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quinta-feira, 6 de junho de 2013

Pito mal lavado

|Manuel Jorge Marmelo

Sou, com certa frequência, um cronista incréu. Fio-me muito pouco nas capacidades mediúnicas daquilo que escrevo e, por isso, venho para o autocarro armado em intelectual, com um livro debaixo do braço e disposto a aproveitar o aborrecimento da viagem para ler um pedacito. Mas a realidade – ah! a realidade... – depressa me agarra pelo nariz (atenção: isto não é uma metáfora) e me transtorna os planos.

Não pude, por isso, ler quase nada de A Pista de Gelo, do Roberto Bolaño. Antes de mais nada, porque Clarineide chegou a correr à paragem, num elegante casaco azul eléctrico e ainda a tempo de apanhar o atrasadíssimo 502 das 9h01. Pus-me, pois, à procura do Rei Camaleão, para ver se o via a pôr a ponta da língua de fora da boca, guloso e concupiscente. Mas o homem não estava.

Fui-me sentar e abri o livro, um pouco enfadado por ver goradas as minhas congeminações antropofágicas, mas logo a voz da utente mais habitual do autocarro soou atrás das minhas costas, recordando-me o lapso que cometi na crónica pretérita. Fui, com efeito, muito pouco ambicioso na descrição do ambiente olfactivo do autocarro e devo, por isso, curvar-me aos pés da sabedoria enciclopédica daquela mulher de aparência simples, a qual contava como tinha, esta manhã, sido obrigada a sair da viatura por causa do mau cheiro.

Simples e prosaica catinga? Nada disso. Parece que o autocarro trazia, isso sim, um cheiro "azedo" e muito intenso a “pito mal lavado”, ou nem sequer lavado e em péssimo estado de conservação, talvez isto fosse o mais certo, pois o odor do dito entrepernas foi também descrito como “podre”.

“Até parecia que vinha uma pessoa morta no autocarro”, ouvi dizer. E fiquei a imaginar, melancolicamente, um pito mal lavado e apodrecido no corpo de uma pessoa viva circulando nos transportes públicos, incapaz, portanto, de me concentrar nos literários acontecimento ocorridos em Z.