Recensão do livro Mulher Ilustrada de Maria
Sousa.
|Manuel A. Domingos
Quando se caracteriza determinada forma de poesia com o
adjectivo de feminina, isto é, poesia
feminina, muitos são aqueles que saltam nas suas cadeiras. A poesia não tem
género. É como os anjos, dizem. No entanto, a realidade é muito diferente:
existem poetas e poetisas; quer se queira ou não, isso reflecte-se na poesia
que escrevem. É claro que há poetas que escrevem como poetisas e poetisas que
escrevem como poetas. Há, ainda, poetas que escrevem como poetas. E poetisas
que escrevem como poetisas. Maria Sousa (1969) pertence a este último grupo.
Depois de Exercícios
para o endurecimento das lágrimas (Língua Morta, 2010), Maria Sousa
apresenta-nos o seu segundo livro: Mulher
Ilustrada (do lado esquerdo, 2013). O título remete o leitor para certos
almanaques muito comuns nos anos 50 e 60 do século passado, que se
caracterizavam pelos conselhos domésticos que davam às senhoras donas de casa,
espécie de exercícios de aperfeiçoamento em prol do equilíbrio familiar e do
bem-estar social. Neste ponto, e concentrando-nos apenas no título, há uma
certa continuidade entre o primeiro e o segundo livro de Maria Sousa. Se esta
continuidade é propositada, ou fruto da imaginação deste vosso escriba, só a
autora poderá revelar. Contudo, uma coisa é certa: os poemas de Mulher Ilustrada são tudo menos
exercícios de aperfeiçoamento doméstico.
O confessionalismo continua a ser, em Mulher Ilustrada, uma característica
bastante presente. Talvez a influência, ou a sombra, de Anne Sexton (da qual
Maria Sousa é exímia tradutora) paire sobre este livro. Como sabemos o
confessionalismo na poesia portuguesa actual é vinco, depois de ter sido
passado a ferro durante alguns anos. É claro que muito se poderá dizer sobre o
tema, pois desde Rimbaud que eu e outro deixaram de ser o que eram. Apesar
da dificuldade, arriscamos em dizer que a poesia de Maria Sousa é assumidamente
confessional: «há várias maneiras de começar o dia/quando acordo fumo um
cigarro//coso silêncios à pele/num quarto inteiro de palavras vazias/que se
repetem como rituais//durante semanas ensaiei regressos/apesar das paredes
vazias/não deixo de fingir que não estou só» (p. 16); «por vezes invento
esperas onde/sou a rapariga que desfaz o verde/em memórias» (p. 23). É claro
que o eu só se faz no outro. Só existe confessionalismo se
existir alguém, outro, que ouça. O
leitor pode ser o outro. Mas existe
um outro na poesia de Maria Sousa.
Quem é ele?
Para tentar responder a esta questão socorro-me das
palavras de Carlos Leite na sua introdução a Trabalhar Cansa de Cesare Pavase: «fala na primeira pessoa para
alguém que está ausente (…) em versos (…) impregnados de uma musicalidade
vibrante mas dolente de nostalgia, de cansaço, de renúncia (…)». O outro, em Mulher Ilustrada, está, sem dúvida, ausente: «apagado o que desta
casa eram vozes/desenhei-te com o som dos meus passos no soalho/na parede
pintei uma cama//com tudo preparado para o resto dos objectos//ficou a cicatriz
duma despedida/um pedaço de noite que me sabe ausente» (p. 19). A autora
procura-o, recorda-o, porque ele é vital à sua existência, como pele ou peça de
roupa que a autora usa perto da sua
pele: «nos dias em que se espera silêncio/soletro-te onde tudo o que não é
palavra é pele» (p. 20); «porque não te sinto/regresso todos os dias/ao vestido
que guardei para dias de frio» (p. 21); «sei que falar de ausência é chamar-te
para o poema» (p. 33); «digo que faço mapas das lágrimas//mais do que água é
inventar paisagens onde/te faço memória//qualquer coisa entre o olhar e o
vazio/de dizer palavras contadas pelos dedos» (p. 37).
Uma outra característica, muito própria da poesia de
Maria Sousa, é a melancolia. Como Pedro Santo Tirso refere no prefácio a Mulher Ilustrada: «A sua poesia é uma
forma de estarmos no meio da melancolia sem nos amarguramos.» (p. 6). Apesar de
alguma amargura, os poemas de Mulher
Ilustrada não são frios. Maria Sousa consegue esse equilíbrio, algo que é
muito difícil em poesia.
Mulher Ilustrada
Maria Sousa
do lado esquerdo
2013