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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Marta Tchizúri


|Paulo Bandeira Faria


Na altura já escrevia e ela dizia-me: Não percas tempo com isso. Então, dava-me a mão e levava-me do fim até ao início. Conseguia-o num espaço de tempo que nunca lhe bastava, mas a mim me deixava exausto, lavado em suor e a tremer. Depois descíamos até à rua e íamos a uma esplanada frente ao mar beber uma cerveja atrás de outra e comer marisco. Aos garotos que se aproximavam, ela enxotava com palavras que nunca entendi. As águas espalhavam destroços pela praia e as palmeiras estavam pintadas de branco até meio, creio eu que para não subirem os bichos. Não sei. Nunca entendi isto – eu estava aqui apenas de passagem.
O dono da empresa tinha-me dito: Se fores até lá tratar da barragem, sobes mais depressa que os outros. Aquilo é esquisito, mas tu tens cuidado, não vás para a cama sem protecção e vais ver que voltas inteiro. Foi isso que disse. E acrescentou: Para mais, vamos pagar-te em dólares e ali és um rei. Que te parece?
Pareceu-me bem.

Ao início nem gostei, havia muita miséria, muita corrupção, muitos roubos, muitas armas, muito calor, muitas baratas, muitos dias sem água num prédio que teria sido bom em tempos, mas que agora não tinha elevador – e o apartamento da empresa ficava num sétimo andar (mas isso o patrão não me disse). Enfim, muito de tudo.
Mesmo assim, gostava de ir para a varanda à noite escrever cartas e apontar coisas sobre o que me tinha sucedido durante o dia. Um dia conheci Marta e quando ela, por fim, me viu escrevinhar coisas, perguntou-me porque o fazia. Como não sabia o que dizer, respondi-lhe que o fazia desde o início. No final, quando fosse embora, teria um registo. E ri-me. Ela riu-se também e disse: Escreve ao contrário. Não percebi e Marta repetiu: A vida anda para a frente, mas a gente passa a vida a andar para trás. Escreve isso.
Foi mais ou menos isso que disse, lá no seu português difícil. Assim ficou a nossa história: do fim para o início. O início foi que, meia hora depois de a ter conhecido, já estávamos na cama (com protecção, como me tinha dito o chefe). Mas quanto mais os nossos encontros se iam repetindo, menos eu a conhecia. Ia e vinha quando lhe apetecia, deitava-me, usava-me o suficiente para querer mais, repetia-me e, por fim, dizia que queria ir a um bom restaurante. Um dia chegou e deixou-me uma máscara. A partir daí, nunca mais a vi. Perguntei por ela a conhecidos, repetindo o seu nome até saber pronunciá-lo sem hesitação: Marta Tchizúri. Uns diziam que não sabiam dela, outros riam-se. Então, um dia, um rapaz que tinha estudado em Aveiro e tinha família na Lunda, disse-me que estranhava o nome de Marta porque Tchizúri queria dizer sombra.
Lamento que mo tenha dito. Bebo cada vez mais. Cada vez mais sinto a sua falta. Passei um mês em Lisboa, namorei lá, mas não gostei. Marta tinha-se transformado numa doença, num vício. Disse ao patrão que não me importava de voltar e ele achou bem. Cá estou de novo, procurando Marta de novo. Do fim para o início.
Sim, soube o que era feito dela. Se dantes, antes do mês de descanso, nada sabia, agora caiu-me em cima uma catadupa de informações. Veio do que aqui chamam As terras do fim do mundo. Para a desgraça, não há barragens que valham: ela, e muitos outros, fugiam à miséria e à guerra. Logo que cá chegou, juntou-se a um militar das FAA e ele fez tudo por ela. Humilhou-se ao ponto de ir pedir a um amigo, que trabalhava num restaurante de luxo, as sobras para dar a Marta um esplêndido jantar. Ela comeu o que ele levou em marmitas, mas não perdeu o contacto com o rapaz que trabalhava no restaurante: uma semana depois, era com ele que andava. Ainda o militar das FAA não tinha recuperado da última bebedeira pelo desgosto de amor, já ela trocava o empregado de mesa pelo cozinheiro. A confusão foi monumental, deu azo a uma luta à facada e o empregado foi despedido, porque precisavam mais do cozinheiro.
Este não estragou o corpo bonito de Marta com os acepipes. O corpo de Marta era o seu único, e perfeito, investimento. A única forma de se manter à superfície. Mas Marta Tchizúri não queria continuar à sombra do mundo que comia do outro lado das paredes da cozinha. Não queria comer entre tachos e panelas e gente suada olhando-lhe para o decote e para as pernas.
Eu tinha de jantar ali todas as terças-feiras com um técnico das obras e outro do Ministério. Falávamos sobre a barragem, especificávamos os problemas e encontrávamos a soluções antes da sobremesa. Isto é: em cima do joelho. Mas a coisa lá andava e eu estava contente porque a barragem iria ser importante para a região. Foi então que, uma noite, ao sairmos, vi Marta despedir-se do cozinheiro. Este apalpou-a à descrição enquanto nós olhávamos com inveja. O cozinheiro entrou e ela veio para o nosso lado, junto à rua, como se estivesse à espera de que passasse um táxi. Eu despedi-me dos dois funcionários e ofereci-lhe boleia. Meia hora depois estávamos na cama.
Nunca mais voltei àquele restaurante. Quando o disse aos meus dois amigos – creio que posso tratá-los assim – eles riram-se, primeiro, e escolheram outro local para os jantares das terças. Diziam que não acreditavam que o cozinheiro me envenenasse, mas tinham a certeza de que cuspiria na nossa travessa e não queriam correr esse risco – e riram-se mais ainda. Depois, mais sérios, aconselharam-me a ter cuidado, o homem, despeitado por ser trocado por um branco, poderia querer vingar-se e não seria difícil, pelo preço de umas sobras, arranjar um garoto capaz de me dar uma facada.
