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sexta-feira, 3 de junho de 2011

Endechas a um amigo perdido


|André Simões

À  memória do Rui 

Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner

            I. Mater Dolorosa
           
            Vergada sobre a montra. Os olhos inchados de lágrimas perpétuas. Não sei o que olhava. Nada. Desesperada. Ali estava. Imóvel. Em que pensaria. Parei uns segundos. Para lhe perguntar por ele. Como estava. Soubera-o naquele mesmo dia. Não tive coragem de a acordar. Vergada sobre a montra. Não olhava para nada. Estátua de sal. Das lágrimas. Mater dolorosa.

            II. A flor
           
            Estavas sentado, em silêncio, como tantas vezes. Apreciávamos a companhia um do outro, sem necessidade de palavras. Bastava-nos a presença do outro. Tinhas pegado numa folha de papel, abandonada sobre a caótica mesa do meu quarto. Dedos ágeis. Minutos depois era uma flor, pequena. Estendeste-ma. Coloquei-a num copo de shot. Ali amareleceu com o tempo e o fumo dos nossos cigarros.


            III. A prenda

            Uma garrafa de vinho. Sem rótulo. Nua. Escura. Parecia demasiado pesada nas tuas mãos fracas. Estendeste-ma com o teu sorriso ingénuo. Era a tua prenda de Natal. Tinhas sido tu a fazer aquele vinho, tinhas sido tu a engarrafá-lo, dizias com orgulho. Coloquei-a no armário da sala, na porta de vidro. Perguntaste-me várias vezes se o vinho era bom. Dizia-te sempre que só abriria a garrafa numa ocasião especial. Que a abriria quando estivesses bom, e então bebê-la-íamos juntos.

            IV. A saudade

            Nunca soube dizer "gosto de ti". Sempre guardei para mim os sentimentos que tinha para com os outros, mesmo quando eram óbvios, mesmo quando os outros eram pessoas que me eram demasiado queridas e mereciam ouvi-lo. Sempre tomei aquela atitude aparentemente despreocupada, talvez por defesa. Apenas em raras excepções de delírio sentimental deixei escapar algo. Mas em relação a ti não havia delírio sentimental desse género. Não era amor nem paixão o que eu sentia por ti. Era uma adoração imensa, intensa. Tínhamos quase nada em comum. Partilhávamos uma paixão clubística, era tudo. Tudo o resto nos separava. E no entanto, eu adorava-te. Pouco falávamos, de pouco podíamos falar, mas passávamos horas juntos, e tínhamos prazer nisso. Não tiveste nunca problemas em mostrar o que tu próprio sentias, em actos e em palavras, em momentos de maior emotividade - também os tivemos. Compreendeste-me sempre, aceitaste-me como eu era. E nunca tiveste pejo em mostrar e dizer que gostavas de mim, apesar disso. Eu ficava com um nó na garganta e não conseguia dizer tudo o que sentia. Nunca soube sequer dizer "gosto de ti". E se eu gostava de ti. Tanto que chegava a ser sufocante. Agora é tarde. Mas eu sei que tu sabias o quanto eu te adorava. Não era preciso dizê-lo por palavras. É que eu nunca soube dizer "gosto de ti". E tantas vezes to quis dizer.

            V. A amizade

            Um dia eu estava já um pouco alegre, tinha bebido uns copos. Tu estavas sóbrio. Abraçámo-nos, já não sei porquê, e eu dei-te um beijo na cara. Eu gostava tanto de ti. Imediatamente foi como se a bebedeira incipiente tivesse passado. Fiquei desesperado. Tive medo de que levasses a mal. Ainda que a nossa amizade estivesse mais sólida de dia para dia, não sabia como reagirias a um gesto tão íntimo. Gostava demasiado de ti para poder sequer imaginar a possibilidade de perder a tua amizade. Pedi-te desculpas. Vivemos num mundo em que dois homens não podem exprimir a sua amizade a não ser com apertos de mão ou, em dias de festa, com um abraço. Mas eu dei-te um beijo na cara. Podias achar que se tratava de uma intimidade intolerável. Olhaste-me com aqueles teus olhos ingénuos, e disseste que não fazia mal, que éramos amigos, que estas coisas entre amigos eram normais. Não, não são normais. Mas tu, tu sim, tu eras extraordinário.

