|Cláudia Assis
Porto, segunda-feira, 25 de dezembro. O despertador toca às 8h da manhã, como já era hábito naquela casa. Contudo, ela já estava acordada há algum tempo, contando as voltas que os ponteiros do relógio davam, vezes sem conta. Já tinha percebido, inclusive, que chovia torrencialmente lá fora. Pior: chovia torrencialmente cá dentro do peito! O despertador insistia com o seu barulho habitual, numa tentativa vã de expulsá-la da cama. Mas a verdade é que ela não queria sair dali, de debaixo das cobertas. Era como se ali estivesse, de algum modo, protegida. Silêncio. Finalmente o despertador calou-se e, ainda de debaixo das cobertas, ela apenas virou, encolhendo-se em posição fetal. Não é preciso ser grande conhecedor de psicanálise para perceber que ali, deitada daquele modo, ela só queria proteger-se. Chovia muito lá fora. De repente, se deu conta que as suas mãos, pousadas sob o rosto, estavam molhadas. “Está chovendo cá dentro”, divagou consigo mesma, num pensamento quase surrealista. E muito rapidamente a menina se deu conta de que sim, chovia cá dentro. Os seus olhos eram uma tempestade só! O despertador tocou outra vez, dando-lhe conta de que já havia passado longos 10 minutos. “Mas como, se eu sequer pisquei meus olhos?”, questionou-se. Pobre menina, a sua tristeza até a impedia de ver o tempo passar.
[...] Após alguma insistência do abominável aparelho responsável por mantê-la acordada às horas, levantou-se. Parou por alguns segundos diante do seu telemóvel. É que havia um lembrete a piscar: “Hoje é 25, dia de celebrar o amor. Vamo’bora levantar, pretinha!”. O lembrete tinha sido escrito por ela mesma. Era um modo de não permitir que a sua memória pouco confiável deixasse que tal data caísse no esquecimento. Afinal, tratava-se de uma celebração. Não, não era ao Natal que o lembrete referenciava, mas sim ao amor que veio para transformar os seus dias. E por alguns segundos, uma espécie de filme da sua própria vida passou diante dos olhos. Ela sorriu. Lembrou-se daquele domingo em que a sua vida mudou por completo, do menino que viria para fazer os seus dias mais felizes, de passear a tarde inteira, entre uma provocação e outra, porque, afinal, estava nervosa e era um modo de não deixar que ele percebesse. Mas ele percebeu! E no momento EXATO, calou-a com um beijo. E do beijo fez-se o amor. Quase que instantaneamente. “Adoro a tua pele!”, dizia ele, enquanto passeava as suas mãos, como se quisesse mapear as costas dela. Ela, por sua vez, tentava relembrar um soneto de Vinicius. Mas sua memória... ah!... a sua memória nunca foi o seu forte. Ela sorriu novamente. E depois chorou por lembrar o quão difícil foi deixá-lo partir. Teria percebido claramente que a sua vida jamais seria a mesma. E não foi!
[...] Não havia volta a dar, hora de levantar. Era preciso encarar o mundo e a sua dura realidade. Já de pé, ela decide parar tudo e escrever uma carta de amor. Possivelmente a derradeira. “Que seja! É dia de celebrar o amor e assim será!”, resmungou a menina outrora mulher-tempestade. Papel e caneta na mão [que carta de amor que é carta tem que ser escrita à moda antiga], ela ensaia as suas primeiras linhas. Mas não tarda muito até por em causa aquele feito: “Isso nunca estaria à altura dele. Como poderia eu impressionar um escritor?”. Triste consigo mesma, amassa uma, duas, muitas folhas de papel. Pensa em desistir. Mas desistir também não era do seu feitio. Nunca foi. Algo a faz congelar: os seus ouvidos detectam aquela que passaria a ser a canção deles. “And i'll be anything you ask and more. You're going hey hey hey hey hey hey hey... It's not a miracle we needed. No i wouldn't let you think so. Fold it, fold it, fold it, fold it...”. Inevitavelmente a sua memória viaja no tempo, relembrando-a do dia em que dançaram de rosto colado na sala-cozinha do seu pequenino apartamento. Tantas foram as vezes que fizeram amor ao ouvir aqueles versos... Tão inevitável quanto acordar aquelas memórias foi sorrir com elas. Era impossível não sorrir ao lembrar do menino que se vestia de azul só para impressioná-la. “Sabia que ficas mesmo bonito de azul?”, disse ela uma única vez, sendo o suficiente para que ele não perdesse a oportunidade de lhe roubar sorrisos apenas por se vestir ao gosto dela.
