|Tiago Sousa Garcia
Há alguns plot twists
que vou optar por manter secretos mas, mesmo que os revelasse, não trairia em
nada o prazer da leitura. Os óbvios: a identidade do paciente, o desfecho, a
identidade do narrador. O primeiro pode ser desfeito com o simples folhear das
páginas; os outros dois vão-se tornando progressivamente mais claros ao longo
da narrativa e, quando chegam, não são exatamente uma surpresa. Mas também não
teriam que ser. Mais uma vez, A Cura não é um policial, não caminha para
uma revelação final que explicará tudo; A Cura, como a cura da
psicanálise, é um processo, e é nesse processo que se esconde o prazer da
leitura. A narração, percebemos mais tarde, não nos quer esconder nada, até nos
poderia revelar nas primeiras páginas o desfecho – e fá-lo, se estivermos
atentos – sem qualquer prejuízo. O narrador faz com um leitor o que um analista
faz com um analisando: aponta os caminhos, mas deixa que seja o próprio a
percorrê-los sozinho.
É muito difícil falar de
um livro que é todo ele interditos: um narrador quase sem nome, um mensageiro X.,
um paciente Z., uma companheira que, apesar de ser dos poucos personagens com
nome, é talvez das mais obscuras, um professor com nome de compositor alemão
que é como um pai, ou como um Deus, ou como um Deus Pai, apesar do quase
ateísmo de quase todos os envolvidos. A sequência de consultas opõe – e
sublinho opõe – o narrador e Z., mas todos os outros personagens vão sendo
convocados pelo depoimento. Há ainda mais um, talvez o maior de todos, que se
posiciona acima do narrador, olhando-o, sobranceiro: Freud. Cada consulta é
encimada com uma epígrafe de Freud, desde A Interpretação dos Sonhos, de
1900 até Moisés e o Monoteísmo, de 1938 – daí a breve história da
psicanálise no título. Há duas excepções a esta regra: prólogo e epílogo, o
primeiro com Freud, mas anterior ao texto seminal de 1900, o segundo com o Eclesiastes,
a única epígrafe que não é retirada da obra do fundador da psicanálise e,
também por isso, talvez a mais importante. Mas esta não é a primeira vez que o Eclesiastes
surge na narrativa. Desde as primeiras páginas que o analista nos confessa uma
relação estranha e próxima com o Eclesiastes. Mais estranha ainda porque
o narrador declara não ser religioso, nem na sua juventude, apesar de ter sido
educado na fé católica.
As relações deste narrador
são, aliás, todas estranhas e estranhamente próximas. A relação com a
companheira é quase simbiótica a princípio e quase parasítica no fim; a relação
com o professor Wagner, o mestre e modelo, é dependente iniciou-se com uma
mentira menos que mentira; a relação com Z., o paciente das consultas, essa, é
ainda mais complexa.
A relação do analista com
Freud é, apesar de tudo, a mais clara. Freud é Deus, as suas obras são a
palavra sagrada. O analista defende Freud contra tudo e contra todos, batalha
para o recuperar num mundo que quer desacreditar a sua teoria, enraivece-se com
a mera referência ao anti-cristo Jung. E, todavia, apesar de tudo o que disse
até agora, não sei se posso considerar A Cura como um romance acerca da
psicanálise.
A psicanálise está presente
em tudo, é certo. É o método e o caminho do narrador. Mas reduzir o romance à
psicanálise seria, claro está, redutor. Se a psicanálise é o foco de tanta
atenção, é-o apenas porque este mundo nos é dado a conhecer através dos olhos
de um personagem que vê tudo pela psicanálise, que não consegue deixar de
enquadrar o que o rodeia num quadro de egos, ids e superegos, Édipos e Laios,
Hamlets, conscientes e inconscientes. A Cura mostra-nos como a
psicanálise é muito mais que uma ciência ou teoria absurda – dependendo de que
lado da barricada nos decidimos colocar. A psicanálise, para este narrador, é o
óculo que lhe permite ver e entender o mundo, como a religião para um crente.
Os paralelos entre a
psicanálise e a religião multiplicam-se com uma claridade impressionante para
todos menos para o próprio narrador. Este paradoxo de uma ciência quase
religião é, talvez, o conflito central deste livro. Também nesse campo A
Cura marca pontos: não é apenas um romance mas uma tese; mas não é um
romance de tese, isto é, quando o livro termina percebemos que não fomos
expostos a argumentos a favor ou contra a psicanálise ou a religião;
entenderemos o desfecho de maneiras opostas, de acordo com a nossa própria
posição. Mais, se esta não for clara, reconheceremos a nossa posição no
confronto, nessa altura. Vou ser mais claro: A Cura não nos descreve
apenas nem a análise de Z., nem a auto-análise do narrador; o romance leva o
leitor a descobrir algumas coisas sobre si próprio, como se o analisando fosse
o próprio leitor e o analista o romance.
Mas há mais. Talvez por
defeito profissional, ao longo destas páginas fui percebendo também – ou antes,
o livro levou-me a perceber – como a psicanálise e a crítica literária são,
tantas vezes, similares. A interpretação de um sonho ou a interpretação de um
romance são, frequentemente, o mesmo processo com objectos distintos. O
analista procura o que o sonho não diz, o crítico procura o que o livro não
diz; o analista constrói pontes entre o sonho e o real, o crítico constrói
pontes entre o romance e o real; o analista afirma que todos os seus
diagnósticos estão no analisando, e que mais não fez que as trazer ao
consciente, o crítico jura a pés juntos que as suas conclusões estão no texto,
e que ele não fez mais que as trazer à luz. Podia continuar.
Estas são apenas algumas
das razões que me levaram a escolher A Cura para publicação, mas havia
mais, muito mais. No entanto, o motivo primeiro e maior é muito simples: o
livro é bom, muito bom. Sim, eu sei, o crítico não deve fazer juízos de valor.
Porém, quando li este livro pela primeira vez, não o fiz como crítico. Li-o
como representante de uma entidade que mais não faz que criar juízos de valor
acerca do mundo literário: este é bom, este não é, aquele deve ser publicado,
aquele não deve; e, mais do que cruel, para mim a oportunidade de olhar para um
livro e procurar uma resposta simples sempre foi muito libertadora. Os editores
são, talvez, a mais determinante das portas do cânone: se um livro não é
publicado, não existe. Por isso espero que me perdoem o orgulho imenso que
tenho em ter ajudado este livro a existir.