|Alexandra Malheiro
Podia esta crónica ser sobre as coisas nenhumas acerca das quais habitualmente escrevo? Podia. Não me tenho dado mal assim, enchi, há pouco tempo, um livro inteiro, a chegar às 200 páginas, só de crónicas dessas, a falar da cidade, sem a qual sou barco sem rumo, folha sem letras, livro sem conteúdo; sobre os pequenos contextos e descontextos, sobre as pessoas que vejo passar pela montra do meu café ou sobre um ou outro amigo que vem sentar-se à mesa comigo a ouvir-me resmungar do tempo ou aqueles com quem discuto o valor etéreo da literatura em dias de chuva. Houve mesmo quem o comprasse e lesse e ainda me viesse dizer que gostou, mais até do que daquela sombria coisa da poesia que nunca ninguém compreende mesmo.
Mas hoje, quando vos escrevo, é Abril. Quando escrevo Abril abrem-se cravos rubros, da cor do sangue que não se derramou e solta-se o vigor da revolução. A que nos havia de salvar da indignidade de não ter voz, da mordaça, da polícia política que avançava casas adentro, esgarçando famílias, torturando, matando, humilhando. Adeus pensamento único, adeus imobilidade de classes, adeus cabeça baixa, chapéu na mão, dorso curvado à ignomínia. Adeus guerra sem sentido.
Quarenta anos passaram da genial revolução sem sangue e olhámos os filhos ressabiados do 25 de Abril que entretanto, por via dele, se alçaram ao poder, entretidos a desfazer aquilo por quem tantos padeceram, muitos lutaram e até morreram.
Alguns avisam e gritam que é preciso uma nova revolução, uma manchada do sangue a que esta nos poupou. Não creio. A revolução está em nós, a democracia, com defeitos e virtudes, é ainda um direito nosso, portanto façamos a revolução nas urnas, nos deveres cívicos que urgem cumprir, ao invés das conversas balofas de café e quando somos chamados a decidir trocamos a obrigação pela praia ou por um encolher de ombros seguido de “não quero saber, são todos iguais, eles querem é poleiro”. Foi o 25 de Abril que, num gesto mágico, nos trouxe a democracia, o direito à escolha, compete-nos a nós não deitar a perder esse direito que é também o dever de fazer (ou merecer) a revolução todos os dias.