domingo, 3 de abril de 2011

A cidade dorme


|Luiz Ruffato

Xuxa despertou, golpes de cassetete na cabeça no tronco nos membros, assustado o grupo espalhou-se sacos-de-aniagem pendurados dos ombros Ai ai caralho! Quê isso porra?! o Zé imaginou interpor-se ao peeme, latiu preventivo, um coturno arremessou-o contra as grades do parque
        
O velho despertou, os tiros nasciam da televisão ou de lá de-fora? Os meninos sempre Aparece não, pai, pode dar problema mas o que ainda a perder? Nervos abalados nem diazepan remedeia. Da ninhada de sete, quatro tombaram à desgraça, incluindo uma filha-mulher. E a esposa, coitada, de desgosto há muito
        
O tenente despertou Caralho, Ivo, pra onde Quieto aí, Valtinho, agora é com nós, anunciou, fedendo a suor, a cara branca do soldado Castilho. E a viatura, engalfinhada com a treva, seguiu rumo a outras cinco, que, amotinadas, aguardavam ansiosas entre galpões abandonados. Em pânico, o Tenente Válter.


Gaúcho despertou madrugada solta buscando um canto para mijar. Do carro bacana desceu Xuxa, saltos altos merengando nas irregularidades do asfalto, Tcha-au! Ao voltar, da veia roxa do antebraço de Xuxa merejava sangue. Balangou a cabeça, riu dentes podres.

         Zegê despertou, luz de lanterna, É esse?, tremedeira, o cano da ponto 40 analisa o imberbe do rosto, gorda barata passeia a parede imunda, vozes sussurram o silêncio escuro da rua, Merda! Cadê a bicha?, afastaram-se e um – não o da lanterna – volveu e, mirando entre os olhos,

         O velho arrastou pernas elefânticas à janela. Cevava o neto, José Geraldo. Arredio, habitava um barraquinho na rua de trás, mancomunado com o irmão, que, esse, entretanto... vestia roupa de mulher, cabelama comprida pintada, peito... desaparecia dias... uma desconsolação... José Geraldo não: inteligente, cabeça-boa, da paz

         O tenente arrastou pensamentos, pequenas florzinhas roxas despencando da árvore sob onde demorava-se rendido: os dois recrutas em guarda ouviam rap. Válter imagina a irmã, cujos filhos carregara, quantas vezes!, para ver jogo no Parque Antártica e no Pacaembu, e o pai, diabético, coração fraco, só

         O spot devassou perto das cinco horas, É ele!, o travesti na calçada do Trianon, as cinco radiopatrulhas cercaram o malcheiroso ninho de mendigos e cachorros. Quatro soldados acordaram o bando a pontapés e cacetadas. Os pulsos magros de Xuxa amordaçaram-nos, por trás, com as algemas – luvas açoitaram o corpo agora mais pequeno – e os joelhos esfolaram-se no chiqueirinho do camburão, Vamos dar uma volta, anda! As mechas tingidas de louro vislumbraram as sombras trêmulas de árvores centenárias e uma luz coada anunciava o vagido irrequieto do vira-lata.

         O velho, pela veneziana, devassou o baldio da rua, tornou, desligou a televisão, sentou-se à poltrona puída, enfiou a mão na gaveta da mesinha, pinçou uma cartela de propranolol, levou um comprimido à boca, tomou da caneca com escudo do Corinthians depositada sobre o tampo, atentou para a água descendo, com dificuldade, garganta abaixo, suspirou. Sabia da morte, e tinha medo.    



Publicado na revista Sítio 4, abril 2008