            VI. Silêncios

            Fazes-me tanta falta. Não nos víamos tanto como dantes. Na verdade quase deixáramos de nos ver. Não nos tínhamos zangado, longe disso. Mas havia razões para este afastamento que nos eram em parte alheias. Uma tolice, sobretudo da minha parte. Depois adoeceste. Retomámos então a amizade que estupidamente tínhamos deixado enfraquecer. Era diferente agora, como eram diferentes, infelizmente, as circunstâncias. Mas era mais intensa, da minha parte. Talvez não o tenha demonstrado como devia. Mas sabes que sempre fui incapaz de exprimir os meus mais íntimos sentimentos. Sinto remorsos por isso, mesmo sabendo que me conhecias como ninguém, que sabias o quanto te adorava. Se calhar pareci-te frio, em ocasiões em que me abriste o teu coração. Uma vez, muito antes de adoeceres, disseste-me coisas muito bonitas, num sítio e numa situação completamente inesperados, e eu só te consegui responder com um sorriso de felicidade incontida, e algumas palavras gaguejadas. Depois de adoeceres, veio o nosso reencontro, e o meu natural bloqueio emocional acentuou-se. Olhava-te, e não sabia o que te dizer. Nessa altura, mais do que nunca, vivemos de silêncios. Não de silêncios embaraçados, mas de silêncios cheios, como só contigo conseguia ter. Silêncios de olhares cúmplices e brincadeiras de miúdos. Batia-te ao de leve na cabeça e chamava-te careca. Tu rias-te e chamavas-me gordo. Nessas ocasiões voltava o teu sorriso trocista. Um dia, já perto do fim, ias ver o Sporting com o teu pai, e convidaste-me. Era um Sporting-Moreirense. Estava frio. Era Novembro, creio. Ou Dezembro. Tivemos de ficar em zonas separadas, pois não arranjámos bilhetes juntos. Enquanto o teu pai procurava lugar para estacionar, nós fomos andando para uma das portas do Estádio. Estavas muito fraco, já, embora mantivesses a esperança na recuperação total. Apoiaste-te em mim, e fomos abraçados até à porta. Brincámos, imaginando o que não estaria aquela gente toda a pensar de nós. Tanto nos fazia. Nunca nos preocupámos com o que os outros pensavam de nós. Ganhámos 3-0 e o Cristiano Ronaldo marcou um golo fabuloso. Pouco tempo depois pioraste de repente, numa altura em que todos os dias me davas conta de novas esperanças. O desenlace tornou-se evidente. Disseram-me que não querias ver ninguém. Quis respeitar esta tua vontade. Mas encontrei um dia a tua mãe, à porta da tua casa, que me disse que não era bem assim, que apenas não conseguias suportar visitas prolongadas. Subi imediatamente, maldizendo os dias em que tanto te queria ver, mas aguentava em casa, respeitando uma tua vontade que afinal nunca tinha existido. Entrei no teu quarto. Não eras já tu que estavas naquela cama. Era uma sombra. Não é assim que te quero recordar. Depois, um dia tocou o telefone, com a notícia que não queria ouvir. Pensei que com o tempo passasse este sofrimento. Que com o volver dos anos ficasse apenas a doce memória do amigo, uma nostalgia. Mas a cada ano que passa a saudade é maior. Três anos se passaram, já. Fazes-me tanta falta.

            VII. Pietà

            Um grito partindo o ar pesado daquela manhã de Fevereiro. Não conseguira aproximar-me. Deixara-me ficar no meio da multidão. Ao longe. Não era capaz de ver aquilo. Ainda assim fizera questão de estar presente. Para despedir-me? Não sei. Não consegui fazê-lo, até hoje. Vi-o, no dia anterior. Os seus contornos, debaixo de um lençol. Imagem gravada para sempre. E naquela manhã não sei o que me levou ali. Não sou crente. Não acredito na vida depois da morte. Mas estava ali. Vejo-o sair da capela. Sinto-me sem forças, pronto a cair. Retenho as lágrimas, involuntariamente. Porquê? Tanta gente chora. Não consigo. Nó na garganta, cada vez mais apertado. É agora. É agora que vou chorar. Não. Não saem. E sufoco. Ardo por dentro. O trajecto é curto. Vou-me deixando ficar para trás. Perdido. E agora. Tudo se passa lá ao longe. Não me consigo aproximar. Deixo-me ficar aqui, no meio da multidão. Não quero ver aquilo. Não sou capaz. Percebo o que se passa apenas pelos silêncios da turba e pelos movimentos do padre e dos que o carregam, ao longe. Descem-no. Sinto-me a morrer. E depois o grito. De mulher desesperada. Partindo o ar pesado daquela manhã de Fevereiro.


Publicado na Revista Sítio 3, novembro 2006