terça-feira, 30 de abril de 2013

4 poemas e um vídeo de Joana Santiago

|Joana Santiago


I Lucidez

Se parar é morrer, nós nunca parámos
parece que esta cruzada se espalha por pântanos
lugares onde se afundam nas águas serenas
os nossos corações que ardem em chamas

de volta ao nosso espaço, construímos um quarto
com paredes de marfim, enjoamos como barco
acompanhados de vazio e partes divididas
já fomos e voltámos e estamos sempre de partida

ás vezes sonho que caio pelo abismo sem nexo
preencho o espaço de uma folha e proclamo escolha
como uma distração indesejável, perco a inspiração
é que se a cabeça se manifesta, perde-se rumo a casa

arrasto comigo um amanha, estava prometido irmão
agora é teu, aproveita a sombra que deixo
segue as mesmas passadas e no espelho, existe
assume fisicamente a tua forma de deus e acena

sopra a tinta no balão e acusa a lucidez,
se parar é morrer, nós nunca existimos
parece que esta cruzada foi apenas sonhada
e os pântanos de que falava, são buracos de nada

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Violência

|Sara L. Heart


Na ponte alta permaneces.
Que distância mais arde para ser percorrida
Antes de teus olhos descansares
Naquela antiga maneira de paz?
Evocando o outro lado de ti
A salvo no abrigo provisório da paixão
Gela as tuas veias, Suspenso no tempo
Ao imaculado e quente ponto
Sem retorno.

Perdido em toda esta violência
Que a nada te molda no teu centro
O vazio que te escorre na pele.
Um destino que não é, nem nunca foi.

O coração, presa do fingir
Nunca de casa se ter despedido
Mentira demais ousada para tua alma
Nunca precisa nesta verdade
Longe demais, o tempo incerto
Negros caminhos onde a luz se evapora.

Acordado, à noite perguntas
Em ritmos de ardor suplicante
Se atrás voltarás, um dia, uma hora
No teu peito pesado, pedras de memória
Das janelas e portas do amor.

A canção de embalar, filha das paredes
O calor da noite era teu
A vida descansava na tua pele
Passeava-la no teu colo como uma fotografia
Troféu perdido.
Para sempre.

Lugar aquele que tudo foi.
Em todos os ângulos de todos os cantos
As ondas frescas do tempo
Em cada respiração de cada dia.
A mensagem no silêncio
Debaixo dos lençóis da tua cama.
O sólido chão da certeza
Quando nele descansaste a duvida.
A protecção inerente
No pulsar das paredes.

O coração de que nunca se esqueceria
Não reconhece a tua voz.

E enquanto o vento te chora, então
Por ruas e rostos sem sabor
Forte e belo permaneces
Rogando o esquecer das pedras
frias sob teus pés.
Com lágrimas para trás deixadas
Com súplicas de um adeus contadas
Os nomes, luz de estrelas perdidas.

Que elas te ensinem o caminho de volta
Se tudo ficar escuro.

sábado, 27 de abril de 2013

Agora que da vida conheces o valor

|Paulo Bandeira Faria


Agora que da vida conheces o valor
Sombra e vento numa tarde de calor

Agora que da vida conheces o valor
A criança dando-te a mão junto à água fria

Agora que da vida conheces o valor
Uma lareira castanhas neve e jeropiga

Agora que da vida conheces o valor
O livro o corpo o prazer da partida

Não te despeças e vive-a com ardor
Pois a morte disso tudo te deu justo valor

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Garanto-te estar bem e que não temo

|Paulo Bandeira Faria


Garanto-te estar bem e que não temo
Mas durante a noite levantas-te
E deparas com o que me tolhe

Repetindo que estou bem abraço-te
E levo-te para a cama sobre os meus passos
Tu de novo a bebé anterior aos medos

Mas nos meandros da minha insónia
Por muito que ambos o silenciemos
Descobres o que escondo nos olhos

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Há...

