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sábado, 6 de julho de 2013

A poeta dos gatos

|Celeste Pereira


Sons de echarpe

Arrumo cuidadosamente na gaveta
aquela echarpe de seda,
lembras-te?
aquela em sons de azul e rosa e roxo
que me trouxeste não me lembro bem de onde, lamento...

mas de longe, de muito longe.
Com ela acomodo mansamente dias muito antigos, esperanças sopradas, lençóis desarranjados,
pregas de acanhamento, parêntesis de saudade,

suspiros que repuxam a alma e a silhueta de todas as coisas.--



*

Manifesto

Porque adoro o sol e da chuva suporto apenas as pequenas gotas azuis que me trazem a poesia
... seria gato, obviamente.

Porque mesmo dessas apenas gosto das que se perdem em tremuras e, por vezes, se suspendem tímidas no canto da pálpebra
... seria gato, obviamente.

Porque me enrosco em maciezas, me envolvo em mantas nas tardes muito antigas dos dias frios e, assim, quase que ausente, chocalho sonhos enquanto namoro as labaredas da lareira

... seria gato, obviamente.

Porque sei sempre o lugar exacto, e o momento exacto, onde posso alongar o corpo em desembaraços improváveis de preguiça
... seria gato, obviamente.

Porque me extasia o voo dos pássaros que passam rente à janela em bailados sem peso
... seria gato, obviamente.

 Porque adoro ser mimada, acariciada e sei semicerrar os olhos e arrumar os lábios no ponto certo onde fica aquele sorriso “gosto de ti”

... seria gato, obviamente.

Porque sinto que todos me cabem um bocadinho sem que eu caiba inteiramente em ninguém
... seria gato, obviamente.

Porque amo a liberdade acima de tudo, porque me sei mais que presente, porque enxoto as sombras que me rodeiam, porque uso as unhas e raspo a alma em busca da força para ser feliz

... se não fosse eu

... não poderia ser senão gato, obviamente.

*

À mesa éramos três

À mesa éramos três.
Três e um silêncio que cobria tudo
e nos ensurdecia com a sua estridência.

À mesa éramos só três
e os pratos e os talheres e os copos e...
Éramos três mas em cada cadeira se sentia ausência.

À mesa éramos ainda três
e o cansaço, o esquecimento, a fadiga,
o tédio, o desamor, a descomunal impaciência.

À mesa éramos tantos!



Celeste Pereira acaba de nos presentear com o seu segundo livro de poesia. "Obviamente... Gata!" chegou às livrarias no passado mês de Junho e promete inebriar o leitor com o seu manto de ternura que advém de cada verso. Celeste toca o dia-a-dia e tudo o que nele é mais profundo com uma doçura inigualável. O seu amor pelos gatos é, assumidamente neste livro, uma ideia que se espraia para lá do imaginário. Para ler e reler, num qualquer fim de tarde de Verão.