Entrevista a Manuel Jorge Marmelo
|Clara
Henriques
Segura no olhar a
timidez onde se deixa acontecer quando o lá fora oferece movimento a mais. Desenha
palavras como quem dança na realidade que a todos nos abraça e a verdade é que
o encanto da sua escrita se faz de tempo. Jornalista e autor de mais de uma
dezena de romances, Manuel Jorge Marmelo conta, em entrevista à Sítio, o Porto que
traz dentro, as viagens de autocarro que agora vemos publicadas e as paragens a
que a vida o obrigou. Para ler e reler.
Foste considerado, pela Porto Editora, uma das
Personalidades Portuenses do séc. XX. Que responsabilidade acarreta esta
nomeação de personalidade do Porto?
A
inclusão no dicionário constitui um orgulho enorme, mas não acarreta responsabilidades
maiores do que aquelas que já tinha em 2001, quando fui incluído nesse
dicionário. Sinto-me responsável, isso sim, pelos meus filhos, por dar-lhes uma
casa, comida, estabilidade, e tentei, durante 23 anos, ser um bom profissional
do jornalismo. Mas não precisei de uma entrada num dicionário para estar
consciente das minhas obrigações. Comecei a trabalhar com 15 anos num gabinete
de contabilidade, entrei para o jornal Público aos 18, como estagiário, e fui
pai aos 22. Aquilo que tenha sido capaz de fazer dependeu, sempre, da
responsabilidade com que fosse capaz de crescer e aprender com quem sabia mais
do que eu.
Por falar no Porto, é inevitável associar esta
cidade ao que é o Manuel Jorge Marmelo. Nasceste e vives aqui. Que lugar tem o
Porto na tua escrita?
O Porto é
a minha casa, é onde tenho as minhas raízes, as minhas pessoas, os meus lugares
e os meus livros. Inevitavelmente, o Porto e o modo de viver dos portuenses
terá acabado por moldar a minha maneira de ser e, consequentemente, também aquilo
que escrevo. Umas vezes mais às claras, outras vezes de forma mais disfarçada,
o Porto está presente em quase todos os meus livros, é o cenário a partir do
qual partem as caravelas da imaginação que me levaram a descobrir outras
paragens, reais ou imaginadas.
Habituaste-nos, durante algum tempo, às tuas
Crónicas do Autocarro que publicavas diariamente no blogue Teatro Anatómico.
Agora é tempo de as lançar em livro, embora seja uma edição em formato
electrónico. Porque não uma edição em papel?
O motivo
é relativamente prosaico: algumas pessoas perguntavam-me, de vez em quando, por
que não publicava as crónicas, mas nunca nenhuma editora mostrou interesse
nisso. Quando resolvi equacionar a possibilidade de reunir as crónicas num
livro, ainda ponderei a possibilidade de fazer uma edição de autor tradicional,
em papel, mas, estando desempregado, pareceu-me que os custos que isso
implicaria excediam o meu orçamento (e também a minha capacidade para
rentabilizar o investimento). Optei, por isso, por fazer um livro electrónico,
que apenas implicava o custo do meu trabalho de aprender a paginar os textos e
as horas que gastei a fazê-lo.
Andar de autocarro pode ter tanto de poético como
de hilariante. Que estímulos te fizeram agarrar este tema? Como começou este
périplo das Crónicas do Autocarro?
Começou
por acaso. Quando, há três anos e meio, a empresa em que trabalhava se mudou
para a Baixa do Porto, onde é caro e difícil estacionar, optei por me deslocar
de transportes públicos para o trabalho e, desse modo, fiquei em contacto com o
mundo muito particular dos autocarros do Porto, as histórias e as personagens
que os utilizam.
Logo
desde a primeira viagem, e sem ter nada planeado, comecei a escrever pequenos
apontamentos de viagem no blogue Teatro Anatómico, sem nenhuma pretensão, como
um divertimento, ainda que, a dado passo, essa realidade se tivesse cruzado com
o romance que estava a escrever, "Uma Mentira Mil Vezes Repetida". O
livro, em que comecei a trabalhar antes do meu regresso aos autocarros, tinha
um narrador que inventava um livro falso enquanto circulava nos transportes
públicos, pelo que, a dada altura, me pareceu adequado utilizar as crónicas
como ambiente do romance. Daquelas, iniciais, que aproveitei para o romance, só
a primeira aparece agora no livro das Crónicas do Autocarro, pelo carácter
inaugural que tem.
