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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O Peso


|Pedro Eiras

           A partir do camião, o caminho é curto: alguns passos cegos e chego. Deposito e volto (um corpo que não sou eu, um corpo que carrego). Subo ao camião, sinto frio. Se atravesso o passeio, contorno as pessoas, pessoas vivas que passam (animadas, as pessoas com as suas pequenas almas).

            É uma manhã de Janeiro, choveu toda a noite, as poças abrem as bocas, mas o céu está escuro, eu atravesso carregado (é cedo para pensar, tenho sono, não sinto o peso, acordo de repente, aqui e agora, sou eu, atravesso o passeio), chego. O Fausto estacionou em segunda fila e deixou os piscas acesos, não vá o diabo tecê-las, por menos do que isso já o Lucrécio foi multado (o mundo acontece, sem parar, ninguém pode parar).

            É uma manhã (frio, o plástico encharca-me de suor, bate-me na testa, beija-me), ainda é cedo mas o trânsito começa (donde? e como se concentra? presto atenção para não ser atropelado). Faz frio (o plástico arde à minha volta na sua brancura suja), se tenho de subir ao camião sinto mais frio, talvez mais frio do que o ar? talvez mais frio do que o ar.


            E todavia é um caminho curto e cego, duas ou três passadas (carregado, custa mais mover-me, movo mais do que o meu peso, como se uma parte de mim estivesse partida, quer dizer, como se os meus ossos tivessem quebrado), deposito e volto, o Alexandre faz-me sinais (uma asa partida), um corpo que carrego. Ao voltar para o camião, estranha e previsível leveza, assento com força as galochas no chão esponjoso.

            As pessoas não se compadecem, chocariam contra mim (eu não existo, não me atravesso no caminho, invisibilizo-me no passeio, não atraso a marcha de relógio cego) se não sentissem repulsa (e também eu tenho a minha alma). Mas as poças não são mais limpas (onde choveu, a própria chuva empurrou as poeiras, gérmens, amassou a argila tosca no caminho, o bolo primordial, passo com as pessoas) do que eu (uma asa). Não penso, é cedo, tenho sono em segunda fila. E abrigo-me sob a capa de plástico.

            Nem reparo no que carrego, não vá o diabo tecê-las, é um corpo, matéria (e a alma?), ninguém pode parar. Contorno mecanicamente as pessoas animadas que me atravessam, vejo em radioscopia os corações como elevadores de alcatruzes, o plástico beija-me. Penso que ninguém suporta indemne o espectáculo do mundo, precisamos de comer, temos fome, tenho frio (para não ser atropelado), e penso dentro da testa de plástico: ninguém suporta indemne ser inteiramente livre da sua própria alienação (o que seria o mundo sem a máscara de plástico?), ninguém suporta estar inteiramente nu no ar da manhã.

            E circulo com o peso às costas (eis uma publicidade a férias em Cuba, dois anjos sobre Havana, os meus ossos quebrados, teologia para o verão, talvez ninguém me venha quebrar as rótulas, o filho do homem entrará na morte como um só corpo, não brilharão as suas costelas como uma grade de nervura exposta ao ar, assento os pés nas poças, as galochas diluem-se, as pessoas contornam-me, eu penso: ninguém aguenta estar inteiramente acordado, abandonar a submissão ao ritmo do mundo repetido).

            Afastam-se, eu passo: com medo de serem (a)tingidas pelo sangue (como se não tivesse secado). Olho pelo plástico, os olhos das pessoas não se distinguem uns dos outros como elas crêem: com as mesmas pressas absolutas; e reflectem as poças como se o que está em baixo fosse igual ao que está em cima, e o que ligassem na terra ligassem no céu (os céus telecomandados não podem impedir que elas sejam sempre o mesmo coração em chamas de orgulho). Falam de pureza, a caminho da pureza, pensam: o espectáculo do mundo será purgado (e eu sei: não há purga, limitamo-nos a comer, ter fome e frio, alguém tem de fazer o trabalho sujo, esperamos o salário como um curativo esquentado).

