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sábado, 15 de março de 2014

O peixe além do rio

|Márcia Barbieri

E os frutos estavam todos suspensos sobre minha cabeça, verdes no princípio, não podia me mexer, qualquer movimento romperia a tarde – rotação translação – bagunçaria o solstício. O dia esticava e os figos continuavam podres, fatiados, é como se os pássaros os tivessem estripados antes de devorá-los. Olhei em direção à janela, ela estava fechada, já não sei precisar a quantos anos, imaginei o corpo do meu pai estendido na cama como se fosse uma fruta que ainda amarra a boca, esperando amadurecer. À força. Pensei na solidão branca e calcificada do esqueleto, vendo os músculos se descolarem aos poucos. Pensei na carcaça das baleias brancas. Quando era menor eu acreditava que deveria ter medo dos mortos, achava que eles eram onipresentes e podiam escutar meus passos-ruídos sobre o assoalho de madeira. Quando escurecia ficava com os olhos bem abertos para poder me defender, caso eles aparecessem. Depois fui percebendo que os vivos eram muito mais assustadores e surgiam a qualquer hora e me agarravam com as mãos pegajosas e frias de suor. Lagartos amarelos. Percebi com os anos que o ranger de dentes eram dos seres que estavam em vigília, conhecidos por essas bandas como homo erectus.
− Ela tem razão, parece um planeta.
− Não brinca! Eles são grandes e pouco estéticos, tenho vergonha de olhar no espelho, minha cara está virando uma monstruosidade.
− Deixa de besteiras, já te falei que depois da cirurgia, tudo voltará ao seu devido lugar.
− Às vezes, me sinto completamente entorpecido...
− Você divaga muito, tem uma mente ágil, você percorre lugares desnecessários, sente dores ilusórias, a sua ansiedade é que está te matando, os caroços são apenas manifestações desse seu estado mental perturbado.
− O que adiantaria¿ Uma dose maior de fluoxetina¿
− Quem sabe... O que acho mesmo é que precisa aprender a ser como as moscas.
− Como assim¿ Que vantagens eu teria em ser como as moscas¿ Revirar merda¿ Já faço isso bem demais, não é fácil viver todos os dias, querendo ou não atolamos o pé na merda.
− Não foi bem isso que quis dizer... As moscas chafurdam na merda o tempo inteiro, mas nem por isso se tornam merda, continuam sendo feitas de outra matéria, uma matéria mais nobre, voam sem culpa para outros corpos.
− Tem toda razão, não sou feito da mesma matéria das moscas, até gostaria de ser assim solto, mas sou dado a afetos fáceis, o caos alheio me perturba e desorganiza. Não consigo pousar em outros corpos e sair ileso. Você consegue¿
− Não sei, acho que sou mais frio que você. De qualquer forma estou achando esse papo pesado demais. Quer um cigarro¿ Você está muito tenso hoje.
− Você é o único médico que me recomenda cigarros para acalmar meu humor. Não fumo há três dias, mas acho que estou precisando mesmo de um pouco de fumaça para anestesiar meu cérebro.
− Então, tome logo dois, assim se sentirá anestesiado por mais tempo.
− Passa aí, tenho certeza que me sentirei melhor quando anoitecer. Se é que hoje vai anoitecer...
− Talvez pense assim porque vive numa insônia permanente.
− É difícil adormecer sabendo que existe algo ruindo embaixo da terra.
− Você é mesmo um rapaz complicado, o que se move embaixo da terra que te assusta tanto a ponto de tirar seu sono¿ Roedores gigantes¿
− É obvio que já sou grande o suficiente para acreditar em roedores gigantes. Não é disso que estou falando, eu me refiro a parte geográfica da coisa.
− Geográfica¿
– Você nunca sentiu medo das placas tectônicas¿
− Você está brincando! Você acha mesmo que já perdi o sono pensando no movimento das placas tectônicas¿
− Por que não¿ Você não acha incrível imaginar que enquanto dormimos as placas estão todas lá, se movendo embaixo dos nossos corpos inertes, rindo da nossa inércia¿
− Pra ser bem sincero amigo não acho isso incrível, não ligo a mínima pra essas coisas. A única coisa que me faz perder o sono é o sexo e assim mesmo só durante o ato.
