|Ruy Belo
Caiu sobre o país uma cortina de silêncio
a voz distingue o homem mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
e o que aos outros falta têm eles a mais
no dia de natal eu caminhava
e vi que em certo rosto havia a paz que não havia
era na multidão o rosto da justiça
um rosto que chegava até junto de mim de nicarágua
um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
num mundo onde o homem é um lobo para o homem
e o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de natal
e entre muitos ombros eu pensava em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
e por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terramoto de manágua
e que sobre os escombros inda havia
as ornamentações da quadra de natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros
se permita exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz da indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-se erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto era natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia
Páginas
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sábado, 28 de dezembro de 2013
sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
É Natal
|Eugénio de Andrade
É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os diospiros ardendo na sombra.
Quem tem assim o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.
É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os diospiros ardendo na sombra.
Quem tem assim o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
Versos de Natal
|Manuel Bandeira
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
Natal
|Fernando Pessoa
O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
Poema de Natal
|Vinícius de Moraes
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
Natal de 1971
|Jorge de Sena
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
domingo, 22 de dezembro de 2013
Desenhar a poesia
Entrevista a Luís Quintais
|Clara Henriques
Luís Quintais desenha a poesia como quem anuncia o
que há de mais próximo do que é belo, do que é musica.
Neste "Depois da Música" acabado de
editar, há um forte peso de memória, do mundo e das influências de que somos
todos filhos. Deixemo-nos ficar nas palavras que se seguem.
Óscar Lopes escreveu sobre Eugénio de Andrade que
os seus poemas são “um modo de realidade-esperança, uma esperança impensável, a
não ser talvez em música e em poesia paramusical”. Que relação há entre a tua
poesia e a música?
A música sempre foi uma
influência decisiva. Curiosamente não apenas pela forma como isso é central na
construção de um poema, na forma com ele soa, na intensidade expressiva que lhe
encontro ou não, mas também no plano das ideias, se quisermos. A música não é
apenas som organizado, é também ideias que encontram a sua expressão acústica,
e que, nesse encontro, potenciam outras ideias ainda: as ideias que a poesia
trabalha ou deve trabalhar. Depois há as homenagens a músicos que sempre me
perseguiram. Vai de Monteverdi aos Blues do Delta e não fica por aí. E há mais.
A música é uma das metáforas mais produtivas que conheço para compreender a
nossa condição presente. Este Depois da
música (2013) é sobre isso. Nós vivemos depois da música, depois do
sentido, depois de Auschwitz.
Dizes, a dada altura, que “a literatura é uma
província da poesia”. Como habitam em ti uma e outra?
Eu não acho que a poesia seja
literatura. A poesia está mais próxima de algo que é prévio à literatura.
Aliás, a literatura é uma instituição e uma instituição agonizante,
provavelmente já morta. Contrariamente ao que se diz por aí, a poesia continua,
continuará sempre, enquanto houver linguagem e humanidade. Daí que a literatura
seja somente uma província da literatura.
Ao longo do livro, percebemos que há uma forte
influencia musical dos anos 80. De que forma é que esta sonoridade te
influenciou enquanto autor?
Sim, muito. Eu vivi em Lisboa
durante uma parte significativa da minha vida. Depois de ter chegado do «Ultramar»,
vivi em Lisboa até aos meus 27 anos. Ainda hoje a entendo como a minha cidade.
É uma sombra em tudo o que escrevo, e uma memória de uma memória, também,
porque pouco a pouco a minha imagem da cidade e da minha já remota juventude se
vai apagando, reinventando, sendo outra, e outra ainda. E a década de oitenta
vivia-a em Lisboa. A música desse período, é uma uma música disfórica, densa,
talvez doente, mas urgente. Joy Division, anos oitenta, Lisboa, essa foi a
minha juventude perdida.
As referências à biografia ou à memória surgem
muitas vezes neste Depois da música.
Que relação trazes com o passado?
Não é possível fugir à
memória. Ela sitia-nos. Duração e escombro, é assim o passado. À medida que
envelheço vai havendo cada vez mais passado. Em verdade, escreve-se para os
mortos e para os vindouros. O presente não existe.
Como antropólogo achas melhor a divisão
de tudo por disciplinas, províncias, continentes, a sistematização e o rótulo,
ou antes pelo contrário?
Eu sou um
antropólogo atípico. As diferenças e as separações são produtos históricos,
realizações políticas. Não aprecio particularmente a axiologia. O meu
pensamento é verdadeiramente nómada, ou é assim que me vejo ou gosto de ver.
Deleuze tem sido uma influência importante nisso.
Vivemos numa época em que somos atropelados pelo
que há de mais efémero ou, arrisco, superficial. Que lugar terá a palavra nesta
era? Que lugar terá também a poesia?
A poesia é também uma resposta
ao empobrecimento da linguagem e do humano. É aí que estamos. A poesia é uma
forma de resistência. Onde há poder há resistência. É aí que estamos. É aí que
estaremos sempre.
O que fica depois da música?
O mundo acabou há muito.
Ficaram-nos as cinzas e o pó. Depois da música, ficou a poesia, malgré Adorno.
sábado, 21 de dezembro de 2013
sexta-feira, 20 de dezembro de 2013
Crença
|Luís Quintais
A literatura é uma província da poesia. Visitemos a pro-
víncia. Há sempre o conforto dos nocturnos onde se explica
a presença das grandes cidades no horizonte da biografia.
Escuta a voz que os poemas desenham. Voz desenhada.
Voz mineral. Voz aguçada pela vária chegada ao porto da
linguagem. Esquecerei tudo isto. Afinal é apenas teoria con-
sagrada à impossível escuta dessa voz antiga mas sem ori-
gem. Do outro lado da rua, alguém grita à janela. Desespera
sob o uniforme que o conduz. Deste lado do mundo, desta
mesa repartindo-se como um território por conquistar, desta
mesa semeada por disciplinas e dispêndios, uma crença é
conduzida por máquinas que rasuram demencialmente.
A literatura é uma província da poesia. Visitemos a pro-
víncia. Há sempre o conforto dos nocturnos onde se explica
a presença das grandes cidades no horizonte da biografia.
Escuta a voz que os poemas desenham. Voz desenhada.
Voz mineral. Voz aguçada pela vária chegada ao porto da
linguagem. Esquecerei tudo isto. Afinal é apenas teoria con-
sagrada à impossível escuta dessa voz antiga mas sem ori-
gem. Do outro lado da rua, alguém grita à janela. Desespera
sob o uniforme que o conduz. Deste lado do mundo, desta
mesa repartindo-se como um território por conquistar, desta
mesa semeada por disciplinas e dispêndios, uma crença é
conduzida por máquinas que rasuram demencialmente.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
“Je ne sais pas, monsieur. Je m´excuse”
|Luís Quintais
Disse o senhor Prudente
Quando interrogado sobre o motivo
Que o levara a esfaquear o poeta Samuel Beckett.
Um acto
É como o abutre
Circulando dentro
No crânio do autor
Que se esvai
Na luz céu cinza,
O único túmulo.
Nada sabemos
Estamos sós.
Sobre uma lâmina
Abate-se
Um corpo,
Um peso,
Um peso morto.
O abutre habita o oco.
Não há saída, apenas
Convulsões na luz
E depois escuridão,
Noite sem asas.
Um acto só pode ser
Revisitado
Pela treva
Que o precipita
Na treva.
Disse o senhor Prudente
Quando interrogado sobre o motivo
Que o levara a esfaquear o poeta Samuel Beckett.
Um acto
É como o abutre
Circulando dentro
No crânio do autor
Que se esvai
Na luz céu cinza,
O único túmulo.
Nada sabemos
Estamos sós.
Sobre uma lâmina
Abate-se
Um corpo,
Um peso,
Um peso morto.
O abutre habita o oco.
Não há saída, apenas
Convulsões na luz
E depois escuridão,
Noite sem asas.
Um acto só pode ser
Revisitado
Pela treva
Que o precipita
Na treva.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
O azul de Wallace Stevens
|Luís Quintais
Não recordo esse azul, mas sei
que ele se alia ao azul imaginado
pela acústica impressão:
desprende-se a sua voz, bate
no meu rosto, retoma a mais densa
compreensão, o sonho da matéria
com que haverei de lhe tocar a pele
dizendo o seu nome.
Não recordo esse azul, mas sei
que ele se alia ao azul imaginado
pela acústica impressão:
desprende-se a sua voz, bate
no meu rosto, retoma a mais densa
compreensão, o sonho da matéria
com que haverei de lhe tocar a pele
dizendo o seu nome.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
Depois da música
|Luís Quintais
Depois da música, a poesia será escrita como se tingida por
inegociáveis medos. Debruçou-se sobre a mesa, sobre o
arquivo, sobre o mapa da sua morte, escutou o rumor de um
mar espesso, sem mecânica. Saiu pela porta sem porta da
história e voltou ao terreno da biografia. «A música acabou»,
escreveu, «a história jaz sepultada, sem herói civilizador.»
Tudo agoniza, agonizará a partir desse ontem. Um plasma
queima o sangue por dentro, e é suja a noite, suja de um azul
ameaçador. Debruçou-se sobre a mesa. Os prédios estreme-
ciam como uma pele estremecente. A mesa era negra, como
fora o quadro riscado. Dedicado, perseguia um desígnio dis-
tante, talvez apagado no chão móvel da página.
Depois da música, a poesia será escrita como se tingida por
inegociáveis medos. Debruçou-se sobre a mesa, sobre o
arquivo, sobre o mapa da sua morte, escutou o rumor de um
mar espesso, sem mecânica. Saiu pela porta sem porta da
história e voltou ao terreno da biografia. «A música acabou»,
escreveu, «a história jaz sepultada, sem herói civilizador.»
Tudo agoniza, agonizará a partir desse ontem. Um plasma
queima o sangue por dentro, e é suja a noite, suja de um azul
ameaçador. Debruçou-se sobre a mesa. Os prédios estreme-
ciam como uma pele estremecente. A mesa era negra, como
fora o quadro riscado. Dedicado, perseguia um desígnio dis-
tante, talvez apagado no chão móvel da página.
domingo, 15 de dezembro de 2013
Luís Quintais - Biografia
Luís Quintais (1968) nasceu em Angola. É antropólogo social de profissão, leccionando presentemente no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Nesta qualidade, desenvolveu investigação de arquivo e de terreno sobre o exercício e as implicações públicas e forenses da psiquiatria. Trabalha actualmente sobre as relações entre arte, ciência e cognição. Como poeta, está representado em diversas antologias, encontrando-se traduzido em inglês, alemão, castelhano, francês e croata. Publicou o seu primeiro livro de poesia, A Imprecisa Melancolia, em 1995, com o qual arrecadou o Prémio Aula de Poesia de Barcelona. Em 1999 regressa à poesia, publicando os livros Umbria na extinta Pedra Formosa e Lamento nos Livros Cotovia. Dois anos depois, lança Verso Antigo com a chancela da Cotovia. Angst (2002) é o seu terceiro livro de poesia publicado pelos Livros Cotovia. Em 2004 publica na Cotovia Duelo, obra a que foram atribuídos os prémios Luís Miguel Nava - Poesia 2005 e PEN Clube Português de Poesia. Em 2006 publicou Franz Piechowski ou a analítica do arquivo. Também no mesmo ano, retorna à poesia com a obra Canto Onde. Depois de Mais espesso que a água (2008), seguiu-se Riscava a palavra dor no quadro negro, e, em 2013, Depois da Música, pela editora Tinta-da-China.
sábado, 14 de dezembro de 2013
Esperanza
|André Domingues
A cidade chama-se Esperanza e as ruas de Esperanza estão cheias de mapas urbanos, que, por sua vez, estão repletos de círculos desenhados a marcador vermelho com a inscrição: Usted no está aquí. A provocação não faz parte do espírito de Esperanza, por isso o viajante incauto pode esquecer qualquer campanha de marketing e publicidade e concentrar-se apenas na sua bela desorientação, tentando ressuscitar a lógica e, sobretudo, nunca perder o ânimo. Assim, ao deparar-se com um dos milhares de mapas urbanos no coração de Esperanza, o viajante tem ao menos uma certeza: pode estar em qualquer lado da cidade, menos ali. A confusão agrava-se quando de 10 em 10 metros e em qualquer direcção que ouse tomar um novo mapa urbano lhe aparece pela frente com a mesma inscrição, precisamente sobre o mesmo lugar (rua, praça, avenida, encruzilhada) onde estava a anterior. Mas um raciocínio precipitado pode originar deduções fatais. Se todos os mapas representam sempre um único lugar da cidade no qual o viajante definitivamente não está, então é possível que nenhum mapa cumpra verdadeiramente a sua função e que aquela parte da cidade contemplada nem sequer tenha realidade material.
