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domingo, 2 de junho de 2013

Mesa do Canto – As falsas questões

|Alexandra Malheiro

(dedicada ao Rui Magiolli)

“É uma falsa questão” dizes-me, ter ou não ter tema para uma crónica é uma falsa questão. Pois se estás sentado comigo no café- ainda que talvez não estejas e seja apenas eu a imaginar-te, se dialogas comigo, invectivando-me até a largar o que leio para te ouvir dissertar sobre uma coisa qualquer.

Observo a Granta, ainda fresquinha, acabada de comprar, ainda por ler, sobre o tampo em mármore da mesa – fala do EU, está lá escrito, dá-lhe título até – as diferentes visões do eu e quantos “eus” haverá dentro de cada “eu” que connosco transportamos. Dir-me-ás de novo que é uma falsa questão e que quando estou contigo, e apesar do teu tão elaborado “eu”, não será apenas contigo que estou, pois serás tu, com o teu “eu” pessoal mais o “eu” que eu te inventei, como aquela velha história que todos os psiquiatras citam de que quando um casal está na cama são sempre quatro e não dois – os dois que de facto existem e outros dois que cada um deles inventa dentro de si sobre o outro. Aí interrompo-te, primeiro porque me enfada essa conversa, ainda que possa ser verdade, sobre a dupla visão – do que somos e da forma como os outros nos vêm, e depois porque a falsa questão és tu quem a levanta, senão repara: ainda que eu te possa imaginar alguma coisa que não és, não são dois “eu” de ti que de facto existem, será apenas um “eu” o teu “eu” real e um “tu” o que eu invento.

Conforme desenrolo este novelo de ideias algo perturbadas pela febre e pelas leituras que, na verdade, ainda não fiz, sinto que me falta a voz, perco-a progressivamente, sei que dentro de menos de uma hora não serei capaz de falar, afonia completa. Talvez isso não seja importante ali no café, nem amanhã. Que sei eu, que importa se não me ouvirem? Apenas me importa se te lembrares de me ligar amanhã e eu não conseguir falar-te, ficarias a ouvir apenas um cicio telefónico, acharias tratar-se de um artefacto, uma ilusão ou uma interferência, ignorar-me-ias não me ouvindo. Também aqui o teu e o meu “eu” ou o meu “eu” e o “tu” que de mim inventas não se cruzariam, perder-se-iam na linha e isso sim seria grave.

Apago o cigarro e com ele esta ilusão daninha – Que diabo,  por que havias de me telefonar? Esse seria o “tu” que eu ainda imagino, um “tu” que não existe em ti, no teu “eu”. Aos anos que não nos cruzamos na linha, esta febre deve estar a perturbar-me mais do que o esperado! Talvez acenda um novo cigarro para pensar sobre isto. Mergulho as mãos nos bolsos à procura de um mas não está fácil. Na verdade eu não fumo, nunca  fumei.