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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Na Basílica de Nossa Senhora dos Mártires

|Olinda P. Gil

Pediu para me ir encontrar com ela na Basílica de Nossa Senhora dos Mártires. Jamais a tinha tido por religiosa. Nem eu o sou. Pelo que nem sequer sabia onde era o templo.
Mais tarde fiquei a saber que era apenas por desconhecimento meu. Que passava à porta dele vezes sem conta e acaridava muitas vezes os mendigos que lá costumam estar. Sem, no entanto, já lá ter entrado. Deus não é propriamente o que procuro na minha vida.
Estacionei o carro não muito longe. Ela tinha tido a inteligência de marcar o encontro de manhã, quando o movimento era menor em ruas comerciais. Fora por isso que achara lugar tão depressa.
Entrei no Largo do Chiado. Cumprimentei Pessoa. Observei os transeuntes insólitos que por ali costumam andar. Avistei o centro comercial. No quiosque ao pé da Basílica comprei um jornal desportivo para saber as últimas do futebol, subi as escadas e dei esmola a um cego que tocava maravilhosamente música francesa num acordeão.
Já o contei. Nunca lá tinha ido. E senti o que sinto quando entro em qualquer igreja. Uma confusão por entre as imagens que sou incapaz de reconhecer. A agonia que aquela luz de semi-penumbra vermelha das velas me faz, e o cheiro que me enjoa. À direita, ajoelhada, uma velhota rezava um terço de contas brancas.
À esquerda, ela, perto do altar, observando uma parede. Simples como sempre: uns jeans, uma blusa preta demasiadamente decotada para uma igreja, os ténis, o cabelo solto. Tão longo... Como tinha crescido desde a última vez que a vira. Cada vez mais magra.
Tentei dar um passo para me aproximar, mas antes que o pudesse fazer ela deu pela minha presença. Fazia‑me sempre isto, como se fosse capaz de sentir o meu cheiro.

Beautiful as a goddess
Ugly as a witch

Sorriu‑me. Linda e feia como sempre. E senti‑me triste de por vezes me esquecer que ela existia. Cheguei perto dela, toquei‑lhe suavemente nos ombros e cumprimentei‑a:
Achas que me podes tocar? Quando foi que eu te dei autorização para tal? – A sua voz estava zangada e agressiva, sem que no entanto perdesse a suavidade e sensualidade de uma mezzo.
Nunca. Ela nunca me dissera que a podia tocar. Nem nunca mo deixava. Olhei os lábios dela. Quem seria que os poderia beijar?
Sabes quem pintou este quadro? – Passara agora para um tom de mudança de conversa, como se não me tivesse dito aquilo.
Olhei em frente e vi o que estava a observar. Era uma bela pintura da Última Ceia de Cristo. Não lhe respondi. Por não saber, e também porque pensei tratar‑se de uma pergunta retórica. Mas com ela eu estou sempre enganado...
Eu também não sei. Mas gostava de saber quem teve a ideia de o fazer.
Uma simples ideia religiosa. – Comentei eu Quantas representações da Última Ceia de Cristo haverá neste mundo?
Ela olhou‑me. Primeiramente ofendida. Mas depois o olhar tornou‑se caridoso. Eu era afinal um simples ignorante.
Já reparaste por acaso como Jesus está representado? Com aquele brilho em volta da cabeça como se fosse uma auréola de glória, o pão levantado ao nível do peito parecendo a imagem do Sagrado Coração de Jesus.
Olhei para o quadro. Eu não conseguia perceber o que ela estava a dizer. Porque eu não entendia nada de religião. E agora parecia também não entender nada de arte.
Suspirei. Estava a deixar‑me levar pela sua subtileza. Afinal ela também não sabia nada. Estava apenas a fingir, como, aliás, sempre faz, só para me impressionar. Nem sabia quem o tinha pintado. Dirigiu‑me para um dos bancos.
Porque quiseste que eu viesse ter aqui contigo?
Porque queria! – E deitou‑me um sorriso malicioso de criança. E foi então que percebi tudo.
Deveria conhecer bem o sítio. Apenas estava a representar a sua própria ignorância. Sabe que assim pode jogar comigo e magoar‑me.
Ao mesmo tempo levou‑me para ali porque ela sabe o desejo que lhe tenho, e sabe também que não lhe posso resistir. Num local sagrado, onde sabe que por norma eu não devo tentar persuadi‑la a nada. E até veste um decote para me provocar.

Strong as a soldier
Fragile as a child

Ela sabe que, como um copo de cristal, eu lhe posso tocar e que nesse momento se desfaz em cacos.
Porque me fazes isto? Não vês que eu sofro por não te poder tocar? – Mas ela esboçou novamente o seu sorriso.
Nunca mais te quero ver. – A voz dela parecia repleta de gozo e de prazer. Soltou uma pequena gargalhada que ecoou na igreja. A surpresa e a tristeza devem‑me ter ficado estampadas no rosto. Levanta‑se e vai‑se embora. Na igreja eu não podia correr atrás dela. Seria falta de respeito. Pelo espaço sagrado. Pela oração silenciosa que a velha senhora fazia. Fico.
Provavelmente será melhor assim. Ela é irreal como uma fada. Não pertence ao meu mundo. O melhor será esquecê‑la. Ou viverei eternamente sem entender quando ela está a falar a sério ou a rir de mim.
Talvez tudo isto agora fosse apenas uma brincadeira. Um teste para descobrir as minhas reacções. E ela esteja à porta a sorrir à espera que eu saia.

Sem entender porquê dirijo‑me de novo para o quadro. E tento compreender o que ela me queria dizer. E vejo que, com o pão elevado à altura do peito, mais parecia que Jesus tinha o seu próprio coração nas mãos. Um temor apodera‑se de mim. Naquele momento Ele sabia que ia morrer. Segurava a Sua Morte e oferecia‑A aos seus discípulos.