Nada mais errado. Esperanza é uma cidade atípica, projectada a partir de um só extracto da realidade que se repete infinitamente pelo espaço. A Calle de la Confianza, a Avenida de los Expectantes e a Plaza de la Posteridad estão unidas entre si e, consecutivamente, às suas réplicas, que se estendem, como aranhas magistrais, até Anhelo de la Sierra, Santa Ansiedad e Ciudad Revelada, já nos arredores de Esperanza. Chegando até aqui, torna-se cómodo aceitar que o problema de Esperanza é muito menos obscuro e borgesiano do que à primeira vista podia parecer, resultando menos de um enigma de características cósmicas e dissimuladas e mais da incompetência gritante dos seus serviços municipais: como em cada mapa urbano aparece apenas o detalhe do local e não uma perspectiva alargada da cidade, nenhum dos locais assinalados em qualquer um dos mapas pode afirmar que representa aquele exacto extracto da realidade. Daí a pertinência da inscrição: Usted no está aqui. Seguido do magnífico slogan da cidade: Siempre hay que tener Esperanza.
A cidade chama-se Esperanza e as ruas de Esperanza estão cheias de mapas urbanos, que, por sua vez, estão repletos de círculos desenhados a marcador vermelho com a inscrição: Usted no está aquí. A provocação não faz parte do espírito de Esperanza, por isso o viajante incauto pode esquecer qualquer campanha de marketing e publicidade e concentrar-se apenas na sua bela desorientação, tentando ressuscitar a lógica e, sobretudo, nunca perder o ânimo. Assim, ao deparar-se com um dos milhares de mapas urbanos no coração de Esperanza, o viajante tem ao menos uma certeza: pode estar em qualquer lado da cidade, menos ali. A confusão agrava-se quando de 10 em 10 metros e em qualquer direcção que ouse tomar um novo mapa urbano lhe aparece pela frente com a mesma inscrição, precisamente sobre o mesmo lugar (rua, praça, avenida, encruzilhada) onde estava a anterior. Mas um raciocínio precipitado pode originar deduções fatais. Se todos os mapas representam sempre um único lugar da cidade no qual o viajante definitivamente não está, então é possível que nenhum mapa cumpra verdadeiramente a sua função e que aquela parte da cidade contemplada nem sequer tenha realidade material.
Nada mais errado. Esperanza é uma cidade atípica, projectada a partir de um só extracto da realidade que se repete infinitamente pelo espaço. A Calle de la Confianza, a Avenida de los Expectantes e a Plaza de la Posteridad estão unidas entre si e, consecutivamente, às suas réplicas, que se estendem, como aranhas magistrais, até Anhelo de la Sierra, Santa Ansiedad e Ciudad Revelada, já nos arredores de Esperanza. Chegando até aqui, torna-se cómodo aceitar que o problema de Esperanza é muito menos obscuro e borgesiano do que à primeira vista podia parecer, resultando menos de um enigma de características cósmicas e dissimuladas e mais da incompetência gritante dos seus serviços municipais: como em cada mapa urbano aparece apenas o detalhe do local e não uma perspectiva alargada da cidade, nenhum dos locais assinalados em qualquer um dos mapas pode afirmar que representa aquele exacto extracto da realidade. Daí a pertinência da inscrição: Usted no está aqui. Seguido do magnífico slogan da cidade: Siempre hay que tener Esperanza.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
Visitas inesperadas
|André Domingues
São 23 horas e 33 minutos do último dia de 1899. Estou com Nikola Tesla, no seu laboratório em Colorado Springs. Tesla diverte-se a descodificar sinais extraterrestres, através da dissecação de frequências atípicas que lhe fazem lembrar ruídos de tempestades cerebrais. A sua convicção está ébria de futuro e compromisso, desejo e disparate. Por mais que queira convencê-lo do logro em que está há anos enredado, não me sinto capaz de frustrar assim uma mente histórica e muito menos de trespassar o direito ao delírio de um homem com a flecha da consciência eterna, soberana e universal.
Por isso, e para que Tesla não morresse de susto ou da imensa realidade da sua arte, disfarcei-me o melhor que pude de Mark Twain que, por essa mesma altura, o visitava com bastante regularidade. E trouxe-lhe um excelente vinho francês para o jantar.
São 23 horas e 33 minutos do último dia de 1899. Estou com Nikola Tesla, no seu laboratório em Colorado Springs. Tesla diverte-se a descodificar sinais extraterrestres, através da dissecação de frequências atípicas que lhe fazem lembrar ruídos de tempestades cerebrais. A sua convicção está ébria de futuro e compromisso, desejo e disparate. Por mais que queira convencê-lo do logro em que está há anos enredado, não me sinto capaz de frustrar assim uma mente histórica e muito menos de trespassar o direito ao delírio de um homem com a flecha da consciência eterna, soberana e universal.
Por isso, e para que Tesla não morresse de susto ou da imensa realidade da sua arte, disfarcei-me o melhor que pude de Mark Twain que, por essa mesma altura, o visitava com bastante regularidade. E trouxe-lhe um excelente vinho francês para o jantar.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
Projécteis para o passado
|André Domingues
Keneth diz-me que todas as noites faz amor com uma constante física fundamental. Eu olho para as nuvens, que entretanto invadiram o céu da minha capacidade de abstracção, esboço um sorriso e continuo a fumar. Ele parece captar com a maior nitidez deste mundo a imagem da minha reacção e está muito determinado em querer provar-me a sua verdade. Vasculha qualquer coisa no bolso das calças. Surge um magnífico revólver na sua mão.
Keneth está com um revólver apontado a uma das suas têmporas, pronto a disparar. Antes que a hipótese de um grito rasgue a pré-história das minhas vontades, o gatilho da arma é accionado. A bala liberta-se a uma velocidade inimaginável. De tal forma que nunca chega a sair da arma. Pelo contrário, regressa ao cano. À caixa de munições. À fábrica onde um dia foi inventada. O próprio revólver tende a desaparecer. A nossa amizade. Eu e Keneth. Todas as constantes físicas fundamentais.
Keneth diz-me que todas as noites faz amor com uma constante física fundamental. Eu olho para as nuvens, que entretanto invadiram o céu da minha capacidade de abstracção, esboço um sorriso e continuo a fumar. Ele parece captar com a maior nitidez deste mundo a imagem da minha reacção e está muito determinado em querer provar-me a sua verdade. Vasculha qualquer coisa no bolso das calças. Surge um magnífico revólver na sua mão.
Keneth está com um revólver apontado a uma das suas têmporas, pronto a disparar. Antes que a hipótese de um grito rasgue a pré-história das minhas vontades, o gatilho da arma é accionado. A bala liberta-se a uma velocidade inimaginável. De tal forma que nunca chega a sair da arma. Pelo contrário, regressa ao cano. À caixa de munições. À fábrica onde um dia foi inventada. O próprio revólver tende a desaparecer. A nossa amizade. Eu e Keneth. Todas as constantes físicas fundamentais.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
O voo ignorado
|André Domingues
Na manhã gelada de 4 de Fevereiro de 1912, um conhecido costureiro austríaco, reúne vários amigos e personalidades da época diante da Torre Eiffel. Também lá estão os jornalistas e duas câmaras de cinema instaladas em sítios estratégicos, prontas a registar o momento e a proporcionar-lhe uma vida infinita depois, pelas artes mágicas da reprodução. Reichelt sobe ao primeiro piso da Torre (cerca de 60 metros de altura) para, por fim, pôr em prática a validade exaltada do seu invento, uma espécie de pára-quedas inspirado na perturbante anatomia do morcego que, segundo os seus cálculos fiéis, o traria de regresso a terra, alegre e ileso, com a gentileza de uma pena e a segurança gloriosa da eventualidade.
Ao contrário daquilo que à primeira vista poderíamos pensar, o desfecho que se segue constata, paradoxalmente, o seu sucesso sonegado. Reichelt falha redondamente a ansiada aterragem perfeita, a sua invenção jamais seria adoptada e melhorada pelo mundo e pela indústria dos pára-quedas, mas acerta em cheio no seu segundo propósito, e talvez o mais sério, que era morrer. No fundo, Reichelt desvia todas as atenções sobre o seu suicídio, porque aponta os holofotes para uma façanha ignorada. Para poder manter-se na sombra do seu verdadeiro êxito, mesmo com o mundo inteiro a olhar para ele, Reichelt impõe uma única perspectiva dos acontecimentos. E o mundo só vê a desgraça e a queda acidental de Reichelt.
Porque, como dizia Wittgenstein, sobre aquilo que não se pode falar, devemos calar.
E Reichelt calou sempre.
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
Retrato de menina triste com balão (reflexo e catábase)
| André Domingues
Uma mulher alta, atravessada pela elegância de um vestido decotado e cruel. Ao lado da mulher, uma criança pálida, com rosto de porcelana e sardas severas. A menina está vestida com o uniforme do colégio e leva à volta do seu minúsculo pulso um fio que sobe na direcção do céu e termina, já muito perto das nuvens, num enorme balão. O balão tem a forma de um dirigível. A bordo do dirigível vão os seus demónios particulares.
Está um dia de sol insofismável. A mulher sorri para a câmara. A criança não. Tem medo que alguma coisa aconteça ao seu balão. A mulher não tem percepção da grandeza do balão que a menina traz. Só a menina (e nós que estamos deste lado) sabe da enormidade daquele balão. Do conteúdo inominável daquele balão.
Mas se olharmos atentamente para o dirigível vemos que também um dos demónios leva atado ao seu minúsculo pulso um fio que desce na direcção da terra e termina, já muito perto do chão, num enorme balão. O balão tem a forma de uma menina. Ao lado da menina, uma mulher alta, atravessada pela elegância de um vestido decotado e cruel, com um inofensivo e indefensável dirigível da Chanel na outra mão.
Uma mulher alta, atravessada pela elegância de um vestido decotado e cruel. Ao lado da mulher, uma criança pálida, com rosto de porcelana e sardas severas. A menina está vestida com o uniforme do colégio e leva à volta do seu minúsculo pulso um fio que sobe na direcção do céu e termina, já muito perto das nuvens, num enorme balão. O balão tem a forma de um dirigível. A bordo do dirigível vão os seus demónios particulares.
Está um dia de sol insofismável. A mulher sorri para a câmara. A criança não. Tem medo que alguma coisa aconteça ao seu balão. A mulher não tem percepção da grandeza do balão que a menina traz. Só a menina (e nós que estamos deste lado) sabe da enormidade daquele balão. Do conteúdo inominável daquele balão.
Mas se olharmos atentamente para o dirigível vemos que também um dos demónios leva atado ao seu minúsculo pulso um fio que desce na direcção da terra e termina, já muito perto do chão, num enorme balão. O balão tem a forma de uma menina. Ao lado da menina, uma mulher alta, atravessada pela elegância de um vestido decotado e cruel, com um inofensivo e indefensável dirigível da Chanel na outra mão.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
Memento mori
|André Domingues
Eis a memória do teatro-anatómico, a comédia desenganada dos nossos actos. Um artista, um performer, um homem atlético e saudável, cheio de qualidades, aliás, interpreta o papel da vítima de um colapso. Está deitado na bandeja do asfalto, repousa motu proprio, inanimado, no chão. Faz-se de morto. Deixa-se trespassar pela curiosidade mórbida de quem passa. A rua é muito movimentada. Em breve ele fabrica ao seu redor o círculo apócrifo do socorro ignorante. Até que alguém perfura subitamente o círculo e grita que é médico, a única fórmula de socorro autorizado.
