|Paulo Bandeira Faria
Na altura já escrevia e ela
dizia-me: Não percas tempo com isso.
Então, dava-me a mão e levava-me do fim até ao início. Conseguia-o num espaço
de tempo que nunca lhe bastava, mas a mim me deixava exausto, lavado em suor e
a tremer. Depois descíamos até à rua e íamos a uma esplanada frente ao mar
beber uma cerveja atrás de outra e comer marisco. Aos garotos que se
aproximavam, ela enxotava com palavras que nunca entendi. As águas espalhavam
destroços pela praia e as palmeiras estavam pintadas de branco até meio, creio
eu que para não subirem os bichos. Não sei. Nunca entendi isto – eu estava aqui
apenas de passagem.
O dono da empresa tinha-me dito: Se fores até lá tratar da barragem, sobes
mais depressa que os outros. Aquilo é esquisito, mas tu tens cuidado, não vás
para a cama sem protecção e vais ver que voltas inteiro. Foi isso que
disse. E acrescentou: Para mais, vamos
pagar-te em dólares e ali és um rei. Que te parece?
Pareceu-me bem.
Ao início nem gostei, havia muita
miséria, muita corrupção, muitos roubos, muitas armas, muito calor, muitas
baratas, muitos dias sem água num prédio que teria sido bom em tempos, mas que
agora não tinha elevador – e o apartamento da empresa ficava num sétimo andar
(mas isso o patrão não me disse). Enfim, muito de tudo.
Mesmo assim, gostava de ir para a
varanda à noite escrever cartas e apontar coisas sobre o que me tinha sucedido
durante o dia. Um dia conheci Marta e quando ela, por fim, me viu escrevinhar
coisas, perguntou-me porque o fazia. Como não sabia o que dizer, respondi-lhe
que o fazia desde o início. No final, quando fosse embora, teria um registo. E
ri-me. Ela riu-se também e disse: Escreve
ao contrário. Não percebi e Marta repetiu: A vida anda para a frente, mas a gente passa a vida a andar para trás.
Escreve isso.
Foi mais ou menos isso que disse,
lá no seu português difícil. Assim ficou a nossa história: do fim para o
início. O início foi que, meia hora depois de a ter conhecido, já estávamos na
cama (com protecção, como me tinha dito o chefe). Mas quanto mais os nossos
encontros se iam repetindo, menos eu a conhecia. Ia e vinha quando lhe
apetecia, deitava-me, usava-me o suficiente para querer mais, repetia-me e, por
fim, dizia que queria ir a um bom restaurante. Um dia chegou e deixou-me uma
máscara. A partir daí, nunca mais a vi. Perguntei por ela a conhecidos,
repetindo o seu nome até saber pronunciá-lo sem hesitação: Marta Tchizúri. Uns
diziam que não sabiam dela, outros riam-se. Então, um dia, um rapaz que tinha
estudado em Aveiro e tinha família na Lunda, disse-me que estranhava o nome de
Marta porque Tchizúri queria dizer sombra.
Lamento que mo tenha dito. Bebo
cada vez mais. Cada vez mais sinto a sua falta. Passei um mês em Lisboa,
namorei lá, mas não gostei. Marta tinha-se transformado numa doença, num vício.
Disse ao patrão que não me importava de voltar e ele achou bem. Cá estou de
novo, procurando Marta de novo. Do fim para o início.
Sim, soube o que era feito dela.
Se dantes, antes do mês de descanso, nada sabia, agora caiu-me em cima uma
catadupa de informações. Veio do que aqui chamam As terras do fim do mundo. Para a desgraça, não há barragens que
valham: ela, e muitos outros, fugiam à miséria e à guerra. Logo que cá chegou,
juntou-se a um militar das FAA e ele fez tudo por ela. Humilhou-se ao ponto de
ir pedir a um amigo, que trabalhava num restaurante de luxo, as sobras para dar
a Marta um esplêndido jantar. Ela comeu o que ele levou em marmitas, mas não
perdeu o contacto com o rapaz que trabalhava no restaurante: uma semana depois,
era com ele que andava. Ainda o militar das FAA não tinha recuperado da última
bebedeira pelo desgosto de amor, já ela trocava o empregado de mesa pelo
cozinheiro. A confusão foi monumental, deu azo a uma luta à facada e o empregado
foi despedido, porque precisavam mais do cozinheiro.
Este não estragou o corpo bonito
de Marta com os acepipes. O corpo de Marta era o seu único, e perfeito,
investimento. A única forma de se manter à superfície. Mas Marta Tchizúri não
queria continuar à sombra do mundo que comia do outro lado das paredes da
cozinha. Não queria comer entre tachos e panelas e gente suada olhando-lhe para
o decote e para as pernas.
