|Luís Filipe Cristóvão
a)
A minha voz e a parede da igreja, mais logo, assim seja, pedras e
pedras – um luar. Queria contar-te como na aritmética, seria mais fácil, dois
três um, mas no olhar, fechado como um cancro, eu tenho trinta e um dentes. E
tu?
b)
O outro caso eram as macias romãs deixadas (por ti) em cima do balcão
da cozinha e quando eu acordei tocava o telefone, a rádio ainda e sempre na
antena dois. Escorreguei com os pés sobre o soalho – rangia, dizias tu que
talvez os construtores – e uma minha mão sobre o teu colo, o balcão da cozinha
e o meu pijama azul manchados para sempre antes de tomar banho.
c)
O meu livro de poemas tinha noventa páginas. Isto era antes de eu
entrar no manicómio, ninguém me dizia para ter cuidado na estrada e, com os
estranhos, eu usava de uma certa leveza. O meu livro de poemas e um autógrafo –
querias dizer sempre qualquer coisa, mas talvez fosse ciúmes.
d)
Mais limpo, já nesse tempo, era o Paulo Borges, com uma cara de coelho
arrebitada pelo chumbo e trinta e dois jornais debaixo do braço. Mais limpo e
cantava o fado vadio, fumava cigarros com boquilha e saía da tua casa quando já
era madrugada. Se bem me lembro, eu nem entrava.
e)
E vinha então tudo isto tão pouco a propósito agora que o casaco tem
cotovelos desgastados e a minha, mais que séria, verdade não passa de uma
mentira repetida muitas vezes. Agora, logo agora, que dizem que eu sou atrasado
mental.
f)
Tudo isto porque um dia houve amor – amor, lenços de papel e copos de
água, uma mesa de café perto do Liceu e eu poder olhar as tuas mãos sem
alianças. Um dia – eu sabia contar coisas pelos dedos – e se me olhavam viam
alguém igual aos outros, mesmo ao lado dos teus cabelos e dos teus olhos, que
não eram iguais a mais nada neste mundo.
g)
E isto era ainda antes de eu entrar no manicómio, antes de eu poder
dizer certos amores como loucuras – quando ainda havia uma língua para te
dizer, qualquer coisa em que acreditar. Isto era antes de eu ser feliz como
sou, quando só havia uma vida inteira por viver e um alguém como tu para eu
amar.
*frase retirada do romance O Manequim e o Piano, de Manuel Rui.
Publicado na revista Sítio 3, novembro 2006.