O homem que grita que é médico também é um actor. Ajoelha-se ao lado do homem deitado, mede-lhe o pulso, olha para o relógio, depois para as nuvens, depois para a multidão, novamente para o relógio.
A menos de cinco metros de distância outro homem cai desamparado no chão. Abre-se um novo foco de curiosidade. Repetem-se os mesmos passos: gente aflita em redor, alguém que surge da multidão capaz de atestar a gravidade do colapso.
Em pouco tempo aquela rua enche-se de homens caídos no chão, gente à volta, médicos impostores, falsos diagnósticos de morte súbita confirmados. Alguns espectadores não aguentam a violência do espectáculo, ficam feridos na sua sensibilidade e começam realmente a desmaiar. Também há gente à sua volta. As pessoas reagem maravilhosamente ao furor do espectáculo. Pela primeira vez, no entanto, entra em cena uma equipa de médicos verdadeiros. Os médicos verdadeiros imitam os médicos impostores, mas o seu talento para a representação é frágil. O espectáculo torna-se redundante, o público aborrece-se, a multidão começa a dispersar.
Eis a memória do teatro-anatómico, a comédia desenganada dos nossos actos. Um artista, um performer, um homem atlético e saudável, cheio de qualidades, aliás, interpreta o papel da vítima de um colapso. Está deitado na bandeja do asfalto, repousa motu proprio, inanimado, no chão. Faz-se de morto. Deixa-se trespassar pela curiosidade mórbida de quem passa. A rua é muito movimentada. Em breve ele fabrica ao seu redor o círculo apócrifo do socorro ignorante. Até que alguém perfura subitamente o círculo e grita que é médico, a única fórmula de socorro autorizado.
O homem que grita que é médico também é um actor. Ajoelha-se ao lado do homem deitado, mede-lhe o pulso, olha para o relógio, depois para as nuvens, depois para a multidão, novamente para o relógio.
A menos de cinco metros de distância outro homem cai desamparado no chão. Abre-se um novo foco de curiosidade. Repetem-se os mesmos passos: gente aflita em redor, alguém que surge da multidão capaz de atestar a gravidade do colapso.
Em pouco tempo aquela rua enche-se de homens caídos no chão, gente à volta, médicos impostores, falsos diagnósticos de morte súbita confirmados. Alguns espectadores não aguentam a violência do espectáculo, ficam feridos na sua sensibilidade e começam realmente a desmaiar. Também há gente à sua volta. As pessoas reagem maravilhosamente ao furor do espectáculo. Pela primeira vez, no entanto, entra em cena uma equipa de médicos verdadeiros. Os médicos verdadeiros imitam os médicos impostores, mas o seu talento para a representação é frágil. O espectáculo torna-se redundante, o público aborrece-se, a multidão começa a dispersar.
André Domingues - Biografia
André Domingues nasceu no Porto, em 1975. É licenciado em Ciências da Comunicação/Jornalismo e mestre em Literatura e Cultura Comparadas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em 2009, recebeu o 1º prémio de poesia, num concurso promovido por essa mesma faculdade. No ano seguinte, recebeu uma menção honrosa pelo poema “Dying Mannequin”, publicado na “Coletânia Prêmio OFF FLIP de Literatura 2010”. Foi vencedor do prémio “Novos Talentos Fnac Literatura 2011”, com o conto “Sine Die”.
Alguns dos seus textos dispersos, maioritariamente poesia e micro-ficção, foram publicados em livro e revistas digitais.
Alguns dos seus textos dispersos, maioritariamente poesia e micro-ficção, foram publicados em livro e revistas digitais.
sábado, 7 de dezembro de 2013
Mesa do Canto – “Faz frio no Inverno”
|Alexandra Malheiro
Sobre o frio de Dezembro e dos princípios do Inverno seria redundante falar. Pois se estamos em Dezembro e o seu gelo nos entra nos pormenores da roupa, colando-se-nos na pele, se o respiramos como um gume que nos fere até à traqueia, para quê falar sobre isso? Para quê falar sobre o óbvio, perder tempo com o mundano, quando há tanta matéria intelectual a debater? Como o valor petiscativo das luzes que Natal que subsistem na minha cidade, as que se vêm, ainda que mal, da montra do meu café, em tempo de crise e míngua, lembrando vagamente que o Natal é tempo de comércio? Ou sobre o crescente tamanho das filas dos pobres que pela noite buscam alimento nas carrinhas dos que têm, também eles, cada vez menos?
Se eu não estivesse sentada, na mesa do meu café, mexendo o açúcar no fundo da chávena, confortável na minha pasmaceira, de volta do papel e da crónica e das coisas muito intelectuais sobre as quais escrever, talvez me perdesse nos olhos da mulher que pede à porta do café. Tem o olhar vazio, um pouco assustado, como se se tivesse desencontrado com o seu lugar no mundo e a mão estendida à caridade fosse a mão que, perdida, pedisse ajuda – “conduzam-me a casa, ou para dentro de mim”, porém tem duas mãos esta mulher, sujas e engelhadas e à memória chega-me um delicioso poema do Pina “o braço que falta ao mendigo é o que o sustenta” e eu penso que talvez o Pina seja também um braço, ou uma perna que nos falte por este tempo de Invernia sem que, porém, nos sustente e antes nos deixe mais ao desamparo deste frio.
Se a tarde não estivesse tão fria talvez ainda me animassem os cânticos felizes dos estudantes trajados que volteiam na baixa, somando apoios aos seus cânticos esganiçados e desafinados, antes mesmo de arrumarem na mala o diploma e partirem de comboio ou avião para um lugar onde emprego seja uma existência real e sinónimo de pão na mesa no fim do mês.
Se eu não estivesse parada no frio, gelada, a pensar que não sei sobre o que escrever, talvez não me assolasse a lembrança da minha ultima vez no aeroporto e sobre os olhares, os abraços e as lágrimas que se acumulavam nas partidas e chegadas, iguaizinhos aos que via nos idos de setenta e oitenta, a mesma angústia da partida, um frio diferente por dentro, a mesma ânsia da chegada já com a sombra de novo regresso, tudo como deve ser, somos pobres, temos de padecer, de ter fome, de sofrer e baixar a cerviz como está escrito nos livros da escola do tempo da outra senhora.
Ah mas tudo isto perde o brilho quando eu me sento no meu sofá, dali na têvê, aprendo que o país, este mesmo rectângulo esquartejado e vendido a retalho a preço de saldo, saiu da recessão técnica, enquanto os CTT mudam de mãos, não sei o que é mas deve ser bom atendendo à alegria dos mensageiros. Na Florida umas quantas baleias encalharam na costa e na Indonésia, um vulcão, de seu nome Sinabung, resolveu eclodir. Não me ocorre nenhum outro pensamento senão um ainda bem que foi na Indonésia porque quando acontece na Islândia não se consegue dizer!
Sobre o frio de Dezembro e dos princípios do Inverno seria redundante falar. Pois se estamos em Dezembro e o seu gelo nos entra nos pormenores da roupa, colando-se-nos na pele, se o respiramos como um gume que nos fere até à traqueia, para quê falar sobre isso? Para quê falar sobre o óbvio, perder tempo com o mundano, quando há tanta matéria intelectual a debater? Como o valor petiscativo das luzes que Natal que subsistem na minha cidade, as que se vêm, ainda que mal, da montra do meu café, em tempo de crise e míngua, lembrando vagamente que o Natal é tempo de comércio? Ou sobre o crescente tamanho das filas dos pobres que pela noite buscam alimento nas carrinhas dos que têm, também eles, cada vez menos?
Se eu não estivesse sentada, na mesa do meu café, mexendo o açúcar no fundo da chávena, confortável na minha pasmaceira, de volta do papel e da crónica e das coisas muito intelectuais sobre as quais escrever, talvez me perdesse nos olhos da mulher que pede à porta do café. Tem o olhar vazio, um pouco assustado, como se se tivesse desencontrado com o seu lugar no mundo e a mão estendida à caridade fosse a mão que, perdida, pedisse ajuda – “conduzam-me a casa, ou para dentro de mim”, porém tem duas mãos esta mulher, sujas e engelhadas e à memória chega-me um delicioso poema do Pina “o braço que falta ao mendigo é o que o sustenta” e eu penso que talvez o Pina seja também um braço, ou uma perna que nos falte por este tempo de Invernia sem que, porém, nos sustente e antes nos deixe mais ao desamparo deste frio.
Se a tarde não estivesse tão fria talvez ainda me animassem os cânticos felizes dos estudantes trajados que volteiam na baixa, somando apoios aos seus cânticos esganiçados e desafinados, antes mesmo de arrumarem na mala o diploma e partirem de comboio ou avião para um lugar onde emprego seja uma existência real e sinónimo de pão na mesa no fim do mês.
Se eu não estivesse parada no frio, gelada, a pensar que não sei sobre o que escrever, talvez não me assolasse a lembrança da minha ultima vez no aeroporto e sobre os olhares, os abraços e as lágrimas que se acumulavam nas partidas e chegadas, iguaizinhos aos que via nos idos de setenta e oitenta, a mesma angústia da partida, um frio diferente por dentro, a mesma ânsia da chegada já com a sombra de novo regresso, tudo como deve ser, somos pobres, temos de padecer, de ter fome, de sofrer e baixar a cerviz como está escrito nos livros da escola do tempo da outra senhora.
Ah mas tudo isto perde o brilho quando eu me sento no meu sofá, dali na têvê, aprendo que o país, este mesmo rectângulo esquartejado e vendido a retalho a preço de saldo, saiu da recessão técnica, enquanto os CTT mudam de mãos, não sei o que é mas deve ser bom atendendo à alegria dos mensageiros. Na Florida umas quantas baleias encalharam na costa e na Indonésia, um vulcão, de seu nome Sinabung, resolveu eclodir. Não me ocorre nenhum outro pensamento senão um ainda bem que foi na Indonésia porque quando acontece na Islândia não se consegue dizer!
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
O cansaço precoce de quem tem de continuar
|Clara Henriques
Os dias são também espaços de cansaço e solidão. É muito maior a estrada da rotina do que as curvas de luz que se escrevem no caminho. Talvez por isso Rita cumprisse todos os dias os apertos do 711 que a levavam sempre ao mesmo destino, sempre com as mesmas caras, sempre a acentuar os dias exaustos. De vez em quando saía uma paragem antes da habitual, qual desvio no de sempre que a fazia mais leve e mais distante do emprego a recibos verdes ou dos 10 euros na conta a uma semana do fim do mês. Depois ia, Rossio dentro bebendo das gentes que não via mas que sabia comporem o fim-de-tarde. 29 anos e os pés arrastados, as mãos pálidas à sombra da ilusão.
Naquele dia conseguiu um lugar sentada. O 711 ia menos apertado e Rita deixou-se cair numa cadeira à janela. Chovia. O desenhar das poças erguia-se altivo e nenhuma voz se entendia na certa. Não sabe bem quando reparou no velho que se sentara a seu lado, mas o boné igual ao do Avô fê-la regressar das poças vazias e entrar dentro daquela viagem de uma forma diferente. O velho, personagem longínqua e vinda da ternura, espreitava o nada como quem pede para partir. Rita atreveu-se no seu colo num só trago de doçura. Por parecer o Avô já ido, pelo silêncio feito da confusão, pelas memórias que os dois não tinham. O velho sentiu-lhe o olhar. Enquanto na cabeça de Rita já se desenrolava poesia. Quantos anos teria o velho a desenhar-lhe as mãos ásperas? Quanta vida? Quanta culpa? Quanta miséria engalfinhada no que não se cumpriu? Que história o faria, ainda, ter a coragem de entrar naquele 711, num qualquer inverno de chuva? E que destino? E quanto Amor?
Conversaram uma vida. Trocaram batalhas, ensinaram-se uma e outra geração. E não uma única palavra, não uma única história. O autocarro travou na paragem antes e o velho arrastou-se na bengala até à porta e saiu, envolto numa qualquer missão carregada no que há de mais só. Ela deixou-se ficar, caída naquele lugar à janela que era agora de uma culpa imensa. Ela - quem devia ter tido coragem para sair. E continuar.