Eu tinha de jantar ali todas as
terças-feiras com um técnico das obras e outro do Ministério. Falávamos sobre a
barragem, especificávamos os problemas e encontrávamos a soluções antes da
sobremesa. Isto é: em cima do joelho. Mas a coisa lá andava e eu estava
contente porque a barragem iria ser importante para a região. Foi então que,
uma noite, ao sairmos, vi Marta despedir-se do cozinheiro. Este apalpou-a à
descrição enquanto nós olhávamos com inveja. O cozinheiro entrou e ela veio
para o nosso lado, junto à rua, como se estivesse à espera de que passasse um
táxi. Eu despedi-me dos dois funcionários e ofereci-lhe boleia. Meia hora
depois estávamos na cama.
Nunca mais voltei àquele
restaurante. Quando o disse aos meus dois amigos – creio que posso tratá-los
assim – eles riram-se, primeiro, e escolheram outro local para os jantares das
terças. Diziam que não acreditavam que o cozinheiro me envenenasse, mas tinham
a certeza de que cuspiria na nossa travessa e não queriam correr esse risco – e
riram-se mais ainda. Depois, mais sérios, aconselharam-me a ter cuidado, o
homem, despeitado por ser trocado por um branco, poderia querer vingar-se e não
seria difícil, pelo preço de umas sobras, arranjar um garoto capaz de me dar
uma facada.
Do fim para o início. Parece ter
pouca lógica e nem sei porque o repito. Talvez porque repita em mim o
sentimento de perda de Marta. Talvez porque esteja na mesma varanda. Talvez
porque a minha namorada de Lisboa não me tenha curado dela. Talvez porque o que
agora me contaram justifique o seu comportamento. Ela tenta sobreviver. Já na
altura era assim: vinha, dava-me o que tinha para dar, exigia-me o que eu não
lhe conseguia dar – já que fumo muito e não faço desporto – e saíamos para
comer. Raramente dormia comigo, porque dizia que tinha cuidar da sua mãezinha –
mas agora sei que era mentira: veio sozinha. Nem sei onde vivia: partia de
noite, como uma sombra, uma sombra desaparecendo debaixo das sombras que esta
lua enorme de África projecta em plena noite nos passeios. Eu ia escrevinhar
alguma coisa, pensando que ela teria vergonha do sítio em que vivia, pensando
que ela não queria ligar-se demasiado, talvez porque julgasse eu ser capaz de
deixá-la de um dia para o outro e partir, fosse para Portugal, fosse para uma
noiva branca. Mas estava enganada: eu sentia a sua falta, sentia o seu cheiro
pela casa. Imaginava-me já a trabalhar ali, não meses, mas alguns anos. E
ria-me sozinho, imaginando chegar a Portugal com um filho mulatinho. Depois
pensava que ela não era mulher para mim, não sabia falar, só pensava em cama e
comida, do que falaria com ela o engenheiro?
Não sei do que fala agora com o
belga com quem anda. Só sei que o homem tem uma grande calva, mas muito poder,
pele muito rosada e negócios muito turvos com muitos amigos das altas esferas –
de novo demasiadas coisas. Volto ao início: muito de tudo. E olho para a máscara.
Não faço a mínima ideia porque ma
deu. Não encontro nesse gesto explicação para a despedida. Mostrei-a aos meus
dois amigos, julgando que podiam dizer-me o seu significado, mas eles disseram
que se compra em qualquer lado por um punhado de kuanzas, não é antiga, nem
especial. Uma coisa banal. Mas é uma máscara e eu continuo a dar voltas ao
assunto.
Não percebo nada de antropologia,
ou etnologia, ou o diabo, mas sei que a máscara tem a ver com segredo,
disfarce, coisas assim. Terá sido a vida de Marta comigo uma máscara? Se se
tivesse apaixonado por um homem de quem tivesse agora filhos, poderia pensar
que era ela e comigo largara a máscara. Mas se está com o sacana do belga,
desde quando agora é mais ela? Quanto a mim, a máscara dela agora será enorme,
não?
Não consigo dormir pensando no
que poderá estar a fazer com ele. Não consigo trabalhar bem e tenho andado às
voltas do chalé em que vive o filho da mãe do belga. Ao gajo, só lhe desejo que
apanhe uma doença venérea e um paludismo que o meta na cama para sempre. Estou
capaz de ir a um bruxo (há-os aqui muito bons) mandar-lhe um feitiço que lhe dê
cabo do coiro, mas tenho medo porque o gajo pode pedir a outro que envie o
feitiço a quem o pediu e eu acabo pior do que estou.
Ocorreu-me até ir falar com o
militar das FAA, o empregado de mesa e o cozinheiro, e pagarmos ao tal bruxo.
Se o mal viesse para trás, seria disperso por quatro, eu, em vez de morrer,
apanhava apenas um paludismo, uma indisposição, uma diarreia. Eles são mais
pobres, aguentariam com a parte de leão; eu, como tenho mais dinheiro, pagaria
a outro bruxo para me proteger. Custa-me ser tão cínico, mas não aguento isto
sozinho, esta maldita obsessão. Ela é tão grande que era capaz de pagar uma boa
mão cheia de dólares para que um garoto esfaqueasse o belga do catano, mas ele
tem amigos influentes e o garoto depressa me denunciaria. Portanto, uma vez
mais, seria eu a ficar com a vida desgraçada.