|Paulo Bandeira Faria


Há um banco na praça Sultan Hammet, frente à Mesquita Azul
Muito perto do obelisco egípcio e do edifício dos correios
Que tem um coração onde pus o meu nome
Deixando espaço livre para outro.
Há um sítio no palácio Topkapi onde se vê o Bósforo
A torre Galata e os barcos a entrarem
E as casas de madeira e os laivos muito azuis
Das águas em manhãs intensas.
Há velhas árvores solitárias em zonas do Sahel
Perto de aldeias onde os conhecimentos antigos
Perduram nos nossos espantos.
Há ilhas cheirando a especiarias, mercados coloridos
Salas escuras com dores de escravos e praias
De ondas verdes e espumas amarelas
Que encrespam a minha pele à espera que a aqueçam.
Há selvas fechadas e quartos trancados e varandas sobre
Os sons mais suspeitos do rio e galopes
De tempestades que se aproximam para simplesmente
Aconchegarem o meu sono noutros braços.
Há aeroportos e autoestradas sem fim
Portos piscatórios com pubs quentes e cerveja morna
E sidra fria e café aromático e cigarros compartilhados.
Há um sofá e projetos delineados em noites
De televisão apagada. Há desejo constante
No sofá, na banca da cozinha, na cama, no banco de trás
Do carro, no escritório, num prado verdejante à beira
De sinuosas escarpas. Há casas rurais frente ao oceano
E manhãs passadas na cama, almoços brindando a embriaguez
Do vinho tinto, tardes de passos lentos à chuva, noites de
Loucuras repetidas e nunca consumidas
Dure-se os anos que viva. Há
Histórias nos altos dos Andes e nos vales dos Himalaias,
Nas ilhas do Índico e nos comboios do Rajastan,
Nas estepes da Ásia e nas ruas de Nova Iorque,
Nos fiordes da Noruega e nos mágicos lagos da Irlanda,
Nas ventosas praias da Dinamarca e nos plácidos hotéis do sul de Espanha,
Nos crepúsculos dos dias de trabalho e nas noites de copos
Da Galiza com amigos, e nas rias onde velejo
Vendo nos contornos dos montes um rosto conhecido.
Há dias de tristeza em que o outro não desiste
E de alegria em que o outro se ri
Da nossa alegria esfuziante. Há dias de monotonia
Em que o pequeno-almoço é levado à cama
E ambos ficam enroscados a ler livros guardados há muito
Apreciando bordados, olhando números e letras
Organizarem-se num sentido definitivo
Por simplesmente estar a ser palmilhado.
Há momentos em que o mundo se ergue contra
E o amor apaixonado se ergue mais ainda e grita
“É meu, vão-se lixar todos
Ninguém me rouba este sonho!”
Há contas feitas em conjunto, poupanças dialogadas
Sensibilidades respeitadas e gestos discutidos
Liberdades tão mais belas porque decididas em uníssono
E infinita compreensão. Há hábitos perdidos
Por sentimentos descobertos para que duas existências
Sejam a materialização uma da outra.
Há estradas sem horizonte e motéis perdidos
Onde dois corpos se reencontram
No apaixonado conhecimento do que é seu.
Há Veneza e coffee-shops de Amsterdão onde fumarei
Flores de ilusão para nos seus contornos
Te ver outra ainda, e ramos de flores oferecidas
Em ruelas bordejadas por canais.
Há museus, galerias e lojas e restaurantes orientais
Bares incomuns e trajetos de silêncio
Em que um dorme para o outro estar acordado
E logo se encostar a descansar para o outro
O conduzir à incógnita de um novo lugar
Na curva da estrada, por detrás da janela florida
Onde lençóis de linho branco relembrarão
A contrastada evidência do negro e do vermelho.
Há o regresso ao que não se gosta com a ternura
De que um preço que se paga repetidamente
Só vale a pena pela pessoa da sua vida.
É esse nome que quero no banco da praça Sultan Hammet,
É esse o corpo que quero na cama de ilhas do Índico
No sofá de uma pequena casa de madeira
Nas noites tristes da velhice
Nas tardes alegres dos sucessos
Nas manhãs desencantadas pelas dúvidas
E nelas sempre o apoio e a compreensão que tem sentido
Ser mimado e vivido em conjunto.
São esses dois que quero pelas poeirentas pistas do Sahel
E nas resguardadas praias do nordeste do Brasil
E nas eternas letras dos poemas
E nas dedicatórias dos livros
E nos quadros mais bonitos
E no desinteresse do trabalho
Com pressa para se regressar a casa
Trancar a porta e dizer
“Aqui ninguém entra! ”
E quero esse rosto a ver o meu rosto enquanto velejo
E a limpar o meu rosto frente às eternas neves do Kilimanjaro
E dos perdidos vales do Tibete, a caminho de Lhassa.
E quero esse rosto junto ao meu em praias de águas turquesa
E cafés com vidros molhados pela chuva impenitente
E na almofada com o meu aroma
E no chuveiro onde a chamo
Para que venha sentir o mesmo calor que eu.
E quero esse rosto presente no dia em que sonho o que for
Um filho, uma filha, um livro, uma exposição, ou outro projeto
De qualquer tipo de viagem,
Sensual, intelectual ou geográfica.
E quero ver nele o reflexo do arco-íris das minhas emoções
E ver nele o espectro das minhas recordações
E nele a encantadora confiança de todas as exclusividades.

