No dia em que é lançado o novo álbum de Samuel Úria, O grande medo do pequeno mundo, a Revista Literária Sítio associa-se a esse acontecimento com a recuperação de uma conferência apresentada no Congresso Poéticas do Rock, no dia 8 de abril de 2009, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
1 – Igrejas Cheias do Domingo
Não é muito
comum encontrar numa faixa de um álbum de roque português o refrão “Igrejas
cheias ao domingo”. Aliás, mais que incomum, durante muitos anos, acharíamos
intolerável que isso acontecesse (acredito que boa parte de vocês continua a
achá-lo intolerável e pergunta-se, talvez com alguma propriedade, porque é que
eu estou aqui, porque é que eu estou a falar disto). Mas, partindo do princípio
filosoficamente indiscutível de que Deus está em todo o lado, não poderíamos
pensar que ele deixaria de imiscuir-se num meio tão dado a endeusamentos como o
roque português. Então, o que torna possível repetir este refrão em concertos
por todo o país? Tiago Guillul. Foi ele o primeiro músico a assumir um
posicionamento religioso no seu roque. Mais do que assumir, alias, parece
claro, desde o primeiro álbum, que tentou aperfeiçoar um projecto de afirmação
do universo Flor Caveira, enquanto
uma produtora musical independente e protestante, nos princípios e na mensagem
(embora sem exclusividade). Logo, mais tarde ou mais cedo, já deveríamos saber
que isto acabaria mesmo por acontecer.
2 – A minha dor de trono
Na semana
passada, numa entrevista a um suplemento que constitui, quase por completo, a
bibliografia secundária desta apresentação, o autor brasileiro Carlito Azevedo
dizia que há uma grande diferença entre uma coisa ser produzida por um poeta ou
por um teórico. Gostaria de tomar este aspecto como um dos princípios do que
vou aqui falar: eu sou um poeta. É por isso que faço a minha aproximação ao
universo da Flor Caveira, projecto de
produtora dos músicos que vou referir, do ponto de vista da poesia, das letras
das canções, mais do que partir à procura de um enquadramento teórico para o
fenómeno. Do ponto de vista do poeta, interessa-me saber o percurso tomado para
se chegar ao álbum IV, de Tiago Guillul, o álbum central do projecto iniciado
ainda nos anos 90. Interessa-me também explorar como esse álbum é uma súmula
das ideias de Guillul e de como serve de base teórica para a música de Samuel
Úria.
3 –Isto é folclore
Tratemos de
tentar enquadrar as influências musicais notadas na música de Guillul, ao mesmo
tempo que iniciamos uma pequena viagem pelo seu percurso musical. As suas
primeiras bandas, Bible Toons e A Instituição, revelam-nos os dados
primordiais do que virá a constituir a sua estética. Uma base punque, como
elemento pedra da sua música, conjugado com um crescente interesse pela
linhagem da música tradicional portuguesa, sendo aqui o tradicional uma
intersecção entre roque e pópe. Em “Canção para Rodrigo”, uma homenagem ao
ambiente do Liceu de Queluz como ponto de partida para a aventura punque de
Tiago, podemos ouvir o seguinte:
“Em 92
levaste/ um moicano para o Liceu de Queluz/ se na altura começava a ouvir o
Kurt Cobain/ ainda hoje é o punque roque que me seduz”.
No fundo há
uma declaração de influências atribuídas ao moicano, despertando o interesse
musical de um roque comercial para um roque mais intuitivo e largamente
explorado por inúmeros projectos de bandas no início dos anos 90 em Portugal.
Em contra-ponto ou conjugação com este lado (porque em Guillul nunca há
contra-ponto, há sempre aglutinação de elementos vários para a constituição da
sua individualidade), encontramos uma música intitulada “Isto é Folclore”, que
não por acaso é a primeira faixa do álbum IV.
