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terça-feira, 2 de julho de 2013

Quem nos roubou a primavera?

|Filipa de Lima

Pé ante pé, com a graciosidade de uma bailarina profissional, M dança ao sabor da música do piano grave. As suas pernas sobrepõem-se numa conjugação eterna. Eleva os seus braços em arco sobre a cabeça e as pontas dos dedos tocam-se levemente. Mantém o olhar sereno, fixo num ponto imaginário, como o horizonte de um final de tarde quente.
As sapatilhas de dança estão gastas, as horas dos dias são passadas na sala em frente ao espelho. A mão apoia-se no corrimão, mantém-se em pontas e o seu gesto é leve, gracioso, perfeito. O braço sobe, as costas arqueiam, lança o pescoço para trás. Devagar volta à posição inicial. Larga o corrimão e corre para o meio da sala. Rodopia sobre ela própria, em cada volta cresce, de si para si. Só para si. A inocência da idade, a ingenuidade da infância, e rodopia, rodopia sobre ela própria.
Apesar do rosto sereno, não consegue encobrir o olhar duro. Os seus olhos castanhos não são suaves o suficiente para o ballet clássico. A sua essência provocadora não se entrelaça com a elegância do ballet. Não consegue mudar o olhar, ainda não sabe camuflá-lo. A sua pauta de música é grave, sonora e marcada de timbre forte.
Rodopia, rodopia sobre ela própria. Fá-lo pela eterna inocência, pela eterna infância que não quer ter. Pela ansiedade em crescer, em perder a pureza do seu gesto ao elevar os braços sobre a cabeça num arco perfeito.
As sapatilhas gastas mostram como rodopia e aprisiona a sua ingenuidade. As suas meias brancas têm uma malha no joelho, mas as suas quedas não a fazem desistir.
Rodopia, rodopia sobre ela própria, acabando deitada no chão de barriga para baixo. Apoia-se nos cotovelos e a palma da mão no seu queixo afirma a sua obstinação. O seu olhar é atrevido e malicioso. Balança os pés no ar seguindo a melodia do piano.
Vira-se de barriga para cima, olha o tecto do palácio velho, levanta-se devagar. Rodopia, rodopia sobre ela própria. Fá-lo pela sua eterna e inesgotável leveza.

Da porta entreaberta revia a sua infância, de olhos postos no meio da sala, em frente ao espelho. Via a sua expressão, velha e cansada. Rodopiou, rodopiou sobre ela própria, em direcção à escadaria, pela ansiedade que teve em crescer, em perder a pureza do seu gesto ao elevar os braços sobre a cabeça num arco perfeito.