Os dias são também espaços de cansaço e solidão. É muito maior a estrada da rotina do que as curvas de luz que se escrevem no caminho. Talvez por isso Rita cumprisse todos os dias os apertos do 711 que a levavam sempre ao mesmo destino, sempre com as mesmas caras, sempre a acentuar os dias exaustos. De vez em quando saía uma paragem antes da habitual, qual desvio no de sempre que a fazia mais leve e mais distante do emprego a recibos verdes ou dos 10 euros na conta a uma semana do fim do mês. Depois ia, Rossio dentro bebendo das gentes que não via mas que sabia comporem o fim-de-tarde. 29 anos e os pés arrastados, as mãos pálidas à sombra da ilusão.
Naquele dia conseguiu um lugar sentada. O 711 ia menos apertado e Rita deixou-se cair numa cadeira à janela. Chovia. O desenhar das poças erguia-se altivo e nenhuma voz se entendia na certa. Não sabe bem quando reparou no velho que se sentara a seu lado, mas o boné igual ao do Avô fê-la regressar das poças vazias e entrar dentro daquela viagem de uma forma diferente. O velho, personagem longínqua e vinda da ternura, espreitava o nada como quem pede para partir. Rita atreveu-se no seu colo num só trago de doçura. Por parecer o Avô já ido, pelo silêncio feito da confusão, pelas memórias que os dois não tinham. O velho sentiu-lhe o olhar. Enquanto na cabeça de Rita já se desenrolava poesia. Quantos anos teria o velho a desenhar-lhe as mãos ásperas? Quanta vida? Quanta culpa? Quanta miséria engalfinhada no que não se cumpriu? Que história o faria, ainda, ter a coragem de entrar naquele 711, num qualquer inverno de chuva? E que destino? E quanto Amor?
Conversaram uma vida. Trocaram batalhas, ensinaram-se uma e outra geração. E não uma única palavra, não uma única história. O autocarro travou na paragem antes e o velho arrastou-se na bengala até à porta e saiu, envolto numa qualquer missão carregada no que há de mais só. Ela deixou-se ficar, caída naquele lugar à janela que era agora de uma culpa imensa. Ela - quem devia ter tido coragem para sair. E continuar.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2013
Poesia cibernética: Engrácia e os SMSs de amor.
| Cláudia Assis
Ainda da sua cama [ninho que testemunhara o reencontro daqueles
dois corpos, há tanto adiado], Engrácia apreciava o esgueirar do sol, que
aos bocadinhos raiava no céu azul de outono. Se fechasse os olhos, era capaz de
senti-LO ainda ali, a passear aquelas firmes mãos pelas curvas do seu corpo.
Entre um suspiro e outro, enquanto Engrácia [e a suas generosas
curvas] tentava habituar-se àquela ausência consentida [saudade], um
sinal sonoro acabou por chamá-la à realidade. Era ELE, o responsável pelos
devaneios matinais que floresciam incessantes na memória de Engrácia, em mais
uma das suas investidas de amor [à distância]. E já não tardava muito
até que um sorriso largo viesse fazer morada no rosto de Engrácia:
ELE: “O teu corpo é um mundo,
Engrácia, meu amor. Um mundo para o qual não necessito de mapa. Não quero um
mapa! Deixa mais é que aí me perca... e me ache... e me perca tantas outras
vezes... Vou, mas volto, pois é no teu corpo que quero morar.”
Engrácia: “️Das coisas que mais me
encanta em ti é mesmo esse lado teu devasso. Mas uma devassidão poética.
Estarei por aqui para o caso de galanteios avulsos que queiras me ofertar. Não
os deixe acumular na algibeira do teu peito, meu poeta.”
ELE: “Desejo devolvido, amada minha,
lar dos meus versos. Quero os teus desejos todos, não te esqueças. E se nestas
noites frias o desejo bárbaro te visitar, procura-me. Encaixar-me-ei no que
tiveres para mim. Do gourmet ao vulgar. E não leves mapa. Deixa que nos
percamos um no outro.”
Engrácia: “Os teus desejos são uma
ordem. Só mais uma coisa: estarei vestida de verão só por tua causa, meu
menino-amor. Bem sabes que trago o sol p'ros dias frios. Procurar-te-ei.
Achar-te-ei. E que nos seja tudo permitido, do gourmet ao vulgar, pois apenas
os sábios amantes é que sabem diferenciar um do outro. Tens-me. [A]Guardo-te!” ️
ELE: “Tenho que admitir que estou a
anos de luz de saber usar as palavras como tu. Espero-te, Embaixadora do Sol.
Que o Verão seja o nosso papel de embrulho. Sempre!”
Suspiros de ambos os lados, fruto da troca de galanteios de quem
aprecia um amor de verdade, daquele que se experimenta em carne viva, com a
alma exposta por ter de o fazer assim tão de longe. Amor à distância, é certo,
mas de alma em riste [bendita tecnologia], como se tudo o resto
congelasse eu redor deles, para a celebração mútua pudesse ser consumada.
Engrácia, por sua vez, enroscou-se outra vez na alvura dos lençóis
que tanto contrastavam com a sua tez morena e limitou-se a sorrir um sorriso
cúmplice, mesmo que à distância, por que contra a malandragem do destino [e
a devassidão poética do ser amado] ela não se opunha jamais.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Sem notas de rodapé - Os homens arrumados em três gavetas
|Maria João
Há cerca de um mês tive oportunidade de conhecer a teoria proposta em 2004 pelo psicólogo americano Barry Schwartz, na obra The Paradox of Choice: Why More Is Less. O autor defende que a garantia da liberdade de escolha associada à multiplicação de opções, sustentada (não só, mas também) pelas plataformas comerciais, transformam o homem contemporâneo, paradoxalmente, num ser mais infeliz. A razão é simples: o universo a partir do qual se elege um ser ou um objecto tornou-se de tal modo vasto que o processo de selecção provoca ansiedade e exaustão, em resultado do aumento assinalável da possibilidade de errar. A hipótese de Barry Schwartz faz de imediato sentido quando nos recordamos do tempo que despendemos a percorrer um longo corredor do Jumbo que albergue todos os tipos de géis de banho ou desodorizantes disponíveis. Por instantes, não vos parece sedutora a ideia de uma prateleira com apenas três variedades de elixires bucais?
Pragmática como sou, decidi tentar simplificar a vida a metade da humanidade, rotulando a outra metade – os homens – em três categorias. Um trio de gavetas, em que os possamos arrumar e retirar de acordo com as nossas preferências, sabendo, previamente, a composição, a posologia e as contra-indicações de cada espécie. Trata-se, é claro, de um exercício de aberrante redução e definição de um campo complexo, com múltiplas variáveis. Embora consciente do seu carácter falível e artificial, não resisti a pô-lo em prática.
Suficiente experiência pessoal e abundantes conversas com ambos os sexos (uma amostra inválida para se extrair uma lei geral, bem sei), evidenciam a existência de três gavetas. A primeira, acessível assim que nos abeiramos da cómoda, ao nível da cintura, abre-se com a maior das facilidades. Lá encontram-se os “cordeirinhos”. Estes homens, geralmente com uma auto-estima em alerta vermelho, dão tudo o que conseguem à mulher com quem estão. Inclusivamente, as «calças». Dependem delas para planear o dia seguinte, são pisados e não ripostam. Ideais para pessoas que se satisfazem com a manipulação, o controlo e o apagamento dos outros, tornam-se, porém, desinteressantes para quem gosta de uma relação equilibrada, com partilha de decisões e um cultivo saudável de agendas pessoais e interesses próprios. Os “cordeirinhos” possuem, com frequência, consciência da assimetria dos contactos que cultivam. Podem, até mesmo, mascarar-se, numa fase inicial, de lobos maus. No entanto, mais cedo ou mais tarde, assumem a única postura que julgam garantir um final feliz: a da auto-anulação. Esta gaveta permanece eternamente vazia ou ocupada.
Sabiam que, quando temos três cartas viradas ao contrário, a maioria das pessoas inclina-se para virar a do meio? De facto, o sucesso da gaveta intermédia deve ser reconhecido. Habitam-na os “bodes”. Trata-se do espécime masculino da cabra, popularmente conhecido por outro vocábulo. A sua associação iconográfica à figura do diabo é estabelecida com firmeza na Idade Média. Não por acaso. Os “bodes” detêm um poder de sedução e conquista de almas comprovado há séculos. Descobriram e praticam até à exaustão o Santo Graal da captação do interesse de uma mulher: o coice, conhecido, na gíria, como o acto de “dar para trás”. Seguras ou instáveis, mais ou menos instruídas ou favorecidas pela mãe natureza, todas lhe vão comer à mão. Até ele deixar de estender, sem aparente motivo compreensível, a sua pata dianteira. Ou até a mulher recuperar amor-próprio suficiente para o mandar pastar. As estatísticas indicam, porém, a clara prevalência do primeiro desfecho. Deduz-se, com facilidade, que nesta gaveta, jamais repleta, se acha sempre alguma coisa, um pouco de tudo e de nada. Multiusos, não pertence a ninguém. Tudo o que couber pode potencialmente ser lá colocado e, regra geral, esquecido.
Por fim, na gaveta mais abaixo, aquela cujo acesso exige algum esforço (pelo menos o de dobrar as costas e, portanto, mudar a nossa linha do horizonte), residem os “cordeiros místicos”. Constituem o exemplar mais raro e difícil de descrever. Ironicamente, uma vez na sua presença, reconhecemo-los de imediato. Balanceiam, com naturalidade, o dar e o receber, a autonomia e a entrega sem reservas, a determinação de quem sabe o quer e o olhar compreensivo perante o mundo. Não receiam ser exigentes consigo e com os outros. Sabem o valor de um abraço. Defendem uma paridade construída dia-a-dia. Fazem desabrochar o que de melhor há na sua parceira.
Infelizmente, esta gaveta apresenta-se, na maior parte dos casos, cheia, comprometida já com qualquer utilização. Poucas vezes bem arrumada, é certo. Os “cordeiros místicos” são traídos pela sua esperança num encaixe perfeito. Insistem em tentar. Nesta gaveta alojam-se objectos grandes ou pequenos demais. Uma gaveta que, quando semi-ocupada, se sente vazia. Uma gaveta que, contendo algo volumoso e conscientemente desajustado, permanece sempre entreaberta, esperando, em segredo e no limiar mínimo da fé, o dia em que uma única peça a complete.
Todos os exercícios de interpretação da realidade desafiam-nos a reflectir até que ponto a nossa contextualidade afecta a validade da grelha conceptual adoptada. Preciso, precisamos todos, de desconstruir as nossas cómodas ou, pelo menos, de reconhecer que não existem gavetas estanques. Um “bode” pode ser um homem que se fartou de ser “cordeirinho”. É possível um “cordeiro místico” ressuscitar de um passado como “bode” ou “cordeirinho”. As experiências moldam-nos e cada pessoa desperta em nós reacções diferentes, por vezes mesmo antagónicas.
Os três substantivos são categorias puras, teóricas, extremadas, impermeáveis. A realidade, essa, é feita de contaminações. Homens – e, acrescente-se, mulheres – já se aproximaram, diria eu, em alguma situação da sua vida, de uma das tipologias referidas. Ainda assim, ao ler a crónica deste mês, o mais provável será sentir que não coincide com nenhuma na perfeição. Catalogar, classificar, etiquetar é a ferramenta mais velha para tentar lidar com o que nos cerca. Falha? Constantemente. E, porém, todos a aplicamos no nosso quotidiano, com maior ou menor consciência. No limite, trata-se de um mecanismo de sobrevivência: depois de atacado pelo primeiro tigre, o homem activa um pré-conceito assim que vê um segundo tigre, mesmo que infinitamente diverso. Talvez a vida na Suécia seja diferente. Na minha, suspeito que na nossa, nem o IKEA consegue oferecer soluções de arrumação convincentes.