Nesta faixa, a letra é construída numa aparente desordem que é, no entanto,
bastante significativa para o nosso argumento. Observamos uma confusão entre campo
e cidade, a tentativa de junção da “chuva de Londres/ao bom tempo de Cancún”, a
apresentação de uma ideia de “revolução que não fosse subtil” e tudo isto
enquadrado no refrão “que se dane o roque-enrole/ isto é folclore”. Apesar da
aparente contradição, parece-me haver aqui a proclamação de um objectivo
atingido (ou a atingir com o lançamento de IV):
recuperar uma possibilidade de roque português.
4 – Arranja-me um jumentinho
Os primeiros
três álbuns de Guillul demonstram qual o seu método de gravação (e o que
poderia parecer uma limitação tornou-se, afinal, num princípio fundador do seu
estilo). Fados para o Apocalipse contra a
Babilónia (2002), Mais dez Fados
Religiosos (2003) e Tiago Guillul
quer ser o Leproso que agradece (2004), são todos eles gravados em low-fi,
ora na Igreja, ora em casa, ora no carro, recorrendo a vários objectos como
instrumentos, apostando numa sonoridade crua, explorando todos os recursos e
valias de uma gravação amadora. Na música “Arranja-me um jumentinho”, Guillul demarca
um espaço de afirmação, onde recorrendo à simbologia de Sansão e Dalila, faz
notar que “em todas as costas cabe uma sela/ e para cada guedelhudo pode haver
Dalila”.
No entanto,
o aspecto fundamental desta música é o seu refrão. Recorrendo uma vez mais a
aspectos bíblicos, Guillul apresenta a sua ambição: uma “entrada triunfal para
Lisboa”. É neste tema que se começa a delinear o aspecto revolucionário na
estética guilluliana, que partiu da cave da Igreja Baptista de Queluz,
laboratório fundador do universo Flor
Caveira e, através de pequenos concertos, das gravações citadas, e
utilizando formas de divulgação pessoal contemporâneas, chega até a uma
dimensão nacional.
5 – Não ponhas pó de talco na minha
quarta-feira de cinzas
A
especificidade do universo de Tiago Guillul leva-nos, muitas vezes, a
depararmo-nos com o que poderá parecer um desencontro dos seus elementos
constitutivos. Aliás, esse mesmo gesto é encenado pelo autor, como se alimentasse
o jogo entre um eu-ficção e um eu-real, onde para cada um desses eus existisse
um mundo e uma dimensão diferentes. Talvez essa confusão se possa gerar a
partir daquilo que logo no início foi enunciado, a dificuldade de encontrar
par, no roque português, para uma expressão religiosa e pessoal. Na verdade, “
o punque que há na teologia” de Tiago Guillul expressa-se, nos seus álbuns, na
equação exactamente inversa: uma imensa teologia no seu punque.
A religião
aparece nas letras de Guillul como motor de uma revolução moral. Não só em
músicas como “Igrejas cheias ao Domingo”, em que se faz a apologia de uma
futura recuperação do homem através da fé (até ao ponto em que seria enterrado
“o machado, o escudo e a lança” da revolução guilluliana), mas também em
músicas como “Pior que gente devassa é um clero com preguiça” onde há uma
crítica a determinadas acções do clero, demarcando assim o perfil do bom
revolucionário moral. Interessante é que esta exaltação da divindade se faça
através de um jogo de palavras pertencentes a um universo mais comum, da
cultura popular. O beijo do Sapo, o Padre Vieira, mas também os topes, o
verdadeiro artista (remember Tony Silva?), as telenovelas brasileiras, o
Intendente.
