|Manuel A. Domingos
Nos últimos três anos tem havido o ressurgir do gosto pela tipografia com
caracteres móveis. Exemplo disso são os projectos editoriais Oficina do Cego,
Pianola e 50kg. Todos nós gostamos de sentir, no papel, a pressão das letras.
Os objectos que nos chegam são preciosos: é o tempo de alguém que temos nas
mãos, o seu amor à arte. No entanto, é preciso algum cuidado. Muitas vezes são
mais apreciados os objectos do que o seu conteúdo, isto é, o texto. E na
maioria dos casos, tirando algumas excepções (como é o caso), ainda é o texto
que faz o livro.
Como sabemos, nisto da poesia e dos poetas, há sempre a tentação de situar
o poeta. O poeta, como sabemos, não é alguém indiferente ao mundo e às suas
coisas. O poeta, como sabemos, cumpre horários, trabalha, «tem frigorífico»,
dorme, come e tem necessidades fisiológicas. O poeta é alguém como nós. Carlos
Veríssimo (1974) – para além de ser uma pessoa como nós – pode ser situado como
um poeta amante da arte de tipografar. Prova disso é a sua estreia literária: os peixes melancólicos (Besouro, 2013). No
cólofon podemos ler que os peixes
melancólicos: «foram compostos manualmente, em caracteres de chumbo por rui
damasceno, cosidos manualmente por maria do céu ferreira». O livro é composto
por oito poemas e cinco fotografias originais, que têm como título o corpo ausenta-se do espaço – que podem
ser “lidas” como um outro texto ou como um complemento aos poemas que as
antecedem. Sete dos oitos poemas têm nove versos (o último poema tem onze), o
que lhes dá consistência e um certo tom elegíaco – que não advém só da
quantidade de versos, como é óbvio, mas também do ritmo impresso nos versos.
No entanto, arriscamos, ainda, situar Carlos Veríssimo como um poeta da
noite. Contudo, não devemos confundir “da noite” como sinónimo de
marginalidade, mas antes “da noite”
inicial e onírica; “da noite” antes de tudo: «e o mar ressoa na minha cabeça
como uma imensidão/de noites: Ah, as noites pétreas e pesadas/que impossíveis
nuvens não sustentam» (poema II). A
sombra de Herberto Helder paira em alguns dos versos: «homens que se decompõem
verticais/perante o choro esperançoso das mães enganadas/a quem prometeram uma
cura por trás de outras/palavras – sempre as palavras – de areia/e de vento e
de água e de fogo sobre a terra fértil» (poema III). Em alguns poemas, Carlos Veríssimo assemelha-se a um arauto
de um outro tempo. Um bom exemplo disso é o poema número V: «o fogo/esse deflagra com o rebolar dos corpos amantes/e com o
sorriso das crianças – como uma grande luz/capaz de se fazer ver e ouvir onde é
mais profundo/indolor e com uma inesperada facilidade.» (poema V). O fogo é uma ideia presente e
constante. Mas não se trata de um fogo purificador; antes esse que é destrutivo
e que apenas deixa cinza como sinal da sua passagem.
Mas Carlos Veríssimo procura sempre questionar, questionar-se: «E como pode
existir algo para além de mim? não sei/se alguma vez o chego a saber e
acredito/que só o saberei demasiado tarde.» (poema VI). É claro que, na maior parte das vezes, o questionar não origina
respostas; apenas o adensar da certeza ou da dúvida: «Sou agora produto da mais
recente invenção/do dia-a-dia que patina na engrenagem da consciência/e declino
metamorfosear o negro pela luz,/uma empreitada tão cómica, quanto insuportável»
(poema VII).
Se Carlos Veríssimo tivesse nascido dez anos antes, talvez pudesse ter
figurado na antologia Sião: «Não
tenho mais/como ir sem ser comida para os peixes melancólicos/que parecem
sorrir, com aquele sorriso meliante/de quem pensa que tem o controlo das
coisas./Felizmente estão enganados como todos//os outros//e não somos assim tão
poucos.» (poema VIII).
Carlos Veríssimo, os peixes melancólicos,
Coimbra: Besouro, 2013.