|Pedro Eiras
A partir do camião, o caminho é curto: alguns passos cegos e
chego. Deposito e volto (um corpo que não sou eu, um corpo que carrego). Subo
ao camião, sinto frio. Se atravesso o passeio, contorno as pessoas, pessoas
vivas que passam (animadas, as pessoas com as suas pequenas almas).
É uma manhã
de Janeiro, choveu toda a noite, as poças abrem as bocas, mas o céu está
escuro, eu atravesso carregado (é cedo para pensar, tenho sono, não sinto o
peso, acordo de repente, aqui e agora, sou eu, atravesso o passeio), chego. O
Fausto estacionou em segunda fila e deixou os piscas acesos, não vá o diabo
tecê-las, por menos do que isso já o Lucrécio foi multado (o mundo acontece,
sem parar, ninguém pode parar).
É uma manhã
(frio, o plástico encharca-me de suor, bate-me na testa, beija-me), ainda é
cedo mas o trânsito começa (donde? e como se concentra? presto atenção para não
ser atropelado). Faz frio (o plástico arde à minha volta na sua brancura suja),
se tenho de subir ao camião sinto mais frio, talvez mais frio do que o ar?
talvez mais frio do que o ar.
E todavia é
um caminho curto e cego, duas ou três passadas (carregado, custa mais mover-me,
movo mais do que o meu peso, como se uma parte de mim estivesse partida, quer
dizer, como se os meus ossos tivessem quebrado), deposito e volto, o Alexandre
faz-me sinais (uma asa partida), um corpo que carrego. Ao voltar para o camião,
estranha e previsível leveza, assento com força as galochas no chão esponjoso.
As
pessoas não se compadecem, chocariam contra mim (eu não existo, não me
atravesso no caminho, invisibilizo-me no passeio, não atraso a marcha de
relógio cego) se não sentissem repulsa (e também eu tenho a minha alma). Mas as
poças não são mais limpas (onde choveu, a própria chuva empurrou as poeiras,
gérmens, amassou a argila tosca no caminho, o bolo primordial, passo com as
pessoas) do que eu (uma asa). Não penso, é cedo, tenho sono em segunda fila. E
abrigo-me sob a capa de plástico.
Nem reparo
no que carrego, não vá o diabo tecê-las, é um corpo, matéria (e a alma?),
ninguém pode parar. Contorno mecanicamente as pessoas animadas que me
atravessam, vejo em radioscopia os corações como elevadores de alcatruzes, o
plástico beija-me. Penso que ninguém suporta indemne o espectáculo do mundo, precisamos
de comer, temos fome, tenho frio (para não ser atropelado), e penso dentro da
testa de plástico: ninguém suporta indemne ser inteiramente livre da sua
própria alienação (o que seria o mundo sem a máscara de plástico?), ninguém
suporta estar inteiramente nu no ar da manhã.
E circulo
com o peso às costas (eis uma publicidade a férias em Cuba, dois anjos sobre
Havana, os meus ossos quebrados, teologia para o verão, talvez ninguém me venha
quebrar as rótulas, o filho do homem entrará na morte como um só corpo, não
brilharão as suas costelas como uma grade de nervura exposta ao ar, assento os
pés nas poças, as galochas diluem-se, as pessoas contornam-me, eu penso:
ninguém aguenta estar inteiramente acordado, abandonar a submissão ao ritmo do
mundo repetido).
Afastam-se,
eu passo: com medo de serem (a)tingidas pelo sangue (como se não tivesse
secado). Olho pelo plástico, os olhos das pessoas não se distinguem uns dos
outros como elas crêem: com as mesmas pressas absolutas; e reflectem as poças
como se o que está em baixo fosse igual ao que está em cima, e o que ligassem
na terra ligassem no céu (os céus telecomandados não podem impedir que elas
sejam sempre o mesmo coração em chamas de orgulho). Falam de pureza, a caminho
da pureza, pensam: o espectáculo do mundo será purgado (e eu sei: não há purga,
limitamo-nos a comer, ter fome e frio, alguém tem de fazer o trabalho sujo,
esperamos o salário como um curativo esquentado).
