Entrevista a Luís Quintais
|Clara Henriques
Luís Quintais desenha a poesia como quem anuncia o
que há de mais próximo do que é belo, do que é musica.
Neste "Depois da Música" acabado de
editar, há um forte peso de memória, do mundo e das influências de que somos
todos filhos. Deixemo-nos ficar nas palavras que se seguem.
Óscar Lopes escreveu sobre Eugénio de Andrade que
os seus poemas são “um modo de realidade-esperança, uma esperança impensável, a
não ser talvez em música e em poesia paramusical”. Que relação há entre a tua
poesia e a música?
A música sempre foi uma
influência decisiva. Curiosamente não apenas pela forma como isso é central na
construção de um poema, na forma com ele soa, na intensidade expressiva que lhe
encontro ou não, mas também no plano das ideias, se quisermos. A música não é
apenas som organizado, é também ideias que encontram a sua expressão acústica,
e que, nesse encontro, potenciam outras ideias ainda: as ideias que a poesia
trabalha ou deve trabalhar. Depois há as homenagens a músicos que sempre me
perseguiram. Vai de Monteverdi aos Blues do Delta e não fica por aí. E há mais.
A música é uma das metáforas mais produtivas que conheço para compreender a
nossa condição presente. Este Depois da
música (2013) é sobre isso. Nós vivemos depois da música, depois do
sentido, depois de Auschwitz.
Dizes, a dada altura, que “a literatura é uma
província da poesia”. Como habitam em ti uma e outra?
Eu não acho que a poesia seja
literatura. A poesia está mais próxima de algo que é prévio à literatura.
Aliás, a literatura é uma instituição e uma instituição agonizante,
provavelmente já morta. Contrariamente ao que se diz por aí, a poesia continua,
continuará sempre, enquanto houver linguagem e humanidade. Daí que a literatura
seja somente uma província da literatura.
Ao longo do livro, percebemos que há uma forte
influencia musical dos anos 80. De que forma é que esta sonoridade te
influenciou enquanto autor?
Sim, muito. Eu vivi em Lisboa
durante uma parte significativa da minha vida. Depois de ter chegado do «Ultramar»,
vivi em Lisboa até aos meus 27 anos. Ainda hoje a entendo como a minha cidade.
É uma sombra em tudo o que escrevo, e uma memória de uma memória, também,
porque pouco a pouco a minha imagem da cidade e da minha já remota juventude se
vai apagando, reinventando, sendo outra, e outra ainda. E a década de oitenta
vivia-a em Lisboa. A música desse período, é uma uma música disfórica, densa,
talvez doente, mas urgente. Joy Division, anos oitenta, Lisboa, essa foi a
minha juventude perdida.
As referências à biografia ou à memória surgem
muitas vezes neste Depois da música.
Que relação trazes com o passado?
Não é possível fugir à
memória. Ela sitia-nos. Duração e escombro, é assim o passado. À medida que
envelheço vai havendo cada vez mais passado. Em verdade, escreve-se para os
mortos e para os vindouros. O presente não existe.
Como antropólogo achas melhor a divisão
de tudo por disciplinas, províncias, continentes, a sistematização e o rótulo,
ou antes pelo contrário?
Eu sou um
antropólogo atípico. As diferenças e as separações são produtos históricos,
realizações políticas. Não aprecio particularmente a axiologia. O meu
pensamento é verdadeiramente nómada, ou é assim que me vejo ou gosto de ver.
Deleuze tem sido uma influência importante nisso.
Vivemos numa época em que somos atropelados pelo
que há de mais efémero ou, arrisco, superficial. Que lugar terá a palavra nesta
era? Que lugar terá também a poesia?
A poesia é também uma resposta
ao empobrecimento da linguagem e do humano. É aí que estamos. A poesia é uma
forma de resistência. Onde há poder há resistência. É aí que estamos. É aí que
estaremos sempre.
O que fica depois da música?
O mundo acabou há muito.
Ficaram-nos as cinzas e o pó. Depois da música, ficou a poesia, malgré Adorno.