Por todos os sítios em que andei
Procurei partes de mim e do que sou e poderia ser,
Mas fi-lo sempre com a ilusão de que outra pessoa
Poderia vir a refazê-los ao meu lado.
Se és tu, coloca nesse destino o teu nome
No dia em que cada um dos dois achar ter chegado
O momento certo para vivê-lo.
No dia em que o teu destino tenha também o sentimento
Destes versos. No dia em que
Duas pessoas tenham a certeza de que devem deixar
Uma pele antiga para luzir outra nova
Entrevista e intensamente descoberta e sentida
Numa noite fria, numa cama de solteiro, num quarto
Onde alguém amou morrer porque sentia renascer
Neles outra existência.
O dia dos outros dias partirá quando menos se espera
E o nosso será decidido em conjunto. Já se sabe o horizonte
Já se conhecem muitos dos obstáculos. Mas todos
Serão superados se acreditarem que
Há locais pelo mundo e pelo tempo
Que desde sempre
E para sempre
Lhes estiveram destinados.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

E subitamente descobres que te encontras

|Paulo Bandeira Faria


E subitamente descobres que te encontras
Gravemente doente
Já no estádio 4 de uma escala de 1 a 4

Por uma vez estás entre os primeiros
Na linha da frente
Para o improvável milagre, ou o desastre

Dão-te entre 1 e 5% de possibilidades
De sobreviveres aos próximos 5 anos
E o teu filho + novo ainda só tem 4

Derrubar-te-ás, quem sabe, antes dos 50
Depende como reajas ao tratamento
Do que já tens e de novas metástases

É assim, paulo, o teu fim, pensa-o agora
Porque a palavra morte tornou-se presente
Não pertence já a um futuro + ou – abstrato

