|Luiz Ruffato
Xuxa despertou, golpes de cassetete na
cabeça no tronco nos membros, assustado o grupo espalhou-se sacos-de-aniagem
pendurados dos ombros Ai ai caralho! Quê
isso porra?! o Zé imaginou interpor-se ao peeme, latiu preventivo, um coturno
arremessou-o contra as grades do parque
O velho despertou, os tiros nasciam da
televisão ou de lá de-fora? Os meninos sempre Aparece não, pai, pode dar problema mas o que ainda a perder? Nervos abalados
nem diazepan remedeia. Da ninhada de sete, quatro tombaram à desgraça,
incluindo uma filha-mulher. E a esposa, coitada, de desgosto há muito
O tenente despertou Caralho, Ivo, pra onde Quieto aí, Valtinho, agora é com nós, anunciou,
fedendo a suor, a cara branca do soldado Castilho. E a
viatura, engalfinhada com a treva, seguiu rumo
a outras cinco, que, amotinadas, aguardavam
ansiosas entre galpões abandonados. Em pânico, o Tenente Válter.
Gaúcho despertou madrugada solta buscando
um canto para mijar. Do carro bacana desceu Xuxa, saltos altos merengando nas
irregularidades do asfalto, Tcha-au! Ao
voltar, da veia roxa do antebraço de Xuxa merejava sangue. Balangou a cabeça, riu
dentes podres.
Zegê
despertou, luz de lanterna, É esse?,
tremedeira, o cano da ponto 40 analisa o imberbe do rosto, gorda barata passeia
a parede imunda, vozes sussurram o silêncio escuro da rua, Merda! Cadê a bicha?, afastaram-se e um – não o da lanterna –
volveu e, mirando entre os olhos,
O velho
arrastou pernas elefânticas à janela. Cevava o neto, José Geraldo. Arredio, habitava
um barraquinho na rua de trás, mancomunado com o irmão, que, esse,
entretanto... vestia roupa de mulher, cabelama comprida pintada, peito...
desaparecia dias... uma desconsolação... José Geraldo não: inteligente,
cabeça-boa, da paz
O
tenente arrastou pensamentos, pequenas florzinhas roxas despencando da árvore sob
onde demorava-se rendido: os dois recrutas em guarda ouviam rap. Válter imagina
a irmã, cujos filhos carregara, quantas vezes!, para ver jogo no Parque
Antártica e no Pacaembu, e o pai, diabético, coração fraco, só
O spot
devassou perto das cinco horas, É ele!,
o travesti na calçada do Trianon, as cinco radiopatrulhas cercaram o
malcheiroso ninho de mendigos e cachorros. Quatro soldados acordaram o bando a pontapés
e cacetadas. Os pulsos magros de Xuxa amordaçaram-nos, por trás, com as algemas
– luvas açoitaram o corpo agora mais pequeno – e os joelhos esfolaram-se no chiqueirinho
do camburão, Vamos dar uma volta, anda!
As mechas tingidas de louro vislumbraram as sombras trêmulas de árvores
centenárias e uma luz coada anunciava o vagido irrequieto do vira-lata.
O velho,
pela veneziana, devassou o baldio da rua, tornou, desligou a televisão,
sentou-se à poltrona puída, enfiou a mão na gaveta da mesinha, pinçou uma
cartela de propranolol, levou um comprimido à boca, tomou da caneca com escudo
do Corinthians depositada sobre o tampo, atentou para a água descendo, com
dificuldade, garganta abaixo, suspirou. Sabia da morte, e tinha medo.
Publicado na revista Sítio 4, abril 2008