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segunda-feira, 3 de junho de 2013

Rei camaleão

|Manuel Jorge Marmelo

Só há poucos dias reparei no homem que, pelos vistos, viaja sempre no banco mais próximo da porta, praticamente imóvel, com os grandes olhos emergindo das pálpebras carnudas e moles. É bastante calvo, tem um nariz curvo e leva sempre as mãos quentinhas, protegidas por luvas de lã castanha, muito surradas. Notei-o apenas quando, há dias, me sentei ao seu lado e percebi como mantinha o olhar oblíquo fixo num ponto imaginário e imóvel no exterior do autocarro, algures entre o vidro da janela e o chão, e como os olhos dele são enormes globos vítreos e quase sem vida – como, enfim, punha a ponta da língua de fora da boca, devagarinho.

Pareceu-me uma espécie de grande lagarto, mas tomei-o por um utente ocasional que provavelmente não voltaria a ver e que, portanto, esqueceria ainda antes de ter tempo para escrever o naco de prosa enxuto que vossas excelências estão a ter o prazer de acompanhar. Mas estava enganado. O homem, afinal, está todos os dias sentado no mesmo banco, encostado à janela, com os olhos parados e a língua movendo-se devagar entre os lábios. Tenho agora ainda mais certeza, por isso, de que se trata de um réptil, mais concretamente de um enorme camaleão careca que se empenha em passar despercebido e em tornar-se invisível para os outros utentes do transporte público.

Tinha, hoje de manhã, acabado de formular esta acutilante teoria quando, de súbito, notei que o rei camaleão movia a cabeça muito devagar e que o olhar dele se deslocava no espaço, manso ainda e como morto, mas fixando já alguma coisa no interior do autocarro. Uma mosca apetitosa? Algum mosquito? Talvez uma abelha abrigando-se ali dentro do frio da manhã? Segui o olhar do lagartão e percebi tudo. Quem lá vinha, aproximando-se da porta, era, enfim, a moça morena das grandes argolas prateadas, a dos glúteos generosos e firmes, rebolativa e fértil mesmo nestas rigorosas manhãs de Inverno. O rei camaleão moveu a língua, uma, outra e outra vez, mirando-a quase sem mover os olhos. Ela saiu na paragem seguinte. E ele voltou a fixar o ponto invisível onde os répteis contemplam coisas que nós não vemos nem pudemos imaginar.