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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Sabor Interior

| Pedro Marques

Paulista ainda traga, cospe e passa o pé? Orgulho da caminhonete, tara por shopping e “modernidade” fizeram São Paulo exportar seu quinhão a Minas, Goiás. Tempo de antibiótico, plástico, pastor, analista dizendo o que é a vida ao homem. Não fosse fundo o poço, não sobrava areia para nossa identidade. É notável quando um escritor paulista dá no peito: sou do interior, sô!



Ricardo Flaitt (1976-) masca o interior que largou Cornélio Pires por causa da Capital. Cidades com mais cinquenta mil viventes perderam a batalha. Em vez de ensinar dignidade à metrópole, tomaram lições de desumanidade. Mococa, berço do poeta, virou mini-capital de problemas. E o interior é maior que cinemas, palcos, crimes e carros aos milhares. Pra que duzentos eventos por noite, se o sonho digere dois, três? É outro o tempo do poema caudaloso, terreno em que este poeta se destaca dos viciados em pílulas e sacadelas.

É cicatriz na cara e vida na caçamba. Naturalmente 3D. Ricardo tem paladar poético, o sentido mais afeito ao “experimentar”. Provar pela boca é guardar conteúdo dentro, saber do bom e do ruim no ato. Esta poesia tem o ritmo da gustação, papilas afiando olhos, narizes, ouvidos, dedos. Todos os sentidos a partir da língua: “Junto um punhado de terra na mão / Aperto profundo até extrair as sementes”.

Sabor, sentido que desbotou. Viramos uns devoradores sem apreciar nada. O antropófago do século XVI conhecia mais o que mordia do que nós, que convertemos comer e beber em consumir. Caboclo tem mãos e pés de lixa, pele de sol, pelo deitado no sereno. Mas tem língua de esmeril, conhece saboreando, polindo o que diz e mastiga até virar algo seu, interior, memória perene. “E assim, o mundo todo seliquefazia no mais profundemim.”

O poeta sabe o sabor que fala, vê, cheira, ouve, toca, amarga. Pedra, marimbondo, rua, cigarra, moça, fruta caem na língua que esmerilha cinco sentidos do corpo, diversos sentidos da palavra. O Domesticador de Silêncios (2013) doma o mundo pelo paladar, cujo ruído surdo é a mastigação da força nova sobre as sabidas coisas. Difícil comer e falar, lance de mau educado ou bom poeta. E a deglutição monta acordes saborosos, naturais, herméticos: “quimiciriguelas”, “dendagente” ou “prélasdiquiririnchaço”.

A febre de cores lembra Murilo Mendes, no passado, e Ricardo Lima, no presente: “Cosia botões com cascas de laranjeiras em terno de andorinhas”. As touceiras de sons ecoam Manoel de Barros (ontem), Antonio Geraldo (hoje): “E era réptil ritmo que doverso em min'medra”. É que nenhum poeta inventa a vela, faz ventar (“a insanidade do vento”) do seu jeito as vozes que vem de antes, do longe. Domesticar silêncios, nesse sentido, é também pilotar a tradição que, na calada, tormenta a noite do caboclo.



Pedro Marques é professor de Literatura Brasileira da UNIFESP e doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP.