|Manuel Jorge Marmelo
O que ireis ler a seguir é a narração consternada de uma tragédia. Privai-vos, pois, de risinhos e risotas e tratai de seguir o caso com atenção e tão compungidos como a gravidade dele impõe.
Está feito o aviso, agora precatai-vos.
A mulher estava ainda visivelmente abalada ao fim da tarde, apesar de o acidente ter ocorrido de manhã. Ora o contava ao telemóvel, ora o dizia de viva voz a quem se sentasse ao seu lado no autocarro. Mas era, digamos assim, como se ainda estivesse a ver as coisas a acontecerem diante dos próprios olhos. E não era para menos.
Tudo se pode resumir a uma frase — como ela fez quando disse "ainda hoje vi uma pessoa ser esmagada na cabeça" — ou ser narrado com os pormenores que igualmente compõem um caso assim. A saber: ia ela, a mulher, caminhado ao lado de uma outra, a qual daí a nada estava no chão, morta de todo, "com a cabecinha esmagada" por um camião do lixo que ia esvaziar os contentores da lota. "O homem ainda apitou, mas não a viu lá de cima. Dá logo na televisão e amanhã vem no jornal".
A mulher do autocarro, porém, salvou-se da tragédia, e não podia ser de outro modo — ou não a teríamos ali a contar o caso tal como ele sucedeu. A avaliar pelo que a ouvi dizer, iam as duas a par, ela e a falecida, mas quis o destino que uma parasse para acender um cigarro e a outra não e, imediatamente, que a fumadora se salvasse e que a saudável, supondo que o era, viesse a ser tão brutalmente colhida pela morte travestida de camião do lixo.
É, afinal, como eu sempre digo: não andará longe o dia em que se farão as contas a todas as almas que se salvaram graças ao nocivo tabaco e, nesse dia, os fumadores contentar-se-ão por tê-lo sido. Tal como aquela aventurada mulher, este vosso criado pára muitas vezes na rua para acender o seu fuminho e, até à data, encontra-se perfeitamente bem de saúde.