Não sei o que faça; só sei que
ando com a sombra de Marta desde que me levanto até que, a custo, adormeço. Se
acordo durante a noite, penso nela e fico completamente desperto. Ouço os
mosquitos, sinto o calor, sinto a solidão, sinto pena de estar tão longe de
casa e tê-la conhecido, sinto de tudo um pouco e, como já disse, tanto tudo já
me farta. Ando prejudicado da vida, é isso, agora chego a algum lado e, mal
abro a boca, sai-me logo o termo prejudicado. Parece que me persegue – nem sei
como me escapou até agora nestas linhas.
Amanhã vêm buscar-me às sete e já
é hoje porque são quatro: estou meio bêbedo, fumei meio maço, a minha mão
direita descobriu-me três vezes impotente, a minha alma mais negra que a linda
pele de Marta, e eu aqui a martirizar-me do fim até ao início, procurando
ignorar os olhos fixos da máscara, prejudicando-me no meu trabalho, enfim, uma
sombra de mim próprio.
Dizem que a paixão dura não sei
quantos meses. Que é um processo químico. Não sei se resisto. Daria um ano de
vida para falar com Marta e perguntar-lhe porque me deixou, se não gostava de
mim nem um bocadinho, se quer voltar, se o filho da puta do belga é bom na
cama, até que ponto eu era pior do que os anteriores, se alguma vez a satisfiz,
o que queria dizer com isso de me deixar a máscara, se me deixou também algum
feitiço para prejudicar-me desta maneira, porque se tornou numa sombra maior
que o seu nome na minha vida, se vai parar só quando andar aos pinotes com um
ministro, por que preço posso comprá-la, eu sei lá, só queria que viesse e se
sentasse à minha frente, subisse o vestido, abrisse o decote, e me beijasse como
ela fazia, empurrando-me para trás, possuindo-me, possuindo-me como ainda hoje
faz. Só queria dizer-lhe que, desde que me deixou, a minha vida não cessa de
andar para trás, pelo que de mim há de branco já sobem os bichos, quebram-se em
mim todas as máscaras, estou uma sombra do homem ambicioso que em tempos fui e
tudo o que faço me prejudica como profissional. Que não estou no fim, estou no
limite, e quero voltar ao início para que, desta vez, lhe possa dar tudo o que
ela deseje.
Outras vezes sinto tanta raiva
por estar sempre a pensar nela, tanto ódio por me ter usado como um simples
degrau, tanto despeito por me ter trocado, sem nenhum remorso, por outro, que
tenho vontade de a mandar raptar e…
É melhor nem continuar: tudo o
que pudesse dizer a partir de agora podia ser perigoso para mim, não vá suceder
alguma coisa, prejudicado já estou o suficiente. Vou dormir. Está uma lua
enorme a reflectir-se na baía. Esta maldita terra é maravilhosa. Enfeitiça.
Hoje vi Marta. Todas as vezes que
ando pela rua e vejo umas pernas bonitas julgo ver Marta. É uma sombra
constante ao meu lado, mas hoje tornou-se real, com ou sem máscara, e fui eu
quem saiu mais prejudicado do encontro.
Foi como no início: fez de conta
que esperava um táxi. A situação pareceu-me um bom indício e quis levá-la até
ao fim, por uma vez ao contrário do que nos aconteceu anteriormente. Fui ter
com ela e vi-me reflectido nos seus óculos escuros. Vi-me a tremer enquanto lhe
perguntava: Porque me deixaste uma
máscara? E ela respondeu: Era um presente,
foste bom para mim. E eu atirei-lhe: E
agora também tens quem seja bom para ti? Levantou um braço e fez sinal a um
táxi para que parasse. Puta que os pariu: quando precisamos deles, nunca
aparecem; e agora, que precisava que não aparecesse nenhum, já estava a parar
um maldito Mercedes. Segurei-lhe o braço, talvez com mais força do que o
necessário, e ela procurou libertar-se de tal modo que o taxista, que queria o
dinheiro da corrida, perguntou lá de dentro se senhora queria ajuda. Ela disse
que não e eu soltei-a. Mas disse-lhe: Não
te vás já embora… Queria falar contigo. Não sei se houve pena no seu olhar,
porque os óculos escuros eram a máscara na qual eu reflectia a minha tristeza.
Só sei que disse devagar: Não tem
necessidade. E abriu a porta. Meu pai
vinha comigo. Deram-lhe um tiro no pé e ficou lá sozinho na chana. Eu tive de
vir, entendeu agora? Eu tive de vir com quem deu tiro no pé do meu pai e fui
sua mulher. Entendeu agora?
O táxi partiu sem que conseguisse
responder-lhe. O taxista gritou: Vai
embora, branco! Como, se me tinham dado um tiro no pé?
Publicado na revista Sítio 5, dezembro 2009