− Tem toda razão, é besteira minha, sou um lunático.
− Eu sei e isso me diverte bastante.
− Meu cigarro está acabando, está quase queimando a ponta dos dedos e continuo pior do que antes, acho que preciso de um médico mais otimista.
− Tem razão, ando ácido esses dias, é o mal da velhice, meu garoto.
− Então espero não envelhecer.
− Infelizmente não é uma opção.
− Pode me dar mais um cigarro¿ Assim posso me distrair até em casa. Já vou, não quero que perca mais seu tempo comigo, deve ter um monte de clientes te esperando e eu aqui te empatando.
− Larga de besteira, não atendo mais ninguém esse horário, meu expediente já acabou, você sabe que não faço a linha do bom samaritano. Fica tranquilo.
Fui embora com um peso nos ombros. Acendi o cigarro e fui observando o desenho que a fumaça fazia no ar. Nas ruas todos os rostos se pareciam, embora em nenhum deles eu me reconhecesse. Era mais uma vez o velho macaco em frente ao espelho. Conversar com Paulo não me aliviava muito, ele era uma grande figura, mas nossos corpos eram feitos de uma combinação totalmente diversa de átomos, o que nos tornava praticamente seres de outra espécie. Perto dele eu me sentia um símio. Um símio que estava há milhões de anos na Terra, entretanto ainda trazia a mão dura e inábil, uma mão que ainda não sabia utilizar os instrumentos civilizatórios, os dedos longos e pouco articulados, nunca fui bom em pinçar objetos pequenos. Eu ainda produzia fogo lascando pedras. Utilizava vasos de cerâmica. Ainda me escondia em cavernas úmidas e fazia pinturas rupestres das minhas caças. Procurava adivinhar o futuro lendo as vísceras dos porcos. Sacrificava animais para amenizar a fúria dos deuses. Era inútil conversar sobre as coisas que me incomodavam, ninguém poderia levar a sério um homem que se assemelhava a um peixe, mexia a boca como um peixe desesperado, tirado há pouco da água. Ninguém poderia entender o coração oco de um ventríloquo. Os bonecos de cores variadas distraiam a anemia das paredes. Artérias e veias se confundiam na vastidão do meu corpo. Lembro da minha perna sendo rompida por canos e todos pedindo que me acalmasse, era apenas uma ponte de safena, milhões de homens já tinham se beneficiado com esse método aparentemente invasivo. Eu estava acostumado às suturas, às trepanações, a membros que não pertenciam a meu corpo. Um ventríloquo. Tinha a impressão que às vezes a minha alma ficava presa naqueles bonecos. Outras vezes me sentia numa sessão vutu, como se todos os meus movimentos fossem controlados por uma mão invisível atrás do palco ou um homem vestido de preto para não ser visto pela plateia.
− Sabe como eu vejo a vida¿
− Como poderia saber se a cada dia você é outro¿ Tenho a impressão que te traio com esse outro que por vezes se apossa do seu corpo.
− É como se a vida fosse uma daquelas goiabas grandes, você pega a faca, corta e dentro ela está bonita e vermelha, então você prepara seus dentes e perfura a polpa, mas na segunda mordida, você vê uma larva branca tentando escapar em meio ao desenho das sementes. E a fruta está tão irresistível que o impulso é devorá-la com larva e tudo. Você para e pensa: “Que importância tem essa larva branca e raquítica¿”
− E o que acontece¿ Você devora a goiaba ou o bicho anêmico vence¿
− Isso é o que eu ainda não sei. Em determinados momentos acredito que venceríamos a larva, em outros acho que a larva riria de nossa cara.
− Não posso escolher por você, mas quando eu era criança, eu nunca pensava, simplesmente engolia aquele bicho branco fingindo não enxergá-lo. Hoje ainda faria o mesmo.
− A infância é maravilhosa por isso, o impulso pela vida sempre ganha.