Carrego o
peso e penso: este é o peso, não quero ignorá-lo. Penso o peso do que carrego,
desde o camião, quero ter consciência do que faço, penso: quero saber
absolutamente o meu percurso, o sangue que transporto (como se não tivesse
cristalizado). Não quero os anjos de Havana, os mais que poderosos últimos
avatares de mísseis que agora entram no sangue animado a atravessar-nos, não
quero pensar este peso como a metáfora do peso de umas asas de anjo (partidas).
(Não. Mas quero ser a velhice e a morte, desdizer hoje a minha futura
retractação, quero o medo da morte e de não poder regressar, o tempo como
despesa, quero poder gritar: pai, por que não me abandonaste?)
De cada vez
que me aproximo de um novo gancho, penso: estou aqui e agora, apenas um pouco
de matéria (orgulhoso sangue que se obstina). Passa por mim um mendigo, leio
nos seus olhos o desprezo (ele soube tudo antes de mim, leio nos seus olhos a
ferocidade da ressurreição), e sirvo para o comércio. Tremo, o polícia faz
sinal para que o camião circule, não vá o diabo tecê-las, o Fausto tenta
defender-se, estamos a fazer o nosso trabalho (não carregamos asas, é outro o
nosso peso). Encolho-me como a lapa sob o meu plástico de ferro (e não há purga
nem pureza).
Não há
pureza: comemos o sofrimento dos outros (e tudo se apaga num ritmo soporífero).
Quando quero dormir, há duas aparições: o sofrimento que me faz existir e o
mundo como alternância de ossos e sangue: o corpo que carrego (é o peso que eu
carrego, a consciência do peso, assento as galochas nas poças, são sujas: é
sangue). Sei até ao tutano o que sou, acordo os sentidos com a consciência de
mim (mesmo quando me coroam de auréolas). E estendem-me os pactos de
prestações, o rebuçado de ouro. (O mendigo abre a boca de vento e passa.)
O polícia
finge que não vê, cede magnânimo e humilhante quando o Fausto lhe pede,
admoesta-nos paternalmente, que sejamos rápidos, pertence-lhe o cálice do
mundo, teremos de bebê-lo e ninguém velou comigo esta noite. Entro pela
milésima vez na barriga da baleia de gelo (e penso: antes aqui. Aqui é o
silêncio e não serei julgado.)
(O mendigo acena louco contra a alma das
pessoas, abre os braços e corre aos gritos, não tem de ser lúcido nem
consciente.)
O polícia afasta-se contente (no entanto,
todo o mundo me poderia atirar a primeira pedra). Não haverá purga nem futuro:
o tempo é o eterno presente. (E penso que talvez eu apenas idealize o mendigo,
é só um miserável, talvez eu tenha lido mal a sua fúria. E volto a pensar: não,
ele recusou o embalo dos altifalantes disseminados. Alguém terá de aguentar por
todos nós o ar puro e cruel da manhã.)
Mesmo se,
por vezes, também eu tenho vontade de perder o meu peso e partir de férias para
uma eterna Havana onde cuba livre seja o etéreo nome de uma bebida,
endividando-me para todo o sempre na ferocíssima felicidade do trespasse.
Porque mereço o mesmo crédito em troco da mesma alma, o resgate de um destino
vacante. (E talvez assim esteja a ser movido por uma voz inaudível que de
altifalante em altifalante repete o apelo: última chamada para o esquecimento,
portão infinito, corro no átrio infindável onde os discípulos choram
amargamente, até à porta em que o avião acabou de partir, com uma bomba ao colo
do mendigo; e ele grita: o fim do mundo! o fim do mundo e vós todos aqui! o fim
do mundo e vós pesadíssimos!)
Eu posso ser julgado; seja então julgado
por mim. Mas o polícia volta: ainda não tiraram o camião? (E os coros
apocalípticos, suspendendo as trompas no éter, observam-me com curiosidade,
pareço um gnomo agachado, observam o corpo esquartejado e frio que dependuro do
gancho, contorno as pessoas animadas que me lapidam. Mas não haverá purga, as
prestações repetem-se: o meu jugo é suave. E o mundo não pára.) Regresso ao
camião, de ombros direitos, para pegar na última carcaça.
Publicado na revista Sítio 5, dezembro 2009.