Pediu para me ir
encontrar com ela na Basílica de Nossa Senhora dos Mártires. Jamais a tinha
tido por religiosa. Nem eu o sou. Pelo que nem sequer sabia onde era o templo.
Mais tarde fiquei a
saber que era apenas por desconhecimento meu. Que passava à porta dele vezes
sem conta e acaridava muitas vezes os mendigos que lá costumam estar. Sem, no
entanto, já lá ter entrado. Deus não é propriamente o que procuro na minha vida.
Estacionei o carro
não muito longe. Ela tinha tido a inteligência de marcar o encontro de manhã,
quando o movimento era menor em ruas comerciais. Fora por isso que achara lugar
tão depressa.
Entrei no Largo do
Chiado. Cumprimentei Pessoa. Observei os transeuntes insólitos que por ali
costumam andar. Avistei o centro comercial. No quiosque ao pé da Basílica
comprei um jornal desportivo para saber as últimas do futebol, subi as escadas
e dei esmola a um cego que tocava maravilhosamente música francesa num acordeão.
Já o contei. Nunca lá
tinha ido. E senti o que sinto quando entro em qualquer igreja. Uma confusão
por entre as imagens que sou incapaz de reconhecer. A agonia que aquela luz de
semi-penumbra vermelha das velas me faz, e o cheiro que me enjoa. À direita,
ajoelhada, uma velhota rezava um terço de contas brancas.
À esquerda, ela,
perto do altar, observando uma parede. Simples como sempre: uns jeans, uma
blusa preta demasiadamente decotada para uma igreja, os ténis, o cabelo solto.
Tão longo... Como tinha crescido desde a última vez que a vira. Cada vez mais
magra.
Tentei dar um passo
para me aproximar, mas antes que o pudesse fazer ela deu pela minha presença.
Fazia‑me sempre isto, como se fosse capaz de sentir o meu cheiro.
Beautiful as a
goddess
Ugly as a witch
Sorriu‑me. Linda e
feia como sempre. E senti‑me triste de por vezes me esquecer que ela existia.
Cheguei perto dela, toquei‑lhe suavemente nos ombros e cumprimentei‑a:
– Achas que me podes
tocar? Quando foi que eu te dei autorização para tal? – A sua voz estava
zangada e agressiva, sem que no entanto perdesse a suavidade e sensualidade de
uma mezzo.
Nunca. Ela nunca me
dissera que a podia tocar. Nem nunca mo deixava. Olhei os lábios dela. Quem
seria que os poderia beijar?
– Sabes quem pintou este
quadro? – Passara agora para um tom de mudança de conversa, como se não me
tivesse dito aquilo.
Olhei em frente e vi
o que estava a observar. Era uma bela pintura da Última Ceia de Cristo. Não lhe
respondi. Por não saber, e também porque pensei tratar‑se de uma pergunta
retórica. Mas com ela eu estou sempre enganado...
– Eu também não sei.
Mas gostava de saber quem teve a ideia de o fazer.
– Uma simples ideia
religiosa. – Comentei eu – Quantas representações da Última Ceia de
Cristo haverá neste mundo?
Ela olhou‑me.
Primeiramente ofendida. Mas depois o olhar tornou‑se caridoso. Eu era afinal um
simples ignorante.
– Já reparaste por
acaso como Jesus está representado? Com aquele brilho em volta da cabeça como
se fosse uma auréola de glória, o pão levantado ao nível do peito parecendo a
imagem do Sagrado Coração de Jesus.
Olhei para o quadro.
Eu não conseguia perceber o que ela estava a dizer. Porque eu não entendia nada
de religião. E agora parecia também não entender nada de arte.
Suspirei. Estava a
deixar‑me levar pela sua subtileza. Afinal ela também não sabia nada. Estava
apenas a fingir, como, aliás, sempre faz, só para me impressionar. Nem sabia
quem o tinha pintado. Dirigiu‑me para um dos bancos.
– Porque quiseste que
eu viesse ter aqui contigo?
– Porque queria! – E
deitou‑me um sorriso malicioso de criança. E foi então que percebi tudo.
Deveria conhecer bem
o sítio. Apenas estava a representar a sua própria ignorância. Sabe que assim
pode jogar comigo e magoar‑me.
Ao mesmo tempo levou‑me
para ali porque ela sabe o desejo que lhe tenho, e sabe também que não lhe
posso resistir. Num local sagrado, onde sabe que por norma eu não devo tentar
persuadi‑la a nada. E até veste um decote para me provocar.
Strong as a soldier
Fragile as a child
Ela sabe que, como um
copo de cristal, eu lhe posso tocar e que nesse momento se desfaz em cacos.
– Porque me fazes
isto? Não vês que eu sofro por não te poder tocar? – Mas ela esboçou novamente
o seu sorriso.
– Nunca mais te quero
ver. – A voz dela parecia repleta de gozo e de prazer. Soltou uma pequena
gargalhada que ecoou na igreja. A surpresa e a tristeza devem‑me ter ficado
estampadas no rosto. Levanta‑se e vai‑se embora. Na igreja eu não podia correr
atrás dela. Seria falta de respeito. Pelo espaço sagrado. Pela oração
silenciosa que a velha senhora fazia. Fico.
Provavelmente será
melhor assim. Ela é irreal como uma fada. Não pertence ao meu mundo. O melhor
será esquecê‑la. Ou viverei eternamente sem entender quando ela está a falar a
sério ou a rir de mim.
Talvez tudo isto
agora fosse apenas uma brincadeira. Um teste para descobrir as minhas reacções.
E ela esteja à porta a sorrir à espera que eu saia.
Sem entender porquê
dirijo‑me de novo para o quadro. E tento compreender o que ela me queria dizer.
E vejo que, com o pão elevado à altura do peito, mais parecia que Jesus tinha o
seu próprio coração nas mãos. Um temor apodera‑se de mim. Naquele momento Ele
sabia que ia morrer. Segurava a Sua Morte e oferecia‑A aos seus discípulos.