Há cerca de um mês tive oportunidade de conhecer a teoria proposta em 2004 pelo psicólogo americano Barry Schwartz, na obra The Paradox of Choice: Why More Is Less. O autor defende que a garantia da liberdade de escolha associada à multiplicação de opções, sustentada (não só, mas também) pelas plataformas comerciais, transformam o homem contemporâneo, paradoxalmente, num ser mais infeliz. A razão é simples: o universo a partir do qual se elege um ser ou um objecto tornou-se de tal modo vasto que o processo de selecção provoca ansiedade e exaustão, em resultado do aumento assinalável da possibilidade de errar. A hipótese de Barry Schwartz faz de imediato sentido quando nos recordamos do tempo que despendemos a percorrer um longo corredor do Jumbo que albergue todos os tipos de géis de banho ou desodorizantes disponíveis. Por instantes, não vos parece sedutora a ideia de uma prateleira com apenas três variedades de elixires bucais?
Pragmática como sou, decidi tentar simplificar a vida a metade da humanidade, rotulando a outra metade – os homens – em três categorias. Um trio de gavetas, em que os possamos arrumar e retirar de acordo com as nossas preferências, sabendo, previamente, a composição, a posologia e as contra-indicações de cada espécie. Trata-se, é claro, de um exercício de aberrante redução e definição de um campo complexo, com múltiplas variáveis. Embora consciente do seu carácter falível e artificial, não resisti a pô-lo em prática.
Suficiente experiência pessoal e abundantes conversas com ambos os sexos (uma amostra inválida para se extrair uma lei geral, bem sei), evidenciam a existência de três gavetas. A primeira, acessível assim que nos abeiramos da cómoda, ao nível da cintura, abre-se com a maior das facilidades. Lá encontram-se os “cordeirinhos”. Estes homens, geralmente com uma auto-estima em alerta vermelho, dão tudo o que conseguem à mulher com quem estão. Inclusivamente, as «calças». Dependem delas para planear o dia seguinte, são pisados e não ripostam. Ideais para pessoas que se satisfazem com a manipulação, o controlo e o apagamento dos outros, tornam-se, porém, desinteressantes para quem gosta de uma relação equilibrada, com partilha de decisões e um cultivo saudável de agendas pessoais e interesses próprios. Os “cordeirinhos” possuem, com frequência, consciência da assimetria dos contactos que cultivam. Podem, até mesmo, mascarar-se, numa fase inicial, de lobos maus. No entanto, mais cedo ou mais tarde, assumem a única postura que julgam garantir um final feliz: a da auto-anulação. Esta gaveta permanece eternamente vazia ou ocupada.
Sabiam que, quando temos três cartas viradas ao contrário, a maioria das pessoas inclina-se para virar a do meio? De facto, o sucesso da gaveta intermédia deve ser reconhecido. Habitam-na os “bodes”. Trata-se do espécime masculino da cabra, popularmente conhecido por outro vocábulo. A sua associação iconográfica à figura do diabo é estabelecida com firmeza na Idade Média. Não por acaso. Os “bodes” detêm um poder de sedução e conquista de almas comprovado há séculos. Descobriram e praticam até à exaustão o Santo Graal da captação do interesse de uma mulher: o coice, conhecido, na gíria, como o acto de “dar para trás”. Seguras ou instáveis, mais ou menos instruídas ou favorecidas pela mãe natureza, todas lhe vão comer à mão. Até ele deixar de estender, sem aparente motivo compreensível, a sua pata dianteira. Ou até a mulher recuperar amor-próprio suficiente para o mandar pastar. As estatísticas indicam, porém, a clara prevalência do primeiro desfecho. Deduz-se, com facilidade, que nesta gaveta, jamais repleta, se acha sempre alguma coisa, um pouco de tudo e de nada. Multiusos, não pertence a ninguém. Tudo o que couber pode potencialmente ser lá colocado e, regra geral, esquecido.
Por fim, na gaveta mais abaixo, aquela cujo acesso exige algum esforço (pelo menos o de dobrar as costas e, portanto, mudar a nossa linha do horizonte), residem os “cordeiros místicos”. Constituem o exemplar mais raro e difícil de descrever. Ironicamente, uma vez na sua presença, reconhecemo-los de imediato. Balanceiam, com naturalidade, o dar e o receber, a autonomia e a entrega sem reservas, a determinação de quem sabe o quer e o olhar compreensivo perante o mundo. Não receiam ser exigentes consigo e com os outros. Sabem o valor de um abraço. Defendem uma paridade construída dia-a-dia. Fazem desabrochar o que de melhor há na sua parceira.
Infelizmente, esta gaveta apresenta-se, na maior parte dos casos, cheia, comprometida já com qualquer utilização. Poucas vezes bem arrumada, é certo. Os “cordeiros místicos” são traídos pela sua esperança num encaixe perfeito. Insistem em tentar. Nesta gaveta alojam-se objectos grandes ou pequenos demais. Uma gaveta que, quando semi-ocupada, se sente vazia. Uma gaveta que, contendo algo volumoso e conscientemente desajustado, permanece sempre entreaberta, esperando, em segredo e no limiar mínimo da fé, o dia em que uma única peça a complete.
Todos os exercícios de interpretação da realidade desafiam-nos a reflectir até que ponto a nossa contextualidade afecta a validade da grelha conceptual adoptada. Preciso, precisamos todos, de desconstruir as nossas cómodas ou, pelo menos, de reconhecer que não existem gavetas estanques. Um “bode” pode ser um homem que se fartou de ser “cordeirinho”. É possível um “cordeiro místico” ressuscitar de um passado como “bode” ou “cordeirinho”. As experiências moldam-nos e cada pessoa desperta em nós reacções diferentes, por vezes mesmo antagónicas.
Os três substantivos são categorias puras, teóricas, extremadas, impermeáveis. A realidade, essa, é feita de contaminações. Homens – e, acrescente-se, mulheres – já se aproximaram, diria eu, em alguma situação da sua vida, de uma das tipologias referidas. Ainda assim, ao ler a crónica deste mês, o mais provável será sentir que não coincide com nenhuma na perfeição. Catalogar, classificar, etiquetar é a ferramenta mais velha para tentar lidar com o que nos cerca. Falha? Constantemente. E, porém, todos a aplicamos no nosso quotidiano, com maior ou menor consciência. No limite, trata-se de um mecanismo de sobrevivência: depois de atacado pelo primeiro tigre, o homem activa um pré-conceito assim que vê um segundo tigre, mesmo que infinitamente diverso. Talvez a vida na Suécia seja diferente. Na minha, suspeito que na nossa, nem o IKEA consegue oferecer soluções de arrumação convincentes.
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
Sem consenso possível
Recensão
de Suicidas, de Henrique Manuel Bento Fialho
|Manuel
A. Domingos
Camus,
no seu muito celebrado O Mito de Sísifio,
afirma: «Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.» A
verdade é que o suicídio permanece uma questão e está longe de ser um problema
resolvido. Em algumas culturas, o suicida é um pária; noutras, o suicídio é a
única forma honrada de saída (por exemplo: os samurais). O suicídio está longe
de ser um tema consensual. Ou melhor: é consensual na medida em que não há
consenso possível.
Henrique
Manuel Bento Fialho (1974) decidiu compilar, num livro, um grupo de suicidas, desde Alejandra Pizarnik até
Yukio Mishima. Suicidas (Deriva, 2013)
é composto por cinquenta e um textos, onde predominam temas recorrentes na
escrita de Henrique Manuel Bento Fialho (que podem ser vistos como pequenos
suicídios): o tédio, o cansaço, o esquecimento, o absurdo, o amor, o desespero,
a domesticidade.
Sobre a
questão da domesticidade, em Henrique Manuel Bento Fialho, muito se poderia
dizer. O tema já tinha sido explorado em Estórias
Domésticas (OVNI, 2006). Quando pensamos na ideia de doméstico, pensamos, também, no seu oposto mais natural: selvagem. A palavra doméstico remete-nos para tudo aquilo que é passível de ser
controlado, que pertence ao foro privado, que nos transmite alguma segurança,
ou conforto. Ora em Henrique Manuel Bento Fialho o doméstico é algo que oprime, que sufoca. O doméstico é, em Suicidas, a forma mais recorrente de
suicídio. Insidioso, silencioso, o doméstico é tudo menos acolhedor; tudo menos
seguro: «O animal doméstico não se consola migrando do quarto para a sala, da
sala para a sozinha, da cozinha para a garagem (…) de um lado para o outro,
arrastando o seu desânimo, a sua desesperança, a sua melancolia, a modorra dos
dias (…) poder rastejar sobre o soalho afagado e ladrilhado é para ele uma
inominável aventura.» (p.16). A ironia é evidente. Ou ainda: «Basicamente, há
que concertar os amanhãs, o futuro, vivendo as carteiras vazias do presente. O
nosso problema é andarmos como formigas amestradas, domesticadas, para cá e
para lá com os olhos postos num mês de férias em Vera Cruz.» (p. 43).
Apesar
da domesticidade, Henrique Manuel Bento Fialho não está alheio ao mundo que o
rodeia. Muitas das vezes, a domesticidade dá lugar a um sentimento de revolta.
Exemplo disso é o texto “Manuel Laranjeira”. Retrato do tempo que corre (e que
tende a regular as organizações, os costumes, o consumo, a informação, a
educação; não podemos esquecer os mecanismos de sedução [cf. Lipovetsky]), é um
texto acutilante e que termina com uma espécie de “aviso à navegação”: «Por
isso continua a caminhar com a trela ao pescoço, oferece uma ponta da trela aos
admiráveis directores da congregação, adequa-lhes o discurso, abana a caudinha
e ladra béu béu enquanto eles te acenarem com um osso, tudo o que resta para
ti: uma ínfima e desprezível vaidade. Que a carne há muito foi distribuída.»
(p. 72).
Livro
denso, Suicidas tem a capacidade de
comover, quer pela poesia de algumas passagens, quer pela verdade que em si
encerra: «A revolta, como sabes, é um edifício sólido que por vezes cede aos mais eloquentes fenómenos da natureza.» (p. 122).
Henrique
Manuel Bento Fialho, Suicidas, Porto: Deriva, 2013, 123 pp.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2013
O óbvio
|Luís Filipe Cristóvão
Encaminhamo-nos para o óbvio diariamente. Acordamos a horas certas, saímos de casa com as roupas regulamentadas, picamos o ponto, sorrimos e queixamo-nos com a destreza habitual, tiramos o almoço da lancheira, tomamos um café no mesmo sítio de sempre, fumamos um cigarro a pensar no vazio. Depois, a mesma lenga-lenga, até que nos deitamos, de novo, à hora do costume.
Para o combater, resta-nos pouco mais do que a imaginação. Sonhamos sem sair do lugar, desejamos sem falar, buscamos sem que nada o permita entender. Lutamos contra o óbvio de forma silenciosa, mas obstinada, contagiando tudo o que nos rodeia com essa vontade de fazer diferente. Fugimos enquanto nos entregamos. Não é assim tão difícil de entender, nem tão complicado de perceber.
Parece que estamos aqui, mas estamos longe. E é esse o nosso sítio.
Encaminhamo-nos para o óbvio diariamente. Acordamos a horas certas, saímos de casa com as roupas regulamentadas, picamos o ponto, sorrimos e queixamo-nos com a destreza habitual, tiramos o almoço da lancheira, tomamos um café no mesmo sítio de sempre, fumamos um cigarro a pensar no vazio. Depois, a mesma lenga-lenga, até que nos deitamos, de novo, à hora do costume.
Para o combater, resta-nos pouco mais do que a imaginação. Sonhamos sem sair do lugar, desejamos sem falar, buscamos sem que nada o permita entender. Lutamos contra o óbvio de forma silenciosa, mas obstinada, contagiando tudo o que nos rodeia com essa vontade de fazer diferente. Fugimos enquanto nos entregamos. Não é assim tão difícil de entender, nem tão complicado de perceber.
Parece que estamos aqui, mas estamos longe. E é esse o nosso sítio.
domingo, 24 de novembro de 2013
É com a imaginação que morro
|Alexandra Antunes
É com a imaginação que morro
Ao relento
E tanto sou um deus reles e vil
Como um fantasma sem ideais.
É com a imaginação que escrevo
A compreensão do cais onde me sento
A paciência do universo
Que me obriga a ficar de pé.
É com a imaginação que roda
Num forte espasmo
A dolorosa luz
Como esta fúria e esta febre rangendo
Demasiadamente dentro de mim.