Do fim para o início. Parece ter pouca lógica e nem sei porque o repito. Talvez porque repita em mim o sentimento de perda de Marta. Talvez porque esteja na mesma varanda. Talvez porque a minha namorada de Lisboa não me tenha curado dela. Talvez porque o que agora me contaram justifique o seu comportamento. Ela tenta sobreviver. Já na altura era assim: vinha, dava-me o que tinha para dar, exigia-me o que eu não lhe conseguia dar – já que fumo muito e não faço desporto – e saíamos para comer. Raramente dormia comigo, porque dizia que tinha cuidar da sua mãezinha – mas agora sei que era mentira: veio sozinha. Nem sei onde vivia: partia de noite, como uma sombra, uma sombra desaparecendo debaixo das sombras que esta lua enorme de África projecta em plena noite nos passeios. Eu ia escrevinhar alguma coisa, pensando que ela teria vergonha do sítio em que vivia, pensando que ela não queria ligar-se demasiado, talvez porque julgasse eu ser capaz de deixá-la de um dia para o outro e partir, fosse para Portugal, fosse para uma noiva branca. Mas estava enganada: eu sentia a sua falta, sentia o seu cheiro pela casa. Imaginava-me já a trabalhar ali, não meses, mas alguns anos. E ria-me sozinho, imaginando chegar a Portugal com um filho mulatinho. Depois pensava que ela não era mulher para mim, não sabia falar, só pensava em cama e comida, do que falaria com ela o engenheiro?
Não sei do que fala agora com o belga com quem anda. Só sei que o homem tem uma grande calva, mas muito poder, pele muito rosada e negócios muito turvos com muitos amigos das altas esferas – de novo demasiadas coisas. Volto ao início: muito de tudo. E olho para a máscara.
Não faço a mínima ideia porque ma deu. Não encontro nesse gesto explicação para a despedida. Mostrei-a aos meus dois amigos, julgando que podiam dizer-me o seu significado, mas eles disseram que se compra em qualquer lado por um punhado de kuanzas, não é antiga, nem especial. Uma coisa banal. Mas é uma máscara e eu continuo a dar voltas ao assunto.
Não percebo nada de antropologia, ou etnologia, ou o diabo, mas sei que a máscara tem a ver com segredo, disfarce, coisas assim. Terá sido a vida de Marta comigo uma máscara? Se se tivesse apaixonado por um homem de quem tivesse agora filhos, poderia pensar que era ela e comigo largara a máscara. Mas se está com o sacana do belga, desde quando agora é mais ela? Quanto a mim, a máscara dela agora será enorme, não?
Não consigo dormir pensando no que poderá estar a fazer com ele. Não consigo trabalhar bem e tenho andado às voltas do chalé em que vive o filho da mãe do belga. Ao gajo, só lhe desejo que apanhe uma doença venérea e um paludismo que o meta na cama para sempre. Estou capaz de ir a um bruxo (há-os aqui muito bons) mandar-lhe um feitiço que lhe dê cabo do coiro, mas tenho medo porque o gajo pode pedir a outro que envie o feitiço a quem o pediu e eu acabo pior do que estou.
Ocorreu-me até ir falar com o militar das FAA, o empregado de mesa e o cozinheiro, e pagarmos ao tal bruxo. Se o mal viesse para trás, seria disperso por quatro, eu, em vez de morrer, apanhava apenas um paludismo, uma indisposição, uma diarreia. Eles são mais pobres, aguentariam com a parte de leão; eu, como tenho mais dinheiro, pagaria a outro bruxo para me proteger. Custa-me ser tão cínico, mas não aguento isto sozinho, esta maldita obsessão. Ela é tão grande que era capaz de pagar uma boa mão cheia de dólares para que um garoto esfaqueasse o belga do catano, mas ele tem amigos influentes e o garoto depressa me denunciaria. Portanto, uma vez mais, seria eu a ficar com a vida desgraçada.
Não sei o que faça; só sei que ando com a sombra de Marta desde que me levanto até que, a custo, adormeço. Se acordo durante a noite, penso nela e fico completamente desperto. Ouço os mosquitos, sinto o calor, sinto a solidão, sinto pena de estar tão longe de casa e tê-la conhecido, sinto de tudo um pouco e, como já disse, tanto tudo já me farta. Ando prejudicado da vida, é isso, agora chego a algum lado e, mal abro a boca, sai-me logo o termo prejudicado. Parece que me persegue – nem sei como me escapou até agora nestas linhas.
Amanhã vêm buscar-me às sete e já é hoje porque são quatro: estou meio bêbedo, fumei meio maço, a minha mão direita descobriu-me três vezes impotente, a minha alma mais negra que a linda pele de Marta, e eu aqui a martirizar-me do fim até ao início, procurando ignorar os olhos fixos da máscara, prejudicando-me no meu trabalho, enfim, uma sombra de mim próprio.
Dizem que a paixão dura não sei quantos meses. Que é um processo químico. Não sei se resisto. Daria um ano de vida para falar com Marta e perguntar-lhe porque me deixou, se não gostava de mim nem um bocadinho, se quer voltar, se o filho da puta do belga é bom na cama, até que ponto eu era pior do que os anteriores, se alguma vez a satisfiz, o que queria dizer com isso de me deixar a máscara, se me deixou também algum feitiço para prejudicar-me desta maneira, porque se tornou numa sombra maior que o seu nome na minha vida, se vai parar só quando andar aos pinotes com um ministro, por que preço posso comprá-la, eu sei lá, só queria que viesse e se sentasse à minha frente, subisse o vestido, abrisse o decote, e me beijasse como ela fazia, empurrando-me para trás, possuindo-me, possuindo-me como ainda hoje faz. Só queria dizer-lhe que, desde que me deixou, a minha vida não cessa de andar para trás, pelo que de mim há de branco já sobem os bichos, quebram-se em mim todas as máscaras, estou uma sombra do homem ambicioso que em tempos fui e tudo o que faço me prejudica como profissional. Que não estou no fim, estou no limite, e quero voltar ao início para que, desta vez, lhe possa dar tudo o que ela deseje.
Outras vezes sinto tanta raiva por estar sempre a pensar nela, tanto ódio por me ter usado como um simples degrau, tanto despeito por me ter trocado, sem nenhum remorso, por outro, que tenho vontade de a mandar raptar e…
É melhor nem continuar: tudo o que pudesse dizer a partir de agora podia ser perigoso para mim, não vá suceder alguma coisa, prejudicado já estou o suficiente. Vou dormir. Está uma lua enorme a reflectir-se na baía. Esta maldita terra é maravilhosa. Enfeitiça.

