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quinta-feira, 3 de março de 2011

4 poemas de Luís Maffei


|Luís Maffei

CONTRARIEDADE

Cruel, frenético e exigente é o
tempo,
poeta,
tu não.
Tu és morto e ele
a mim
arma de armas e bagagens e
instrumentos de fuga rumo
(a morte é depois,
é outra coisa)
ao que dura
pouco
dura
menos que o tempo
próprio fosse
justo fosse e ainda à mão
de um dedo à mão
da parte nova que
do tempo
escorre para o mais longe do
tempo tempo fosse.

E a vocação, poeta,
se a morte é depois, se
é outra coisa
é um tempo vivo e tão vivo
que
a mim
sorve de escombros
de coisa nova
beira uma finda
antes da
finda antes do
tempo antes do
abismo.


*

FLORAL

de saudade, diz
ela, agora você fala
de saudade?
não eu, que não a sinto
apenas
talvez
do Roberto, do Zanata e da
minha mãe, mas essa,
a mãe, cumprimos o que era
para ser; saudade? ela
ainda, e sinto que
só ganho o que já
tenho, certa voz que se me evade uma
semana mas a escuto, algum cheiro a
vento ou rímel que
de longe
torna-se mais cheiro quando o
sinto quando o
saiba.

mas ao longe, se
saudade, é tempo de futuro ou coisa
estranha, amigo em foto, amor em ignota
terra, um velho corpo que em
si mesmo insista aos poucos
com a lâmina
na mão
de outra pessoa.  

*


ORIENTAÇÃO DOS GATOS

a Beth e Bethina, gatas

para medir a felicidade de um gato
cortázar
temo
não diz nada. basta
se eu digo
uma aterrissagem,
plano em contrário sabor
ao colapso: é
um gato
o poema nunca
que ensina o caimento,
simétrica mostra ao
saber da planagem, ato
impoluto e inumano
de cair de

*


TELEFUNKEN

Foi
(sei de ouvir dizer mas posso bem aquelas
sombras aquele dia)
num televisor Telefunken que Marcelo viu
sozinho
o jogo de terceiro lugar do Mundial de
1978, Brasil 2 Itália 1, e Marcelo
como eu
pensa até hoje que poucas criaturas trazem
curvas como o chute do Nelinho.
Não havia sol, final tampouco
havia, e Marcelo
aos dez anos e pouco
alcança o princípio de uma doméstica
tragédia, dele,
nossa: a terra é sempre
outra, a do herói, e o branco e negro do
televisor Telefunken segue
apenas
com a idêntica criança de dez anos,
com as sombras de uma tarde o mais
escura, com um dia que
de errado
não termina.




 Publicado na revista Sítio 5, dezembro 2009.