terça-feira, 23 de abril de 2013

No dia em que morri…

|Paulo Bandeira Faria


No dia em que morri
Um operário aqueceu as mãos numa fogueira antes de ir trabalhar
Duas pombas procuraram o sol para descansar
Uma nuvem só partiu sozinha
E uma árvore só quebrou a monotonia
De um horizonte gelado.
No dia em que morri
Uma ria esteve intensamente azul pela manhã
Mais cinzenta pela tarde
E à noite uma miríade de luzes aconchegadas no sopé da colina
Esparziram-se pelo espelho negro da água até esta margem.
No dia em que morri
Uma senhora bebeu um café já frio
À espera do amante que não veio.
Uma amiga tinha-a confrontado com esta pergunta:
– Já enganaste o teu marido?
– Já.
– E então?
– Da primeira, chorei; na segunda, não; na terceira, ri-me.
No dia em que eu morri
Ela saiu do café morta
Por chegar ao umbral da sua casa
E aí poder chorar livremente
Antes de entrar
E confrontar-se com um marido
Que nunca a beija.
No dia em que ela morreu, morremos ambos.
Um pai levou um filho pelas ruas num triciclo
Empurrando-o e sorrindo por o ver agarrar tão bem o volante
Um estudante olhou uma vez mais o exame
Aprovado, diante do pequeno-almoço que a mãe
Lhe preparou tão contente
De vê-lo com o curso quase terminado.
No dia em que morri nasceram muitas crianças
E outras mais podiam ter nascido, uma das quais
Com os meus olhos e o meu sorriso.
Na manhã desse dia
Muito longe, um homem enganou uma mulher que lhe vendeu
Um maço de tabaco numa rua cheia de lixo e movimento
Exigindo-lhe o troco do valor de uma nota que não lhe tinha dado.
Era fumador inveterado.
Na tarde desse dia, ia eu a conduzir,
O homem voltou a dar 20 à espera de exigir troco de 50,
Mas a vendedora só largou o maço depois
De lhe exigir que dissesse o valor da nota em voz alta.
Deu-lhe então o troco de 20 e o maço
(fazia eu uma curva fora de mão)
E disse-lhe:
– Quando o tiver terminado, estará morto.
O homem riu-se e acendeu o primeiro cigarro
Mas à medida que avançava o dia em que eu morri
Cigarro a cigarro, aumentava nele o medo
E logo um pavor irracional, e logo um pânico injustificado
Que lhe arrancava o sorriso cínico dos lábios
E a segurança de qualquer afirmação.
Na tarde do dia em que morri
Num café de idosos serviram uma água a um rapaz
Que telefonava para um hotel em frente.
O frio das pedras suportava
Eternidades de intempéries. Raios de luz
Repetiam-se em infinitas esperas
Uma cama esperava por ser desfeita
Um corpo esperava
Por beijos num canto da boca
E logo noutro canto da boca
E logo no centro da boca
Numa entrega sem restrições.
Na tarde do dia em que morri
Uma música de P. J. Harvey chamada One line
Tocou pela primeira vez nas rádios
Mas eu percebi On line e pensei escrever um texto dramático
Que deixarei para o início de outra vida.
No fim da tarde em que morri
Pela primeira vez telefonei para a rádio a pedir
Que a repetissem
E subi escadas até ao número de um quarto
Batendo duas vezes à porta
E a porta aberta trouxe a luz que já faltava
Ao fim da tarde desse dia em que morri
Contigo
Pela primeira vez.
– Desde então tenho morrido por ti todos os dias
Sem nunca saber se alguma vez nascerei para ti um dia...
Diria a mulher ao marido que nunca a beija
Porque já não pode dizê-lo ao amante que não veio
E um homem perdido
Atirou o maço com três cigarros à baía
E a chorar procurou a noite toda
Essa mesma noite em que eu morri contigo várias vezes
Para pedir a alguém que aceitasse o troco roubado no dia anterior.
Durou quanto tempo?
Durou quanto tempo a memória da noite em que
Em ti
Morri?
Durou quanto tempo a procura do homem
Desesperado por um cigarro,
Que na manhã seguinte foi encontrado
Numa rua com lixo e quase sem movimento,
Ao som de One line de P. J. Harvey,
Por uma humilde vendedora de cigarros avulso
E maços para os mais endinheirados
– ou os que já nada tinham a perder –
Com uma facada nas costas?
A noite em que morri
Uma infinidade de vezes
Matou-nos uma infinidade de vezes, cigarro a cigarro
Em impotências, equívocos e mentiras,
Sem noites em que chorasses comigo e outras em que te risses
Sem, simplesmente.
Passou um mês. Quantas vidas vivemos desde então?
Quantos fomos e sonhámos ser
Desde a manhã em que o operário começou o dia aquecendo as mãos
E terminou com alguém percorrendo as ruas em busca de perdão
Recebendo apenas uma navalhada
Longe, longe, mais longe que nós
On Line?

Um dia perguntaram-me:
– Quando sabemos que um poema deve terminar?
Na altura respondi:
– Quando está tudo dito.
Não está certo, vejo-o agora: um poema como este termina
Quando temos a certeza absoluta
De que nada está concluído
E tudo o que foi dito foram dúvidas.
Não saberei nunca quando termina este poema
Mas garanto-te que a recordação da noite
Em que contigo, em ti e por ti morri
Permanecerá para sempre.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Quando o silêncio te salva das tuas palavras

|Paulo Bandeira Faria


Quando o silêncio te salva das tuas palavras
Até seres pura contemplação
Quando o silêncio revela em ti os sons do teu corpo
Sussurrando que – para tua surpresa – ainda estás vivo
Quando o silêncio se introduz pelas frinchas do vento
Ou quando no silêncio descobres a nova dimensão
Da dor tão grande que sentes, então sabes
Que o silêncio existe porque já o levas dentro

Quando no silêncio esqueces o tempo
Quando nos teus pesadelos caem dentes
Quando as árvores entre a bruma lembram fantasmas sem luz
Quando a Jesus queres dar descanso descendo-O da cruz
Quando o melhor de ti não apazigua
Nem o martírio da tua noite nem a de ninguém
Quando os teus trajetos se tornam indefinidos, então vês
Que o silêncio existe porque já o levas dentro

Não é o mundo todo que te rodeia em silêncio
Tu é que já és ao silêncio do mundo alheio

domingo, 21 de abril de 2013

Escrever para suprir

|Andreia C. Faria




A leitura e a escrita como tarefas em função das quais organizar os dias surgem muito cedo, mais fruto das circunstâncias do que de uma opção consciente. Ler e escrever (melhor do que a maioria dos miúdos o faria então) começou por ser, aos 8, 9 anos, a minha forma de exercer poder. De impressionar. De me situar perante mim própria e perante os outros.

