro, 46 anos: sou jornalista, assino meu nome com caixa baixa na maior cara dura, em homenagem ao valter hugo mãe, que, recentemente, decidiu aderir às maiúsculas. Ele nem sabe, mas foi por causa dele, valter (que conheci na Flip, Brasill), que decidi buscar uma oficina literária. Sempre amei escrever. Primeiro, quis ser letrista de música. Não deu. Fiz muito jornal e revista. Agora, experimento os contos. Pra minha sorte, tive o escritor Marcelino Freire como professor.