De súbito a cabeça começa a arder
Os nervos são de perto dissecados
E eu vejo a beleza disto tudo.
Por isso deixo
Que os ruidosos trópicos de ferro e fogo
Prendam a minha existência até
Ao limiar do sufoco.
A febre do meu cérebro sempre vence
— Vitorioso delírio que me verga
Porque me obriga a escrever.
Ao A.de C., o meu abraço do mundo dos vivos para o mundo dos mortos e beatificados
É com a imaginação que morro
Ao relento
E tanto sou um deus reles e vil
Como um fantasma sem ideais.
É com a imaginação que escrevo
A compreensão do cais onde me sento
A paciência do universo
Que me obriga a ficar de pé.
É com a imaginação que roda
Num forte espasmo
A dolorosa luz
Como esta fúria e esta febre rangendo
Demasiadamente dentro de mim.
De súbito a cabeça começa a arder
Os nervos são de perto dissecados
E eu vejo a beleza disto tudo.
Por isso deixo
Que os ruidosos trópicos de ferro e fogo
Prendam a minha existência até
Ao limiar do sufoco.
A febre do meu cérebro sempre vence
— Vitorioso delírio que me verga
Porque me obriga a escrever.
sábado, 23 de novembro de 2013
Toco as palavras arrefecidas
|Alexandra Antunes
Toco as palavras arrefecidas
Em cada inspiração
Aproximo o meu ritmo
Ao autêntico ao maior
Engenho
— Preciso escrever
Existindo lentamente na ordem
Divina das estrelas.
Toco as palavras arrefecidas
Em cada inspiração
Aproximo o meu ritmo
Ao autêntico ao maior
Engenho
— Preciso escrever
Existindo lentamente na ordem
Divina das estrelas.
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
Constrói-se o poema desmancha-se
|Alexandra Antunes
Constrói-se o poema desmancha-se
O poema — que o meu soluço apreenda
O calor da tua boca
Que as graves luas encontrem as marés subindo
Na tua noite negra e fria
Retira-se o papel das formas do rosto
A ideia desenvolve uma escura luz
Colhida ao caos esse lugar onde
Só a tua mão
É invisível.
Constrói-se o poema desmancha-se
O poema — que o meu soluço apreenda
O calor da tua boca
Que as graves luas encontrem as marés subindo
Na tua noite negra e fria
Retira-se o papel das formas do rosto
A ideia desenvolve uma escura luz
Colhida ao caos esse lugar onde
Só a tua mão
É invisível.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Porque queres destruir Deus
|Alexandra Antunes
Porque queres destruir Deus exercitas a
Extrema beleza.
Encostas a tua boca silenciosa
À palma da minha mão aberta:
— O meu mundo aumenta
De cada vez que respiras
Dás-me o teu mundo
Tenho-o
Nas minhas trémulas mãos
Aperto-te todo contra o meu peito
Fico completamente branca.
Abres-me pela boca
Pousas os dedos
Na minha parte intocável
Desmanchas os meus cabelos
Contra a luz quente e intacta
Gostarias de me ver sangrar:
A língua da navalha lambe
O meu ventre onde abres
Um golpe considerável
— O meu mundo recomeça a doer
Por dentro
Pareço sofrer de uma louca
Alegria.
O sangue desliza
Bate
No chão: — Amas-me
Com a mesma intensidade que têm
As feridas
Sabes que o meu sangue se funde
Bem no teu
Por isso me levaste contigo:
— Quando a primeira chuva de Setembro
Chegou.
Porque queres destruir Deus exercitas a
Extrema beleza.
Encostas a tua boca silenciosa
À palma da minha mão aberta:
— O meu mundo aumenta
De cada vez que respiras
Dás-me o teu mundo
Tenho-o
Nas minhas trémulas mãos
Aperto-te todo contra o meu peito
Fico completamente branca.
Abres-me pela boca
Pousas os dedos
Na minha parte intocável
Desmanchas os meus cabelos
Contra a luz quente e intacta
Gostarias de me ver sangrar:
A língua da navalha lambe
O meu ventre onde abres
Um golpe considerável
— O meu mundo recomeça a doer
Por dentro
Pareço sofrer de uma louca
Alegria.
O sangue desliza
Bate
No chão: — Amas-me
Com a mesma intensidade que têm
As feridas
Sabes que o meu sangue se funde
Bem no teu
Por isso me levaste contigo:
— Quando a primeira chuva de Setembro
Chegou.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
A tua voz é o poema que se escreve
|Alexandra Antunes
A tua voz é o poema que se escreve nas
Curvas planícies do meu corpo
Sou agarrada pela
Persistência de grandes mãos enquanto
Os espelhos rompem
A opacidade da terra
Dizes o meu nome tocas a minha
Inocência — e eu sinto que estou
Viva.
A tua voz é o poema que se escreve nas
Curvas planícies do meu corpo
Sou agarrada pela
Persistência de grandes mãos enquanto
Os espelhos rompem
A opacidade da terra
Dizes o meu nome tocas a minha
Inocência — e eu sinto que estou
Viva.
terça-feira, 19 de novembro de 2013
Olho por dentro
|Alexandra Antunes
Olho por dentro
Dos teus olhos:
Ao cimo as
Quebradas estrelas reluzindo
A meio uma
Pesada treva
E em baixo
Na fundura da tua memória e pensamento
Flutuando
A límpida casa dentro da qual me amas até
Ao fundo dos nossos
Precipícios
Então eu toco-te nesse ponto onde
Pulsam os bichos onde
Ardem as estações — o lugar
Em que estancamos a morte
O lugar dos teus
Braços brilhando inteiros
Nos meus.
Olho por dentro
Dos teus olhos:
Ao cimo as
Quebradas estrelas reluzindo
A meio uma
Pesada treva
E em baixo
Na fundura da tua memória e pensamento
Flutuando
A límpida casa dentro da qual me amas até
Ao fundo dos nossos
Precipícios
Então eu toco-te nesse ponto onde
Pulsam os bichos onde
Ardem as estações — o lugar
Em que estancamos a morte
O lugar dos teus
Braços brilhando inteiros
Nos meus.
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
Alexandra Antunes
Alexandra Antunes nasceu em Lisboa em 1979. É licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos e mestre em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Actualmente frequenta, na mesma instituição, o curso de doutoramento em História e Teoria das Ideias, e dirige, desde 2012, a editora Mecanismo Humano.
Publicou os seguintes livros de poesia: A palavra-janela (2010), Um ponto intenso a meio da eternidade (2012) e Trinta e Três (2013). Dedica-se à fotografia, desenvolve trabalhos gráficos onde explora a interacção da imagem com a palavra, muitas vezes através de representações tipográficas, e tem explorado o território da poesia visual nos trabalhos experimentais que expõe, ao longo da última década, em galerias e espaços virtuais.
Alguns dos seus poemas encontram-se dispersos na revista de poesia Piolho, entre outras.
sábado, 16 de novembro de 2013
Mais algumas lições das Substâncias Perigosas
| Pedro Eiras
54
Evolução
para o ponto de partida
Freud não é um escritor perigoso: é o
próprio perigo. Leio-o há muitos anos e cada texto que encontro perturba-me
como se fosse o primeiro. Não exagero se contar aqui que discuto, há anos, com
Freud. Literalmente. Não posso impedir-me. Leio, e vou sussurrando todas as
formas do meu espanto. Acho-o louco. Depois, genial. Depois, outra vez louco. Abandono
os livros, volto aos livros. Dou por mim a observar-me, de fora, por dentro,
por dentro de fora de mim – e vice-versa. Descubro pulsões e sintomas em cada um
dos meus gestos. Interpreto os meus gaguejos, os meus esquecimentos, as minhas
distracções. Invento-me. Deito-me com pavor. Acordo com angústia. Freud é o
próprio perigo, um génio – e também o meu pior pesadelo.
Impossível dominá-lo. Passou a vida a
rever as suas certezas, reescrevendo as teses nucleares dos livros anteriores.
Mesmo a ideia de que o sonho é a satisfação de um desejo, resumo mínimo de A
Interpretação dos Sonhos, em 1900, se verá secundarizada após o ensaio
fundamental “Para além do princípio de prazer”, de 1920. A pulsão erótica
encontrava uma tenebrosa rival: a pulsão de morte, o desejo de morrer, de
voltar a um estado originário de não-vida. Porque, como Freud descobria, somos
conduzidos pela vontade de repetir o que fomos anteriormente.
São páginas célebres, mas não resisto a
citar aqui a frase onde toda a psicanálise se revê numa homenagem a Tanatos:
Se aceitarmos como verdade sem excepção que
tudo o que é vivo morre por razões internas – se torna de novo
inorgânico – então ver-nos-emos obrigados a afirmar que “o alvo de toda a
vida é a morte” e, em retrospectiva, que “as coisas inanimadas existiram
antes das vivas”.
O alvo da vida é, não a sobrevivência, não
a vida eterna, mas a morte. O grande sono. Menos-que-sono.
E, se a vida é sonho, talvez se possa
dizer ainda que nós, a nossa vigília, a nossa cultura, toda a literatura e a
lógica, a matemática e o canto, a ignorância e a própria psicanálise, tudo isso
– é só um acidente, um complexo acidente que nos impede de sermos nada, “uma
história contada por um idiota, cheia de som e de fúria”, um intervalo entre
nada e nada, e nada mais.
sexta-feira, 15 de novembro de 2013
Algumas lições das Substâncias Perigosas
| Pedro Eiras
3
Onde
se defende que a vida é sonho
Algures na Poética,
Aristóteles sugere que a tragédia permite a catarse, ou purificação, de
sentimentos opressivos. Na verdade, não sei se compreendemos Aristóteles:
porque já não vivemos na Hélade, porque não podemos assistir às estreias de
Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, porque às vezes pensamos os aristotélicos antes
de pensar Aristóteles. Quanto à catarse, correram rios de tinta, e mais
ainda depois de haver Freud, e a sublimação, e o psicodrama…
A verdade é
que ninguém pode saber muito bem de que se trata aqui: a tragédia é “imitação
de uma acção de carácter elevado (...) que, suscitando o terror e a piedade,
tem por efeito uma purificação dessas emoções”, Poética dixit. E dixit
com génio, claro.
Mas, no
fundo, pergunto-me se a tragédia, a poesia, a literatura servem tal
apaziguamento. Que senti ao ler O Rei Édipo? E Crime e Castigo? Suscitaram
em mim terror e piedade, sim, mas não sei a que posso chamar “purificação”.
Porque esse terror, essa piedade – carrego-os comigo desde o instante em que li
Sófocles e Dostoievski. Nenhum regresso a um estado purificado, um estado sonolento
original.
Freud, defendendo que o sonho é só uma perturbação
necessária do sono, um ajuste de contas com as pulsões e os dias, pressupõe esse
estado neutro, vazio, alheado, que seria a pacificação absoluta pós-literatura.
Todavia, a
crer em Calderón, a vida é sonho, não sono.
Talvez a
literatura não purifique. Talvez deixe o leitor naquele estado de maldição a
que a antropologia chama tabu. E desta vez nenhuma quarentena o pode recuperar
para uso social. Fica indelevelmente impuro.
Mas não há
que lamentá-lo. O leitor procura formas de loucura inoculáveis, é capaz de
pagar por elas, não dormir por elas – até matar por elas. Quer tornar-se capaz
de literatura, conhecer o terror, a piedade, pranto e ranger de dentes, ser
digno de ser vítima do livro. Não é pequena missão.
Escolhendo
na estante, o leitor pergunta: será este o livro que me trará o terror e a
piedade? será este o livro que me trará a morte? poderei sobreviver-lhe? E sabe
que a solução da sobrevivência tem de ser inventada de cada vez, porque a
doença inoculada é única, nunca existiu. O que ele procura não é a purificação.
É o insustentável. Quer tornar-se digno do insustentável. Só deve ler se for
capaz de viver o livro até morrer por ordem dele.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
A Cura
|Pedro Eiras
Começar a ver os outros como
doentes e como mortais foi só metade do meu mal. Desatei a sentir as doenças e
a mortalidade também em mim. Descobria sintomas ao espelho, no meu reflexo.