            Carrego o peso e penso: este é o peso, não quero ignorá-lo. Penso o peso do que carrego, desde o camião, quero ter consciência do que faço, penso: quero saber absolutamente o meu percurso, o sangue que transporto (como se não tivesse cristalizado). Não quero os anjos de Havana, os mais que poderosos últimos avatares de mísseis que agora entram no sangue animado a atravessar-nos, não quero pensar este peso como a metáfora do peso de umas asas de anjo (partidas). (Não. Mas quero ser a velhice e a morte, desdizer hoje a minha futura retractação, quero o medo da morte e de não poder regressar, o tempo como despesa, quero poder gritar: pai, por que não me abandonaste?)

            De cada vez que me aproximo de um novo gancho, penso: estou aqui e agora, apenas um pouco de matéria (orgulhoso sangue que se obstina). Passa por mim um mendigo, leio nos seus olhos o desprezo (ele soube tudo antes de mim, leio nos seus olhos a ferocidade da ressurreição), e sirvo para o comércio. Tremo, o polícia faz sinal para que o camião circule, não vá o diabo tecê-las, o Fausto tenta defender-se, estamos a fazer o nosso trabalho (não carregamos asas, é outro o nosso peso). Encolho-me como a lapa sob o meu plástico de ferro (e não há purga nem pureza).

            Não há pureza: comemos o sofrimento dos outros (e tudo se apaga num ritmo soporífero). Quando quero dormir, há duas aparições: o sofrimento que me faz existir e o mundo como alternância de ossos e sangue: o corpo que carrego (é o peso que eu carrego, a consciência do peso, assento as galochas nas poças, são sujas: é sangue). Sei até ao tutano o que sou, acordo os sentidos com a consciência de mim (mesmo quando me coroam de auréolas). E estendem-me os pactos de prestações, o rebuçado de ouro. (O mendigo abre a boca de vento e passa.)

            O polícia finge que não vê, cede magnânimo e humilhante quando o Fausto lhe pede, admoesta-nos paternalmente, que sejamos rápidos, pertence-lhe o cálice do mundo, teremos de bebê-lo e ninguém velou comigo esta noite. Entro pela milésima vez na barriga da baleia de gelo (e penso: antes aqui. Aqui é o silêncio e não serei julgado.)

(O mendigo acena louco contra a alma das pessoas, abre os braços e corre aos gritos, não tem de ser lúcido nem consciente.)

O polícia afasta-se contente (no entanto, todo o mundo me poderia atirar a primeira pedra). Não haverá purga nem futuro: o tempo é o eterno presente. (E penso que talvez eu apenas idealize o mendigo, é só um miserável, talvez eu tenha lido mal a sua fúria. E volto a pensar: não, ele recusou o embalo dos altifalantes disseminados. Alguém terá de aguentar por todos nós o ar puro e cruel da manhã.)

            Mesmo se, por vezes, também eu tenho vontade de perder o meu peso e partir de férias para uma eterna Havana onde cuba livre seja o etéreo nome de uma bebida, endividando-me para todo o sempre na ferocíssima felicidade do trespasse. Porque mereço o mesmo crédito em troco da mesma alma, o resgate de um destino vacante. (E talvez assim esteja a ser movido por uma voz inaudível que de altifalante em altifalante repete o apelo: última chamada para o esquecimento, portão infinito, corro no átrio infindável onde os discípulos choram amargamente, até à porta em que o avião acabou de partir, com uma bomba ao colo do mendigo; e ele grita: o fim do mundo! o fim do mundo e vós todos aqui! o fim do mundo e vós pesadíssimos!)

Eu posso ser julgado; seja então julgado por mim. Mas o polícia volta: ainda não tiraram o camião? (E os coros apocalípticos, suspendendo as trompas no éter, observam-me com curiosidade, pareço um gnomo agachado, observam o corpo esquartejado e frio que dependuro do gancho, contorno as pessoas animadas que me lapidam. Mas não haverá purga, as prestações repetem-se: o meu jugo é suave. E o mundo não pára.) Regresso ao camião, de ombros direitos, para pegar na última carcaça.



Publicado na revista Sítio 5, dezembro 2009.