| Maria João
Deixo a cabeça no quarto do hospital e o corpo que desce no elevador ouve com desapego conversas banais, repara na tinta lascada dos rodapés, conta as ricas menos perfeitas das passadeiras. Nós, os mortais, quando confrontados com essa mesma natureza, sentimo-nos absortos, como que a pairar no tempo e no espaço. Olha-se a loucura das preocupações diárias como infinitamente ridícula. É-se sem estar. Descolamo-nos de nós próprios e de quem não vive a mesma situação. O quotidiano perde sentido.
A metáfora banal que me ocorre é a de uma ida crítica a um vulgar restaurante chinês. De repente parece-me aberrante a conjugação da delicada loiça de motivos sínicos com os garfos e facas brutos e industrializados. A incongruência entre o fino recorte ondulado das toalhas vermelhas e a protecção plastificada e já baça que as cobre. A contradição entre o orientalismo da designação dos pratos e carta de sobremesas onde habitam vienettas e copos de gelado de baunilha e chocolate. E, sobretudo, ecoa em mim uma profunda estranheza ao constatar a naturalidade com que todos se alimentam destes paradoxos. Sinto-me a única a detectar arestas num planeta que juram ser esférico.
Não arrisco escrever sobre o que não vivi em primeira mão: perder quase totalmente a audição em 72 horas. Observei-o. Vi-o a acontecer à pessoa que me é mais próxima. A comunicação, ao contrário do que se possa pensar, não deixa de existir. Transforma-se. O automatismo de pegar no telemóvel, o acto de falar perde terreno em relação à escrita. Vê-se a falta que o outro sente da gargalhada, do som da água a cair do chuveiro. Apercebo-me até que ponto vai o poder da audição: sem ela não se nota sequer a presença do outro que se aproxima de nós. Desiste-se de socializar. Esgota-se, muito rápido, a paciência de pedir que se repita pela quinta vez o que se acabou de não ouvir. A espontaneidade é protelada, arrastada até se esvair. Cede-se ao isolamento. E são imensas as saudades da música.
Quando o diagnóstico está realizado – surdez súbita –, o tratamento fixado – doses industriais de corticoides – e nada mais resta do que a espera (precisamente um mês, para que se registem melhorias face a uma situação que pode não ser reversível), a passagem de um médico pela cama do hospital torna-se mais rara. Sente-se a impotência. A nossa e a deles. As batas brancas medem as palavras. Refugiam-se na objectividade, no distanciamento de um vocabulário próprio. Aguardam-se resultados de baterias de exames que, quando chegam, apontam para a mais frustrantes das conclusões: causa idiopática, desconhecida. As decisões médicas assemelham-se a uma cabra cega polida e pragmática, que combina a citação dos mais recentes papers da especialidade com uma fórmula de algibeira e vão de escada: “como não prejudica, tenta-se”. Arrisca-se; nada se exclui. Contudo, para quem assiste deste lado, as opções diminuem a passos largos e a incapacidade de prever desfechos e prazos abana a mais forte das crenças no potencial da ciência. Solicitam-se segundas e terceiras opiniões e obtêm-se as mesmas respostas. Para uma universitária como eu, a ausência de soluções é dilacerante. A insuficiência do conhecimento humano e as consequências radicais que daí advêm são revoltantes. A paciência sem resignação parece atributo de santo. Aprende-se, tão-só, a fingir a serenidade. A contrariar o impulso de todos os dias aguardar e indagar alterações.
O quarto fica situado no fundo do corredor. Nunca pensei que um extenso eixo espacial pudesse ser tão útil. Ao longo deste percurso tudo é asséptico. Nem mesmo as reproduções baratas de obras da colecção do Centro de Arte Moderna furam a tonalidade impessoal, artificial, esverdeada, que infecta tudo na sua eficácia racionalista. Pelo meio, uma minúscula sala de espera, o único lugar onde existe uma televisão. Uma divisão deprimente, de intimidade e familiaridade forçadas pela pequenez de metros quadrados, filas de cadeiras pegadas e ordenamento exposto, sem recato. Todo o trajecto permite uma preparação, uma mentalização. Prega-se um sorriso no rosto. Os olhos desumidificam-se a ferros. Ensaiam-se três frases de ânimo e revolve-se a cabeça em busca de quatro assuntos de conversa lida nos lábios. Girafas, zebras, chimpanzés. Tudo é permissível menos o elefante branco na sala.
Oiço os meus próprios passos, como se o chão possuísse cola. Gostaria de ter mais 500 metros pela frente. Mas a porta está já ali. Entro. A linguagem corporal ganha um peso renovado e, por isso mesmo, tem de ser controlada com especial cuidado por quem quer apoiar e ser uma presença positiva. Tudo no meu corpo procura desesperadamente sorrir. Ao lado, acumulam-se «casos», que cortinas separam visualmente e que a surdez aparta por completo. Dá-se o que se tem e o que não se tem até o horário de visita se prolongar para além do aceitável. De novo o elevador. Uma parte de mim sai, a outra fica.
O mundo para durante duas semanas. No entanto, por via de um comportamento por certo explicável pela psiquiatria, retorno, lentamente, a níveis de funcionalidade que me levam a regressar ao trabalho, a voltar a encher a despensa de compras e a ir mesmo até a um jantar de aniversário. Não me sinto completa na realização de qualquer uma destas tarefas. Mas exaurida e consumida, anseio, não sem culpa, por alguma, ainda que falsa, normalidade.
Esta é uma crónica sem um final feliz, numa época em que se deseja consumir literatura de aconchego. Mais grave do que isso, ao centrar-se numa experiência pessoal tornou menos prováveis as pontes racionais e emocionais com o leitor. Julgo, porém, que de um episódio particular e raro como este se podem extrair leituras de aplicação global. Assim acontece porque todos temos, independentemente das variáveis, algo em comum. Vivemos, a larga maioria dos dias, descentrados do que realmente (nos) importa e alheados da nossa fragilidade. Tratar-se-á, possivelmente, de um mecanismo de sobrevivência. Uma consciência integral da precariedade humana acarretaria um peso insuportável que redundaria na celebração presentificadora do quotidiano ou numa existência teleológica penitente. O caminho estará algures no meio, entre a alienação saudável que nos permite elaborar planos e o suficiente relativismo que nos concede a sabedoria de conferir o peso certo a cada aparente drama da nossa vida.