Hoje vi Marta. Todas as vezes que ando pela rua e vejo umas pernas bonitas julgo ver Marta. É uma sombra constante ao meu lado, mas hoje tornou-se real, com ou sem máscara, e fui eu quem saiu mais prejudicado do encontro.
Foi como no início: fez de conta que esperava um táxi. A situação pareceu-me um bom indício e quis levá-la até ao fim, por uma vez ao contrário do que nos aconteceu anteriormente. Fui ter com ela e vi-me reflectido nos seus óculos escuros. Vi-me a tremer enquanto lhe perguntava: Porque me deixaste uma máscara? E ela respondeu: Era um presente, foste bom para mim. E eu atirei-lhe: E agora também tens quem seja bom para ti? Levantou um braço e fez sinal a um táxi para que parasse. Puta que os pariu: quando precisamos deles, nunca aparecem; e agora, que precisava que não aparecesse nenhum, já estava a parar um maldito Mercedes. Segurei-lhe o braço, talvez com mais força do que o necessário, e ela procurou libertar-se de tal modo que o taxista, que queria o dinheiro da corrida, perguntou lá de dentro se senhora queria ajuda. Ela disse que não e eu soltei-a. Mas disse-lhe: Não te vás já embora… Queria falar contigo. Não sei se houve pena no seu olhar, porque os óculos escuros eram a máscara na qual eu reflectia a minha tristeza. Só sei que disse devagar: Não tem necessidade. E abriu a porta. Meu pai vinha comigo. Deram-lhe um tiro no pé e ficou lá sozinho na chana. Eu tive de vir, entendeu agora? Eu tive de vir com quem deu tiro no pé do meu pai e fui sua mulher. Entendeu agora? 
O táxi partiu sem que conseguisse responder-lhe. O taxista gritou: Vai embora, branco! Como, se me tinham dado um tiro no pé?


Publicado na revista Sítio 5, dezembro 2009