Estudava-me agora mais do que aos compêndios, ora porque tinha a realidade
presente e clara no meu próprio corpo, ora porque não valia a pena estudar, se
ia morrer tão cedo. A morte, cogitava, não acontece só aos outros; aliás, é só
a mim que acontece. Dos outros, posso medir uma pulsação que deixa de bater, um
cérebro que perde a actividade, mas isso é só uma linguagem, signos, números. E
estudava a minha cara fúnebre ao espelho, a tabela das minhas febres, uma
mancha suspeita que aparecera na minha mão esquerda.
Claro, já tinha ouvido falar da hipocondria que assalta os estudantes de Medicina. Já me tinham profetizado estes medos; e eu próprio achava divertida a ideia, e declarava-me pronto para o terror. Tratava a hipocondria com a mesma abstracção que me fazia estudar os órgãos desenhados nos compêndios, sem encontrar um elo entre o desenho e a realidade, ou entre a realidade e o meu corpo enquanto coisa real. Antes da experiência, a hipocondria tinha tanta existência para mim como a dor tem relação com a palavra “dor” escrita nos livros. Mas durante a experiência, como acontece àquelas figuras das comédias que só fanfarronam enquanto o perigo está longe, esqueci todos os avisos cheios de teoria e deixei-me afundar no pavor infinito.
Foi então que conheci a Rita e que li o Eclesiastes.
Claro, já tinha ouvido falar da hipocondria que assalta os estudantes de Medicina. Já me tinham profetizado estes medos; e eu próprio achava divertida a ideia, e declarava-me pronto para o terror. Tratava a hipocondria com a mesma abstracção que me fazia estudar os órgãos desenhados nos compêndios, sem encontrar um elo entre o desenho e a realidade, ou entre a realidade e o meu corpo enquanto coisa real. Antes da experiência, a hipocondria tinha tanta existência para mim como a dor tem relação com a palavra “dor” escrita nos livros. Mas durante a experiência, como acontece àquelas figuras das comédias que só fanfarronam enquanto o perigo está longe, esqueci todos os avisos cheios de teoria e deixei-me afundar no pavor infinito.
Foi então que conheci a Rita e que li o Eclesiastes.
(pp. 10-11)
Mas agora devo falar do meu
Mestre.
Um dia, muitos anos depois, comecei a estudar psicanálise com o Professor Wagner. O Professor gostava de ouvir as óperas do seu ilustre antepassado: tinha no gabinete da Faculdade um gira-discos sempre a tocar excertos de Tannhauser, dos Mestres Cantores de Nuremberga, do Parsifal. Media quase dois metros. Deixava crescer os cabelos para lá dos tamanhos tacitamente previstos pela academia, e uma barba grisalha e caótica. Entendia que lhe cabia estabelecer as regras. Quando não faltava inesperadamente, prolongava as aulas muito depois da hora, e ninguém se atrevia a deixar o anfiteatro. Leccionava Psicanálise e Religião, analisava páginas de Totem e Tabu, de O Futuro de uma Ilusão, de Moisés e o Monoteísmo, subscrevendo as críticas mais perturbadoras de Freud ao cristianismo, escandalizando os ouvintes, deixando entrever que achava o próprio Freud tímido na desconstrução do divino. Recusava o microfone: tinha uma voz tonitruante que alcançava as últimas filas. Nos corredores, era fácil adivinhar que o Professor Wagner se aproximava: ao longe, parecia um navio a furar as ondas de alunos; vinha sempre a falar alto com alguns orientandos que mal o podiam acompanhar, explorando um conceito, disparando sugestões bibliográficas. E às vezes, se escasseavam os discípulos, trauteava um tema do Tristão e Isolda.
Um dia, muitos anos depois, comecei a estudar psicanálise com o Professor Wagner. O Professor gostava de ouvir as óperas do seu ilustre antepassado: tinha no gabinete da Faculdade um gira-discos sempre a tocar excertos de Tannhauser, dos Mestres Cantores de Nuremberga, do Parsifal. Media quase dois metros. Deixava crescer os cabelos para lá dos tamanhos tacitamente previstos pela academia, e uma barba grisalha e caótica. Entendia que lhe cabia estabelecer as regras. Quando não faltava inesperadamente, prolongava as aulas muito depois da hora, e ninguém se atrevia a deixar o anfiteatro. Leccionava Psicanálise e Religião, analisava páginas de Totem e Tabu, de O Futuro de uma Ilusão, de Moisés e o Monoteísmo, subscrevendo as críticas mais perturbadoras de Freud ao cristianismo, escandalizando os ouvintes, deixando entrever que achava o próprio Freud tímido na desconstrução do divino. Recusava o microfone: tinha uma voz tonitruante que alcançava as últimas filas. Nos corredores, era fácil adivinhar que o Professor Wagner se aproximava: ao longe, parecia um navio a furar as ondas de alunos; vinha sempre a falar alto com alguns orientandos que mal o podiam acompanhar, explorando um conceito, disparando sugestões bibliográficas. E às vezes, se escasseavam os discípulos, trauteava um tema do Tristão e Isolda.
pp. 47-48
A Cura, Pedro Eiras, Quidnovi Editores
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
Para lá do bem e da Cura. - Parte II
Sobre A Cura, de Pedro Eiras
|Tiago Sousa Garcia
|Tiago Sousa Garcia
Há alguns plot twists
que vou optar por manter secretos mas, mesmo que os revelasse, não trairia em
nada o prazer da leitura. Os óbvios: a identidade do paciente, o desfecho, a
identidade do narrador. O primeiro pode ser desfeito com o simples folhear das
páginas; os outros dois vão-se tornando progressivamente mais claros ao longo
da narrativa e, quando chegam, não são exatamente uma surpresa. Mas também não
teriam que ser. Mais uma vez, A Cura não é um policial, não caminha para
uma revelação final que explicará tudo; A Cura, como a cura da
psicanálise, é um processo, e é nesse processo que se esconde o prazer da
leitura. A narração, percebemos mais tarde, não nos quer esconder nada, até nos
poderia revelar nas primeiras páginas o desfecho – e fá-lo, se estivermos
atentos – sem qualquer prejuízo. O narrador faz com um leitor o que um analista
faz com um analisando: aponta os caminhos, mas deixa que seja o próprio a
percorrê-los sozinho.
É muito difícil falar de
um livro que é todo ele interditos: um narrador quase sem nome, um mensageiro X.,
um paciente Z., uma companheira que, apesar de ser dos poucos personagens com
nome, é talvez das mais obscuras, um professor com nome de compositor alemão
que é como um pai, ou como um Deus, ou como um Deus Pai, apesar do quase
ateísmo de quase todos os envolvidos. A sequência de consultas opõe – e
sublinho opõe – o narrador e Z., mas todos os outros personagens vão sendo
convocados pelo depoimento. Há ainda mais um, talvez o maior de todos, que se
posiciona acima do narrador, olhando-o, sobranceiro: Freud. Cada consulta é
encimada com uma epígrafe de Freud, desde A Interpretação dos Sonhos, de
1900 até Moisés e o Monoteísmo, de 1938 – daí a breve história da
psicanálise no título. Há duas excepções a esta regra: prólogo e epílogo, o
primeiro com Freud, mas anterior ao texto seminal de 1900, o segundo com o Eclesiastes,
a única epígrafe que não é retirada da obra do fundador da psicanálise e,
também por isso, talvez a mais importante. Mas esta não é a primeira vez que o Eclesiastes
surge na narrativa. Desde as primeiras páginas que o analista nos confessa uma
relação estranha e próxima com o Eclesiastes. Mais estranha ainda porque
o narrador declara não ser religioso, nem na sua juventude, apesar de ter sido
educado na fé católica.
As relações deste narrador
são, aliás, todas estranhas e estranhamente próximas. A relação com a
companheira é quase simbiótica a princípio e quase parasítica no fim; a relação
com o professor Wagner, o mestre e modelo, é dependente iniciou-se com uma
mentira menos que mentira; a relação com Z., o paciente das consultas, essa, é
ainda mais complexa.
A relação do analista com
Freud é, apesar de tudo, a mais clara. Freud é Deus, as suas obras são a
palavra sagrada. O analista defende Freud contra tudo e contra todos, batalha
para o recuperar num mundo que quer desacreditar a sua teoria, enraivece-se com
a mera referência ao anti-cristo Jung. E, todavia, apesar de tudo o que disse
até agora, não sei se posso considerar A Cura como um romance acerca da
psicanálise.
A psicanálise está presente
em tudo, é certo. É o método e o caminho do narrador. Mas reduzir o romance à
psicanálise seria, claro está, redutor. Se a psicanálise é o foco de tanta
atenção, é-o apenas porque este mundo nos é dado a conhecer através dos olhos
de um personagem que vê tudo pela psicanálise, que não consegue deixar de
enquadrar o que o rodeia num quadro de egos, ids e superegos, Édipos e Laios,
Hamlets, conscientes e inconscientes. A Cura mostra-nos como a
psicanálise é muito mais que uma ciência ou teoria absurda – dependendo de que
lado da barricada nos decidimos colocar. A psicanálise, para este narrador, é o
óculo que lhe permite ver e entender o mundo, como a religião para um crente.
Os paralelos entre a
psicanálise e a religião multiplicam-se com uma claridade impressionante para
todos menos para o próprio narrador. Este paradoxo de uma ciência quase
religião é, talvez, o conflito central deste livro. Também nesse campo A
Cura marca pontos: não é apenas um romance mas uma tese; mas não é um
romance de tese, isto é, quando o livro termina percebemos que não fomos
expostos a argumentos a favor ou contra a psicanálise ou a religião;
entenderemos o desfecho de maneiras opostas, de acordo com a nossa própria
posição. Mais, se esta não for clara, reconheceremos a nossa posição no
confronto, nessa altura. Vou ser mais claro: A Cura não nos descreve
apenas nem a análise de Z., nem a auto-análise do narrador; o romance leva o
leitor a descobrir algumas coisas sobre si próprio, como se o analisando fosse
o próprio leitor e o analista o romance.
Mas há mais. Talvez por
defeito profissional, ao longo destas páginas fui percebendo também – ou antes,
o livro levou-me a perceber – como a psicanálise e a crítica literária são,
tantas vezes, similares. A interpretação de um sonho ou a interpretação de um
romance são, frequentemente, o mesmo processo com objectos distintos. O
analista procura o que o sonho não diz, o crítico procura o que o livro não
diz; o analista constrói pontes entre o sonho e o real, o crítico constrói
pontes entre o romance e o real; o analista afirma que todos os seus
diagnósticos estão no analisando, e que mais não fez que as trazer ao
consciente, o crítico jura a pés juntos que as suas conclusões estão no texto,
e que ele não fez mais que as trazer à luz. Podia continuar.
Estas são apenas algumas
das razões que me levaram a escolher A Cura para publicação, mas havia
mais, muito mais. No entanto, o motivo primeiro e maior é muito simples: o
livro é bom, muito bom. Sim, eu sei, o crítico não deve fazer juízos de valor.
Porém, quando li este livro pela primeira vez, não o fiz como crítico. Li-o
como representante de uma entidade que mais não faz que criar juízos de valor
acerca do mundo literário: este é bom, este não é, aquele deve ser publicado,
aquele não deve; e, mais do que cruel, para mim a oportunidade de olhar para um
livro e procurar uma resposta simples sempre foi muito libertadora. Os editores
são, talvez, a mais determinante das portas do cânone: se um livro não é
publicado, não existe. Por isso espero que me perdoem o orgulho imenso que
tenho em ter ajudado este livro a existir.
terça-feira, 12 de novembro de 2013
Para lá do bem e da Cura. - Parte I
Sobre A Cura, de Pedro Eiras
|Tiago Sousa Garcia
|Tiago Sousa Garcia
Pensei em começar com uma
piada. Ahem: quantos psicanalistas é que são precisos para mudar uma lâmpada?
Dois, um para mudar a lâmpada, o outro para segurar no pénis, quer dizer, na
escada! Acertaram, A Cura é um
livro sobre corridas de cavalos.
Freud teria certamente
muita coisa a dizer acerca do motivo pelo qual eu tentei começar por fazer rir.