− Falando assim até parece que você é muito velho...
− E não¿
− Não!
− É que você está fazendo como a maioria, medindo minha vida por anos, assim realmente eu fico parecendo um garotinho.
− E como eu deveria fazer¿
− Deveria calcular levando em conta as experiências que tive.
− Talvez, mas assim é muito difícil ser precisa.
− Não quero que seja precisa, só que entenda que sou bem mais velho do que aparento e quero que me respeite por isso.
− Você sabe que eu te respeito e admiro.
− Eu vejo além da sua cara, e isso não é bom. Eu queria boiar na superfície, como a maioria das pessoas.
− Eu não estaria aqui se você boiasse como a maioria, você sabe, o que me prendeu foi ver em você um escafandrista.
− Não sei... Será que sou mesmo um escafandrista ou apenas um louco que colocou pedras no bolso antes do mergulho¿
− Um escafandrista, com toda certeza. Você me trouxe novamente à superfície, eu ainda vejo o fundo, mas de um lugar seguro.
− Eu gosto de sentir o quanto confia em mim.
− E a cirurgia, conseguiu marcar¿
− Consegui sim, mas você sabe o que penso dessas cirurgias.
− De novo!
− Não quero bancar o chato, mas eu não agüento mais ficar me cortando e esperando outro nódulo aparecer.
− Mas o que o Paulo falou¿
− O de sempre, a cirurgia será um sucesso, nem vai parecer que você tirou nódulos do rosto, vamos torcer para que eles desapareçam de vez.
− Então, qual é o problema¿ Ele não disse que dará tudo certo¿
− Sim, disse, mas você se lembra quantas vezes ele falou isso¿ Em todas as cirurgias ele diz que a probabilidade de reaparecer os cistos é mínima, no entanto, eles sempre reaparecem, eu quero ser mais paciente, mas está difícil.....
− Não podemos fazer nada até a cirurgia. Você tem que se acalmar, não foi você mesmo quem disse que esses cistos são de fundo emocional¿
− Por isso mesmo acho improvável que eles desapareçam, é como se minha alma quisesse tomar forma, deixar de ser abstração, matéria gasosa e se transformar em algo concreto, ainda que sem nome, quisesse se apropriar do meu sangue.
− Você sabe que não me incomodo com seus nódulos, eles me parecem um mundo paralelo, planetas girando em órbita, girando em torno de você.
− Me consumindo, essa é a verdade...
− Você sabia que amanhã acontece o perigeu¿
− Como poderia me esquecer¿ Não durmo há uma semana, imaginando as placas tectônicas se movimentando embaixo do meu corpo...
− Será uma noite linda! Li no jornal que não haverá nenhuma catástrofe. Não deveria se preocupar tanto com os movimentos da Terra.
− Não me lembro dos jornais terem falado das tsunamis antes de elas ocorrerem... e depois como posso dormir tranqüilo sabendo que a Lua está mais próxima da Terra¿
− Só os ignorantes têm o sono profundo.
− Às vezes, você consegue ser muito mau!
− Não é maldade, eu juro! Eu adoraria fazer parte dessa massa amorfa e homogênea, você nem imagina o quanto eu gostaria...
− Esquece isso, vamos pra cama e eu te faço ser um pouco dessa massa amorfa e homogênea... seremos uma coisa só, um monstro de duas cabeças e vários membros... hermafrodita...
A lua vagava solitária na cartografia dilacerada do meu corpo, minhas tripas doíam e eu não sabia o que fazer. Paulo já tinha me explicados milhões de vezes que eu tinha tendências a doenças psicossomáticas. No começo me assustei com a extensão do nome, mas ele me garantiu que não era nada sério, era como se meu corpo formasse pequenos nódulos para poupar minha mente. Tinha operado oito vezes, mas os nódulos ainda apareciam nos lugares mais inusitados. O penúltimo apareceu dentro da orelha, enorme e vermelho. Anuncia gostava, dizia que era igualzinho um planeta perdido no sistema solar e não era nem preciso de um telescópio.