É neste
aspecto que se faz, na minha opinião, a dimensão universal de Tiago Guillul, o
gesto em que se afasta genuinamente de um Padre Borga para se aproximar de um
António Variações: o que importa, na sua estética, é a palavra. E se a palavra
lhe é querida enquanto contacto com a divindade, pela sua função de pregador, é
a palavra poética que aparece em grande fulgor nas suas músicas. Temos assim a
religião, a moral, o punque, a cultura popular, a tradição do roque português,
mas temos acima de tudo uma poesia que torna Guillul símbolo de uma geração,
onde mais importante do que acreditar, é ter a noção de que somos livres. Julgo
que nada poderia agradar mais a um protestante do que ouvir dizer isto: que a
sua música é um agregador dos admiradores do livre-arbítrio.
6 – Oiço chamar o meu nome
O álbum IV tornou-se assim a peça central do
projecto do universo Flor Caveira,
claramente dominado pela figura de Tiago Guillul enquanto elemento que idealiza
as linhas mestras de acção. Ao ser o primeiro álbum da Flor Caveira a merecer uma atenção mediática, acabar por cunhar
ainda mais forte esse acto inaugurador e fundador da Flor Caveira, vários
discos depois do seu início. Assim, IV
é assumidamente um disco de maturidade, as várias experimentações, que para
além dos três discos anteriores em nome próprio, passaram pelos Lacraus, os Borboletas Borbulhas, os Ninivitas
e as colaborações com Samuel Úria e as Velhas
Glórias, trouxeram-no até ao ponto em que está à vontade para arriscar
somar as várias influências, tomar posição, tomar partido, e declarar
abertamente, por sua parte, a influência que espalha a quem o rodeia.
Sigamos
então a ordem das faixas no álbum. Na faixa um, “Isto é Folclore”, o manifesto
que pode/deve ser lido em conjugação com os seus álbuns anteriores: o que se
quer instaurar é uma nova ordem, uma nova tradição, a partir do existente
anteriormente. Faixa dois, “Beijas como uma freira”. Foi o single de estreia do
álbum e tem uma função dupla, já que é uma faixa que não encontra mais nenhum
par em todo o resto do álbum. Uma das visões que lhe pode ser dada, é como
contra-manifesto (jogando com os elementos anunciados na faixa um, mas
reabilitando o roque-enrole). Outro ponto de vista indicaria a necessidade de
um single para despoletar o processo de divulgação, como rastilho. Isso
explicaria o facto de ser o tema pópe deste álbum, sendo até curioso, na
segunda edição (aquela que teve distribuição comercial), o facto desta música
ter uma versão acústica, nas faixas extra, que vem, do meu ponto de vista,
fortalecer a ideia de elemento estranho com um objectivo, dentro do álbum. A
partir da faixa três, seguimos uma sequência lógica, entre temas que dão maior
visibilidade à estética punque (faixas três, cinco, sete), e temas onde é mais
impactante o discurso religioso (faixas quatro, seis, oito). O tema nove, “tu
és o inimigo”, será uma pausa, aproveitando para fazer uma conjugação entre
punque e teologia, numa faixa onde a letra é um pequeno poema de três versos,
uma só frase, várias vezes repetida, “tu que falas uma língua estranha/ e não
foi o Espírito Santo que te a deu/ tu és o inimigo”.
A partir da
faixa dez, e falando, por enquanto, apenas da edição original do álbum, datada
de 2007, entramos no programa revolucionário de Tiago Guillul: “Canção para
Tiago Lacrau” como o anúncio da revolução, a ameaça, “arranja-me um jumentinho”
como método a utilizar, “Diogo, és cão” simbolizando a presença do português,
não como princípio fundador, mas como ferramenta, “Lou Reed quer ser preto”
como presença de uma tradição estrangeira, também adoptada, mas anunciado
também como uma linha divergente, visto que o poema anuncia contradições em
série, e, finalmente “120 anos” a recolocar o problema da revolução moral,
realçando, como no caso de uma das faixas extras já referido, o papel da Igreja
(e de uma determinada igreja). No álbum original, Guillul terminava com a faixa
“ Canção de Natal”, que funcionava como uma ligação ao início do álbum,
permitindo assim que a corrente lógica montada não se quebrasse num momento de repeat.