A verdade é que não estou aqui para falar de psicanálise – nem saberia como
fazê-lo. Estou aqui para falar de um livro fantástico que tive o prazer de
ajudar a trazer a público.
Fantástico. Sabe bem poder
usar adjectivos nestas coisas. Há algum tempo atrás, quando estava ali no lugar
onde está a Andreia, tentava nunca usava estas palavras. Estava a representar
uma editora e sabia que ninguém no público queria ouvir um vendedor. Hoje posso
usar todos os adjectivos que me apeteça: fantástico, brilhante, inquietante. A
Cura é tudo isto. Mas já lá vamos.
Antes de falar um
bocadinho sobre o livro, queria partilhar o modo como o livro chegou até aqui.
Conheci o Pedro Eiras há já alguns anos, não muitos, não poucos. Foi meu
professor na Faculdade de Letras em diferentes disciplinas, três, penso eu. Por
algum acaso, não sei bem como – sinceramente não me lembro muito bem – ficamos
amigos. Os anos passaram, contra todas as probabilidades comecei a trabalhar
exactamente naquilo que desejava: uma editora; pagavam-me para, entre outras
coisas, ler e sugerir o que podia ou devia ser publicado. A certa altura, fui
tomar café com o Pedro. Já não estávamos juntos há muito tempo, lembro-me que,
nesse fim de tarde, falámos durante horas. Já há algum tempo que pensava em
desafiá-lo para publicar alguma coisa connosco. Quando nos encontramos nesse
dia, tinha também isso na cabeça mas, por algum motivo, não o disse. Talvez por
pudor, somos amigos, mas a nossa relação começou com um desequilíbrio de poder,
ele o mestre, eu o discípulo. Na cabeça do Pedro, percebi depois, algo de
semelhante se devia estar a passar. Felizmente para todos, ele foi menos
amedrontado que eu. Quando nos despedíamos, estendeu-me um manuscrito, pediu-me
que o lesse. Era um romance, este romance. Li-o avidamente e, alguns dias
depois, sabia que o queria publicar. Meses passaram, aqui estamos.
Este não é o primeiro
livro do Pedro Eiras, nem sequer o primeiro romance. Muito longe disso. Um
rápido escrutínio da última página do livro é suficiente para que se perceba a
dimensão gigantesca da sua obra. Romance, ensaio, conto, teatro, poesia. A certa
altura, já o cumprimentava a perguntar quando é que saía mais um livro. Mas a
dimensão não é nada, a prolixidade é irrelevante. Relevante é a qualidade
inegável e o talento do Pedro Eiras em cada um dos seus livros. É um ensaísta
corajoso, um dramaturgo que gosta de torturar os seus personagens, um
romancista que se delicia com as grandes questões que coloca aos seus diminutos
protagonistas.
Se me perguntarem, não
saberei enumerar quais as razões me conduziram à certeza de que tinha que
publicar este livro. Há muitos factores em jogo numa decisão, alguns muito
prosaicos e muito pouco românticos. Publicar um livro é, apesar de tudo, um
negócio e, por muito que assim quisesse, não poderia ignorar a responsabilidade
que tinha para com os meus colegas de trabalho. Para nós, o mundo editorial
era, acima de tudo, o nosso ganha pão. Por isso também, quando o Pedro me
estendeu o manuscrito, temi que fosse tentado a publicá-lo apenas porque éramos
amigos, mas ele logo me tranquilizou. Disse-me que, antes de tudo, procurava a
minha opinião sincera e que, caso eu não gostasse ou não o pudesse publicar,
não era importante. Quando li as primeiras páginas, percebi que todas estas
dúvidas eram irrelevantes. Lembro-me de a Paula Almeida me dizer, nos meus
primeiros dias na editora, que se descobre se um livro é bom, ou não, muito
rapidamente. Admito que a minha inexperiência me impediu de perceber
imediatamente o que isso queria dizer. Pensei: sim, um livro mau é fácil de
identificar. E é verdade, das centenas de livros que recebia, às vezes não
precisava de mais do que uns segundos para perceber se devia continuar a ler ou
não. Há casos lendários. O que eu não percebi: um livro bom também se pode
identificar em segundos. Foi o que aconteceu com A Cura.
Diz-se que um livro não se
julga pela capa – talvez sim, talvez não – mas certamente que muito se pode
dizer de um livro pelo título. Este agarrou-me logo pelo título, ou antes,
pelos títulos. Uma Sátira ou Algumas Improváveis Consequências do Juramento
de Hipócrates ou A Cura ou Breve História da Psicanálise ou Por que Razão Tudo
o que Escrevo se Transforma Logo Noutra Coisa Diferente. Era um título
generoso e, aquele A Cura, central, era particularmente interessante. Do
restante título podia tirar algumas conclusões: Sátira, não levar demasiado a
sério; Juramento de Hipócrates, envolve médicos que se vêm obrigados a alguma
coisa; Psicanálise, bem, envolve psicanálise; Porque razão tudo o que escrevo,
temos um narrador na primeira pessoa que se vê a perder o controlo da sua narrativa,
a própria multiplicidade de títulos me dava sinais de uma narrativa imprecisa,
cheia de avanços e recuos, de ditos, não ditos, interditos e incertezas. Mas
aquele A Cura, central, sintético, dizia muito mas deixava-me a desejar muito
mais: este livro era um processo, não um resultado; quem curava, quem era
curado? Curado de quê, como, por quem? Um livro mau dar-me-ia todas as
respostas, mas este não é um livro mau.
Depois, as primeiras
páginas. É uma confissão, uma memória, um caso clínico, mas não um diário. Não
há datas, nem sequer capítulos. Há consultas, e toda a narrativa se arranja à
volta destes momentos centrais. A consulta, isto é, o processo de cura, é o
essencial, tudo o resto é acessório.
Má escolha de palavras: o
narrador, descobrimos rapidamente, é um analista freudiano, por isso nada é
acessório, tudo tem um significado. Esta é uma das grandes vitórias deste
livro: qualquer leitor, mesmo o mais desprevenido, percebe rapidamente que tem
de estar atento a tudo, que tudo tem um nível de significância escondido, e
fá-lo sem recorrer à simplicidade do policial, que imediatamente convida o
leitor a fazer parte do jogo, nem à complexidade do ilegível. Subtilmente, o
narrador mostra ao leitor como ler o livro: procurar o não dito, ver todas as palavras
como imprescindíveis. Desde as primeiras páginas que percebemos que não há uma
palavra a mais, não há excursos, não há inconsequências, tudo o que aparece na
página deve ser lido como se fosse o nome do assassino.
(continua)
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
O autor deve sair ferido, morto e ressuscitado
Conversa com Pedro Eiras a propósito do romance A Cura
(QuidNovi, 2012)
|Andreia Faria
- Descreve um book trailer possível
para A Cura.
Dois homens lutam. Um é psicanalista; o
outro, ***. Um round por mês: treze
consultas, mais um prólogo para definir as regras, um epílogo para sarar as
feridas. Como se uma ferida alguma vez sarasse.
- Um dos títulos possíveis para a A Cura, apresentado inclusivamente na capa, é Uma sátira. Uma sátira de quê ou de quem?
Outro dos títulos possíveis é Por que razão tudo o que escrevo se
transforma logo noutra coisa diferente? Talvez este livro comece por
satirizar um alvo, e termine a satirizar outro... Em todo o caso: uma sátira de
mim a mesmo mesmo, dividido entre várias personagens. Como sempre.
- O autor sai ileso das suas ficções?
Não. De maneira nenhuma. Ou então, é porque
as coisas correram mal, e então a vida continua, incólume. Mas o autor deve
sair ferido, morto e ressuscitado: absolutamente diferente de si mesmo depois
de escrever o livro. E não por um programa, uma metamorfose mecânica, mas
porque ao escrever atravessa um lugar que não conhecia, que ainda não existia.
Ele parte para esse lugar desconhecido, mas quem regressa já é o outro.
- Ouvi dizer que Freud é um dos teus autores favoritos, e A Cura vive muito das leituras que dele fizeste. A tua relação com Freud fica maculada pelas descobertas que o teu narrador faz ao longo do livro, ou continuas a lê-lo com a mesma frescura?
Bem, a minha relação com Freud nunca foi
imaculada; acho que ninguém pode ter uma relação imaculada com Freud, nem
sequer antes de o ler (somos freudianos e anti-freudianos mesmo antes de abrir A Interpretação dos Sonhos). Lembro-me
das minhas primeiras leituras, de Introdução
à Psicanálise, de Uma Recordação de
Infância de Leonardo da Vinci, etc.: eram leituras violentas, irascíveis.
Porquê? Muitas vezes, é para responder a esta pergunta que escrevo. Dito isto,
acho Freud um autor magnífico, e quanto mais discuto com ele mais ele me
fascina. Se as descobertas do meu narrador “maculam” Freud, isso só pode tornar
a leitura mais fascinante. Não me interessa fazer as pazes com Freud.
- O Tiago Sousa Garcia, que apresentou o teu livro no Porto, disse a certa altura que a psicanálise se assemelha em muito à crítica literária: na minúcia da análise, na ausência de crença na inocência do texto, na procura do não-dito, do que o texto quer esconder. Estás de acordo?
Sim, absolutamente de acordo. Sou professor
de literatura na Faculdade de Letras do Porto, e espero que as minhas aulas
sejam uma espécie de psicanálise do texto lido. Uma aula é interrogar um breve
poema durante uma, duas horas, como se fosse um analisando num divã. Ao fim de
duas horas, com sorte, o poema começa a revelar o seu inconsciente. E duas
horas é pouco tempo, porque a profundidade de um poema é infinita. Então, nenhuma
inocência e nenhum acaso: tudo fala, cada vírgula esconde um crime, cada
pergunta uma redenção.
- Miguel Real disse no JL que és um dos poucos críticos literários que ousa escrever romances e “sujar as mãos”. Sentes que, enquanto crítico, a escrita de romances te põe a cabeça a prémio?
Espero que os meus ensaios literários
estejam tão maculados como as minhas ficções: que se sintam os grãos de terra,
o atrito da escrita em todos os meus textos... E, no fundo, talvez não haja
contradição: eu coloco-me problemas a mim mesmo; se lhes tento responder com
argumentos teóricos, leituras lentas de textos de outros autores, ou com
personagens e enredos, o desafio seminal é o mesmo. Espero que os meus romances
sejam uma forma de pensar, como os meus ensaios são uma forma de ficção, uma
dramaturgia do pensamento.
- Em alguma circunstância o teu escritor foi boicotado pelo teu crítico?
Não. O crítico ajuda o escritor, e
vice-versa. O crítico lança obstáculos ao escritor, mas isso serve para o
acordar. E o escritor usa o crítico para tornar a escrita mais difícil. Na
verdade, nem sequer consigo distingui-los: trabalham juntos, sujam-se juntos.
- Como vês o teu lugar de escritor numa altura em que a publicação de livros passa da democratização à vulgarização? O acesso à publicação de tanta gente que, há umas décadas atrás, não seria validado como "autor(a)", abre novas possibilidades ou limita o trabalho do escritor tal como o entendes?
Não tenho nada contra o “acesso à
publicação”; pelo contrário. Não me reconheço, como leitor, em muitos dos
livros que são publicados hoje, mas isso também vale para os livros de qualquer
época histórica. Acho que um entendimento crítico do que se escreve e publica é
fundamental, claro, sobretudo quando existe uma tal sobrecarga de textos em
circulação. Mas é uma questão que não me incomoda; o que realmente importa é
só: que, no meio de tantos escritos, surjam os livros valiosos, os que me ferem.
Post-scriptum: ainda sobre as máculas, a sujidade, o
atrito –
em Stalker,
de Andrei Tarkovsky, há um travelling
picado sobre textos, moedas, ícones, terra, tudo submerso em água. Vemos esses
restos de civilização ascenderem na tela, devagar, muito tempo. Tarkovsky deitou
esses bocados de livros, textos e imagens na água, mãos-cheias de terra por
cima, e aos técnicos que preparavam o filme, estupefactos, explicou: «Isto – é
a matéria de que os sonhos são feitos.»