- É bom que se comece a pensar em trocar esse cadeirão!
Mr. Mouse sabe muito bem porque é que Mrs. Mouse disse aquilo. É por
causa deste gesto. Sente-se incapaz de o impedir. Sempre que se senta no velho
cadeirão de curvas macias e apetitosas, Mr. Mouse começa por contemplar as
chamas da lareira numa perfeita imobilidade. Mas em breve, negligentemente, a
sua pata direita começa a deslocar-se no braço do cadeirão, em busca desse
rasgão no tecido cor-de-rosa e de algumas palhinhas desgrenhadas. Como lutar
contra esta insidiosa volúpia? Mergulhando na palha áspera, agravando a ferida
do veludo, Mr.Mouse não procura alívio para uma simples comichão. É muito mais
sério, e ainda mais irreprimível: ao enfiar a pata no braço do cadeirão, Mr.
Mouse atinge o cúmulo do bem-estar, o ponto frágil em que a sensação de prazer
físico se torna tão pura, tão aguda que se casa com a satisfação serena da
felicidade.
Mr. Mouse não está com pressa de trocar de cadeirão. Primeiro, e ele
sabe-o bem, serão precisos anos para que um cadeirão novo perca o seu porte
afectado, a sua rigidez indigesta, que se adeque à decoração do terreiro. Nas
vigas do tecto, em cordões, estão penduradas maçãs, amoras, cogumelos, que
secam durante todo o Inverno. Sobre a terra batida do chão, um tapete tão gasto
que as franjas se desfiam, as cores dos motivos geométricos apagam-se sob o
prazer demasiadamente renovado de acariciar a espessura da lã com as suas
patas. Como imaginar a arrogância de um cadeirão novo no meio de tudo isto?
Nunca se teria a ousadia de proteger as costas de um cadeirão novo com um
paninho de algodão branco bordado com uma bonita cereja. E depois, acima de
tudo, Mr. Mouse sabe bem que o seu gesto não é inocente. Quando destrói
imperceptivelmente o seu velho cadeirão destruindo a palha do estofo, rasgando
o tecido um bocadinho mais de cada vez, Mr. Mouse sabe que obedece a um
incontrolável impulso, um pequeno refinamento perverso do seu universo
bem-comportado: é preciso brutalizar o bom para ser melhor, é preciso
precipitar o fim das coisas antes que o seu sabor nos escape. Já o terão adivinhado, Mr. Mouse
é um filósofo. Absolutamente nada estóico, mas também não completamente
epicurista. Mr. Mouse é ele mesmo, e, acreditem-me, é qualquer coisa, isto de
se deixar ir ao encontro de si próprio num cadeirão muito velho com ondas
gastas por uma doce rebentação.
Philippe Delerm, Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro, Trad.
Clotilde Simões, Livrododia Editores, 2007