Mas
depois de o romance estar terminado continuei a escrever esses apontamentos e
fi-lo até Outubro do ano passado, altura em que fui despedido e deixei de ter
de me deslocar para trabalhar. Creio que o fiz sobretudo como um modo de evasão
e, a partir de determinada altura, como um jogo literário que ia tecendo com os
outros passageiros sem que eles soubessem disso, mas também como forma de fixar
o modo como as pessoas comuns avaliam a realidade e reflectem em que vivemos
todos.
Estas crónicas revelaram-se um sucesso e creio que
não foi uma coisa que esperasses. Uma das pessoas que as seguia com atenção era
o Manuel António Pina. O que se poderá encontrar do Pina no escritor? E no
Jorge?
O sucesso
é muitíssimo relativo, neste caso. Sei que o Pina apreciava as crónicas,
falava-me delas quando nos encontrávamos ou falávamos ao telefone, mas, para
teres uma ideia, em cerca de um mês só foram vendidos 23 exemplares desse
"sucesso". Grande sucesso, não?
Quanto à
segunda parte da questão, nem sei muito bem o que responder. O Pina era um ser
humano irrepetível e um escritor notável. Guardo para mim, sobretudo, o seu
exemplo de humildade, humanidade, civismo, ironia e seriedade, e aquela frase
em que ele perguntava o que acharia de nós aquele que fomos quando tínhamos 20
anos. É um critério excepcional para avaliarmos aquilo em que nos transformamos
com o passar do tempo. Espero nunca me esquecer disto.
És jornalista e autor de uma dezena de romances,
entre outras coisas. Como é o teu processo criativo? A ideia, as primeiras
linhas, as personagens, o sentido da história...
O
processo é muito variado — embora exista quase sempre uma ideia inicial e pouco
definida que depois vai germinando aos poucos — e tem dependido bastante do
tempo que me restava depois das obrigações familiares e profissionais. Agora
que estou desempregado posso dispor de mais tempo, de uma forma mais regular, e
isso é um desafio enorme. Deixei de ter desculpas para errar. Se, como dizem os
meus editores, os meus livros continuarem a ter poucos leitores, vou ter, se
calhar, de me convencer que o problema é meu; dedicar-me a outra coisa,
bricolage ou bordados, ou então escrever
sem expectativas de publicar e de ser lido.
Saiu este mês a 10ª edição do teu romance “As
mulheres deviam vir com livro de instruções”. O que é que não percebes nas
mulheres que gostarias de ver explicado num livro de instruções?
É uma
pergunta antiga, para a qual tenho uma resposta sempre pronta: o autor da frase
do título é o senhor Madureira, o personagem do livro, não sou eu. Não que as
mulheres não sejam, também para mim, e passe a generalização, uma entidade
colectiva misteriosa e uma maravilhosa perplexidade. Mas o encanto feminino
também reside aí, no que não se percebe e se vai desocultando aos poucos, às
vezes a duras penas. Pela minha parte, portanto, dispenso o livro de
instruções. Mas creio que esse romance, com os seus defeitos e virtudes, vai um
pouco para além do carácter apelativo do título (que, bem sei, me garantiu
leitores que nunca antes tinha tido e que não voltei a ter depois). O livro é
também um retrato de uma época e, se calhar, parte da explicação para as
dificuldades que hoje vivemos.
Tens uma crónica muito bonita - a “Morte”, que
terminas dizendo que não sabes “onde escondes os teus cadáveres”. O que trazes
dentro, neste preciso momento da tua vida?
Neste
momento trago dentro a necessidade de encontrar uma nova forma de vida, de
ganhar a vida tão honestamente como até aqui. Gostava que a solução pudesse
passar pela literatura, mas, neste momento, essa é uma possibilidade tão
quimérica e improvável que, na verdade, começo a ponderar, isso sim, que outras
coisas posso ser capaz de fazer para além do jornalismo (do qual me sinto, hoje,
bastante órfão, apesar das muitas coisas que nele aprendi; na verdade, aprendi
quase tudo no jornalismo, onde tive a sorte de entrar aos 18 anos e de ter tido
como mestres pessoas que tinham uma ideia do que podia e devia ser o
jornalismo, e uma ética; devo-lhes quase tudo).
E também
trago dentro a satisfação de ver os meus filhos a transformarem-se em pessoas
muito bonitas e generosas, bem formadas e responsáveis. Tenho a certeza de que
vão ser pessoas muito melhores do que eu tenho sido. Isto é o melhor presente
que a vida me deu. E já ninguém mo tira.