|Tiago Sousa Garcia
Pensei em começar com uma
piada. Ahem: quantos psicanalistas é que são precisos para mudar uma lâmpada?
Dois, um para mudar a lâmpada, o outro para segurar no pénis, quer dizer, na
escada! Acertaram, A Cura é um
livro sobre corridas de cavalos.
Freud teria certamente
muita coisa a dizer acerca do motivo pelo qual eu tentei começar por fazer rir.
A verdade é que não estou aqui para falar de psicanálise – nem saberia como
fazê-lo. Estou aqui para falar de um livro fantástico que tive o prazer de
ajudar a trazer a público.
Fantástico. Sabe bem poder
usar adjectivos nestas coisas. Há algum tempo atrás, quando estava ali no lugar
onde está a Andreia, tentava nunca usava estas palavras. Estava a representar
uma editora e sabia que ninguém no público queria ouvir um vendedor. Hoje posso
usar todos os adjectivos que me apeteça: fantástico, brilhante, inquietante. A
Cura é tudo isto. Mas já lá vamos.
Antes de falar um
bocadinho sobre o livro, queria partilhar o modo como o livro chegou até aqui.
Conheci o Pedro Eiras há já alguns anos, não muitos, não poucos. Foi meu
professor na Faculdade de Letras em diferentes disciplinas, três, penso eu. Por
algum acaso, não sei bem como – sinceramente não me lembro muito bem – ficamos
amigos. Os anos passaram, contra todas as probabilidades comecei a trabalhar
exactamente naquilo que desejava: uma editora; pagavam-me para, entre outras
coisas, ler e sugerir o que podia ou devia ser publicado. A certa altura, fui
tomar café com o Pedro. Já não estávamos juntos há muito tempo, lembro-me que,
nesse fim de tarde, falámos durante horas. Já há algum tempo que pensava em
desafiá-lo para publicar alguma coisa connosco. Quando nos encontramos nesse
dia, tinha também isso na cabeça mas, por algum motivo, não o disse. Talvez por
pudor, somos amigos, mas a nossa relação começou com um desequilíbrio de poder,
ele o mestre, eu o discípulo. Na cabeça do Pedro, percebi depois, algo de
semelhante se devia estar a passar. Felizmente para todos, ele foi menos
amedrontado que eu. Quando nos despedíamos, estendeu-me um manuscrito, pediu-me
que o lesse. Era um romance, este romance. Li-o avidamente e, alguns dias
depois, sabia que o queria publicar. Meses passaram, aqui estamos.
Este não é o primeiro
livro do Pedro Eiras, nem sequer o primeiro romance. Muito longe disso. Um
rápido escrutínio da última página do livro é suficiente para que se perceba a
dimensão gigantesca da sua obra. Romance, ensaio, conto, teatro, poesia. A certa
altura, já o cumprimentava a perguntar quando é que saía mais um livro. Mas a
dimensão não é nada, a prolixidade é irrelevante. Relevante é a qualidade
inegável e o talento do Pedro Eiras em cada um dos seus livros. É um ensaísta
corajoso, um dramaturgo que gosta de torturar os seus personagens, um
romancista que se delicia com as grandes questões que coloca aos seus diminutos
protagonistas.
Se me perguntarem, não
saberei enumerar quais as razões me conduziram à certeza de que tinha que
publicar este livro. Há muitos factores em jogo numa decisão, alguns muito
prosaicos e muito pouco românticos. Publicar um livro é, apesar de tudo, um
negócio e, por muito que assim quisesse, não poderia ignorar a responsabilidade
que tinha para com os meus colegas de trabalho. Para nós, o mundo editorial
era, acima de tudo, o nosso ganha pão. Por isso também, quando o Pedro me
estendeu o manuscrito, temi que fosse tentado a publicá-lo apenas porque éramos
amigos, mas ele logo me tranquilizou. Disse-me que, antes de tudo, procurava a
minha opinião sincera e que, caso eu não gostasse ou não o pudesse publicar,
não era importante. Quando li as primeiras páginas, percebi que todas estas
dúvidas eram irrelevantes. Lembro-me de a Paula Almeida me dizer, nos meus
primeiros dias na editora, que se descobre se um livro é bom, ou não, muito
rapidamente. Admito que a minha inexperiência me impediu de perceber
imediatamente o que isso queria dizer. Pensei: sim, um livro mau é fácil de
identificar. E é verdade, das centenas de livros que recebia, às vezes não
precisava de mais do que uns segundos para perceber se devia continuar a ler ou
não. Há casos lendários. O que eu não percebi: um livro bom também se pode
identificar em segundos. Foi o que aconteceu com A Cura.
Diz-se que um livro não se
julga pela capa – talvez sim, talvez não – mas certamente que muito se pode
dizer de um livro pelo título. Este agarrou-me logo pelo título, ou antes,
pelos títulos. Uma Sátira ou Algumas Improváveis Consequências do Juramento
de Hipócrates ou A Cura ou Breve História da Psicanálise ou Por que Razão Tudo
o que Escrevo se Transforma Logo Noutra Coisa Diferente. Era um título
generoso e, aquele A Cura, central, era particularmente interessante. Do
restante título podia tirar algumas conclusões: Sátira, não levar demasiado a
sério; Juramento de Hipócrates, envolve médicos que se vêm obrigados a alguma
coisa; Psicanálise, bem, envolve psicanálise; Porque razão tudo o que escrevo,
temos um narrador na primeira pessoa que se vê a perder o controlo da sua narrativa,
a própria multiplicidade de títulos me dava sinais de uma narrativa imprecisa,
cheia de avanços e recuos, de ditos, não ditos, interditos e incertezas. Mas
aquele A Cura, central, sintético, dizia muito mas deixava-me a desejar muito
mais: este livro era um processo, não um resultado; quem curava, quem era
curado? Curado de quê, como, por quem? Um livro mau dar-me-ia todas as
respostas, mas este não é um livro mau.
Depois, as primeiras
páginas. É uma confissão, uma memória, um caso clínico, mas não um diário. Não
há datas, nem sequer capítulos. Há consultas, e toda a narrativa se arranja à
volta destes momentos centrais. A consulta, isto é, o processo de cura, é o
essencial, tudo o resto é acessório.
Má escolha de palavras: o
narrador, descobrimos rapidamente, é um analista freudiano, por isso nada é
acessório, tudo tem um significado. Esta é uma das grandes vitórias deste
livro: qualquer leitor, mesmo o mais desprevenido, percebe rapidamente que tem
de estar atento a tudo, que tudo tem um nível de significância escondido, e
fá-lo sem recorrer à simplicidade do policial, que imediatamente convida o
leitor a fazer parte do jogo, nem à complexidade do ilegível. Subtilmente, o
narrador mostra ao leitor como ler o livro: procurar o não dito, ver todas as palavras
como imprescindíveis. Desde as primeiras páginas que percebemos que não há uma
palavra a mais, não há excursos, não há inconsequências, tudo o que aparece na
página deve ser lido como se fosse o nome do assassino.
(continua)