[...] Com o findar da música, a nostalgia que reside no fim dos amores eternos fez-se presente, fazendo-a chorar. Descompassadamente, chorou! Percebeu que seria impossível escrever mais uma carta de amor. Não por faltar amor, muito pelo contrário, mas por ainda haver amor em demasia no seu peito. Era por perceber que já não o veria mais vestido de azul a fazer cenas bobas rua à fora que chorava. Era duro perceber que o seu menino-amor já não estaria mais ali para dançar com ela no meio da rua, como se o resto do mundo parasse para os ver. “Vam'bora arrastá' pé, pretinha!”, dizia ele com um sotaque abrasileirado, só para vê-la derreter-se em seus braços. Pretinha... nunca mais o ouviria dizer “és a minha pretinha”. Não tinha como não chorar. “Como é possível ser indiferente ao amor depois de ter sido tocada por ele?”, perguntava a si mesma, em voz alta, numa espécie de protesto ao universo, o mesmo universo que lhe havia pregado esta peça [fez-lhe provar do amor, fez-lhe ver o amor através dos olhos dele, arrancando-lhe depois isso das mãos, e dos lábios, e do corpo, mas não do coração.
[...] O tempo passa mesmo a voar. Era preciso ir tomar um banho que, afinal, não se podia atrasar para o trabalho. Sem se dar conta, os seus pensamentos vagueiam e ela relembra um dos momentos mais fantásticos e inesquecíveis dos dois: um banho quente em sua banheira tão pequenina quanto o seu apartamento. Mas eles tinham tanto amor um pelo outro que de nada importava onde nem como, desde que estivessem juntos. Encaixados um no outro, naquela mistura morna de água e sais de banho, ele acariciava carinhosamente o corpo dela e, vez ou outra, sussurrava-lhe algumas obscenidades. Especialmente no que tocava à “Sagrada Bunda”. Religião ele não tinha, já a bunda dela... ah!... a bunda dela era por ele cultuada com algum fanatismo, é certo. Sem notar, ela está dando uma suas gargalhadas por relembrar que ele a fotografava despudoradamente. E ele costumava gostar das suas gargalhadas.
[...] Ela sai para o trabalho. Atrasada, mas com a ideia fixa de que tem que lhe escrever uma carta de amor. A derradeira, possivelmente. Mas tinha de lhe escrever mais uma vez. Mais um dia havia sem saber nada sobre ele. “Como será que ele está? Será que no trabalho correu tudo bem? Terá feito para o jantar aquele frango com caril que eu tanto adoro? E sorvete de chocolate para sobremesa? Terá ele se lembrado, ao menos uma vez, que o dia de hoje deveria ser o dia de celebrar o amor? Terá sentido saudades minhas?”, questionou-se menina-mulher-tempestade.
[...] Já em casa, e depois de muito hesitar, não desistia da ideia de lhe escrever uma carta de amor. A derradeira, afinal. Mas logo apercebe-se que, por mais que muito quisesse, que desejasse intensamente, não havia palavras capazes de representar o medo que sentir por estar sem ele, a tristeza de ver a sua história de amor escapar-lhe por entre os dedos, sem que ele ao menos soubesse quanto amor ainda havia dentro daquele velho peito. Ainda assim, ela sorri ao lembrar das juras de amor que costumava ouvir dos lábios dele, das tonteiras e promessas de “juntos serem mais”m tão característico dos enamorados. E que força que tinha aquele amor! Eles eram capazes de sacudir o mundo, se preciso fosse, pois para além de tudo, eles tinham um ao outro. As abundantes lágrimas caem infindáveis, borrando mais uma das muitas tentativas de carta de amor. Ela chora porque não entende que ele prefira lembrar dos dias mais sombrios que ambos enfrentaram que dos muitos momentos de cores, cheiros e sabores que experimentaram. Ela não entende e não aceita. É que o amor gigante de outrora ainda reside em seu peito e ela só deseja ter um final feliz AGORA que é bem melhor que ficar eternamente à espera do PARA SEMPRE.
[...] Ela olha para para o relógio e se dá conta de que era meia noite em ponto, lembrando-se de que dizem que este momento do dia é um bocado mágico. Ela juntas as mãos espalmadas, fecha bem os olhos, e reza seja lá para o deus que for, desejando só mais uma vez, antes de deitar e dormir, que o sonho mau acabasse e que os seus dias voltassem a ter como destino os [a]braços dele. Ao contrário dele (cético como mais ninguém que já tenha conhecido), ela acredita em milagres, em finais felizes, no poder do amor e coisas ditadas por era forte. Ele costumava adorar isso nela. Ela olha para a mesinha ao lado da sua cama e vê a fotografia dos dois, a silhueta de um beijo congelado no tempo e no espaço. Sorri docemente e diz: “te encontro nos meus sonhos, pretinho. Beijo nosso, infinitos e mais além!”.
[...] Ela se deita, suspira fundo, fecha os olhos e, então, adormece, porque em seus sonhos ela ainda pode ter a sorte de amanhecer nos braços dele.