Para a
edição comercial, Guillul foi ainda mais agressivo, juntando ao seu plano, para
além da versão acústica de “Beijas como uma freira”, com os efeitos já
enunciados, quatro canções que são gritos desesperados contra o sistema no
momento da sua aceitação como ícone mediático. Guillul caminha para a forca,
consciente da sua missão cumprida com este álbum, e dos seus gritos contra a
Babilónia, contra a fome de poder em “Dor de Trono” (onde é explicitamente
anunciada a criação de um exército), contra o clero que preguiça, terminando a
segunda edição do álbum com “o homem que ronrona”, espécie de hino anunciador
de um futuro que é já aqui.
7 – Tigre-dentes-de-sabre
O homem que
ronrona podia bem ser Samuel Úria, a máquina romântica do universo Flor Caveira. No fundo, será Samuel Úria
quem melhor executa os pressupostos teóricos de Guillul, cumprindo o programa
numa atitude radicalizada, seja no que confere aos reconhecimentos e
afastamentos da tradição, à forma como assume os seus princípios musicais e
morais, à forma como apresenta um manifesto de guerrilha, mas também na forma
como reduz a sua música a uma voz e uma viola, numa limpidez suja e imperfeita.
Logo no seu
primeiro colectivo, as Velhas Glórias,
uma banda que gravou um EP ainda na sua existência punque, Úria declarava que a
“gradilonquência do roque enrole está num frasquinho de formol”, apontando as
armas não só ao estilo mas também “às forças de bloqueio”, num aviso à
navegação que acabaria por levar a que algumas destas músicas que surgiram em
formato de punque roque acabassem quase como baladas no formato Úria e uma
viola.
Os seus
princípios têm por base também uma aproximação à palavra religiosa, tendo
alguns temas que são quase hinos, anunciando ainda que ao “domingo vou à escola
dominical”. Tal como Guillul, Samuel Úria é um revolucionário moralista, como
vemos em músicas como “Bom-senso” em que Úria declara que “o que o bom-senso
reprova o povo nunca detesta”. No seu último EP, Úria leva mais longe o seu
desvio, na música “Teimoso”. Afastando-se de todas as possíveis etiquetas, Úria
conjuga a revolução moral com a revolução musical, tentando engendrar um novo
género que não se afirma pela novidade, mas pelo desprendimento dos géneros
anteriores: será um gesto menos iconoclasta que libertário, Úria quer espaço
para dotar a sua música com a idealização da Palavra, tal como Guillul defende.
Assim, caracteriza-se “teimoso como um moleque”, porque à máquina devastadora
fica bem, ocasionalmente, demonstrar a sua possibilidade de ser frágil, como
ainda o faz na música “Barbarella e Barba Rala”, cantando que “rimo-nos dos
nossos ais, fados pouco casuais. Ou não”, porta aberta para a possibilidade da
dúvida, negada já a seguir.
É nas
músicas de Samuel Úria que a violência sobre os pares está mais exacerbada, um
pouco como o que foi referido em relação às faixas extra do álbum de Guillul.
Em dois momentos, Úria posiciona-se como o líder do exército guilluliano. Em “tigre-dentes-de-sabre”,
enuncia que “comer homens deixa de ser sancionado/ se se justificar em defesa
do fado”. E em “Ossos do Ofício”, traz “o canhão para o comício/ acabou-se o
armistício”.
Está
declarada a guerra projectada por Tiago Guillul e levada à prática por Samuel
Úria. Depois do álbum do primeiro com duas edições (2007 e 2008), Samuel Úria
lançará o seu álbum em 2009. Há poucos meses, na capa do Ípsilon, podíamos ler
a seguinte pergunta: “Quem é esta gente que entra de rompante pela nossa música
adentro?”. Uma coisa parece-me certa, sejam eles quem forem, não são um acaso.
Nada acontece por acaso. Muito menos as intervenções divinas.