Se tivesse sido uma princesinha, uma rainha da beleza pré-púbere, se tivesse oportunidade de andar ao ar livre em vez de passar horas fechada num pequeno apartamento, certamente não teria começado a escrever - teria coisas melhores para fazer. Escrevo porque não sou uma estrela rock, não sou campeã de ténis, não sou fotógrafa ou actriz ou realizadora de videoclips. Escrevo porque a escrita é o que me sobra para encenar o corpo.

A escrita nasce da solidão. Uma criança é como um gato - altiva da sua solidão, sem memória de um entendimento que não seja consigo própria. Depois cresce e apaixona-se e escreve para retornar a esse estado edénico da primeira solidão.

sábado, 20 de abril de 2013

Basta saber que por aqui se escoa o sangue para me precaver

|Andreia C. Faria



Basta saber que por aqui se escoa o sangue para me precaver



Já me conhecem
as mulheres, vêm ter comigo se nas ancas
não lhes cabe a dor. E eu troco

por amor o trabalho de sublimação, o invisível
transbordado por um fio, eu ensaio a cada noite
os quinze minutos do seu consentimento. É só este

o afecto que me guardam, reunir em seco
o sangue, o simulacro, e trazê-lo por cisternas
e raízes pelas coxas, vindo de longe, de fora
do corpo, unindo-me a elas no que se esvai

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Ali sentadas, na areia

|Andreia C. Faria


Ali sentadas, na areia
em frente ao mar, aguardando
que um casal de idosos acabasse de passar,
não nos beijámos
Tão próximas, medíamos
o cansaço, as fúrias sazonadas, a impura
frase com que a pele rasura
a juventude

Desfeita a onda, mais nenhuma
comoção. E só volto a lembrar
a recusa que nos deu início
se no chão da sala encontro
o teu leve estremecer
de peixe posto vivo onde
não há água ou aridez
que a morte traga
Os meus dedos investem
a tautologia do choque,
uma boca fechada

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O meu pai falava em francês para estranhar a língua

|Andreia C. Faria


O meu pai falava em francês para estranhar a língua
Fazia os mais esquivos versos que eu já tinha ouvido
à boca da mulher roufenha que o meu pai
também era. Em acessos regulares escoava-os
a tosse ou caíam-lhe dos punhos na mesa de jantar
Rendilhados, animais polutos
comíamo-los, entretecíamos no estômago
um filho de carne

*

O meu pai era um homem grande
mas uma mulher pequena, e assim cambaleava
severamente no terraço onde os outros homens
obsidiavam pedras, excrementos, os mínimos muros
que o faziam tropeçar. O meu pai amava
um rapaz moreno como lixívia, um negro
que em nossa casa se sentava, recobrindo com óculos escuros
as vantagens do trabalho infértil
Todos os dias o meu pai lhe aparecia,
a mulher estremunhada, e rarefeito no vidro repetia
os seus versos de amante imerso
A langue, na condição de velha excêntrica,
na sua lascívia infantil, fazia a vez
do falso pudor, desabotoava o sexo
e com dedos anelares propulsava a escuridão

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Dormíamos de janela aberta

|Andreia C. Faria


Dormíamos de janela aberta
e aliada ao sangue a lua
era véu que nos retardava a face
Desavinda da terra
montavas à sombra de estacas
o corpo
onde havia de passar o meu
modesto, incontuso
afeiçoava a água em espirais

Entre nós não havia lisonja
e parando os gestos revelavam
o pó comestível da febre
A doença era o nosso sintoma
Se te amava era sem sono
adiando a noite inteira
a comprida dormência dos membros
no nosso futuro andamento
fantasmas

terça-feira, 16 de abril de 2013

Flúor

|Andreia C. Faria


Agradeço-te, mãe, o flúor
que até aos seis anos tomei em comprimidos
Serve de herança a melhor dentição
Deste-me as falhas, também
o carácter, mero utensílio
da sorte com que encarar os dias
o silvar nas frinchas
da fala
as dores
e o ranger da criação

Se pela boca começasse
a alma a abrir-se e por tal paisagem
divisasse eu primeiro
a oclusão do céu deixando
intacta na terra
a geração dos vivos
poderia (e tu pela raiz)
salvar-me antes mesmo
de aprender a ler

segunda-feira, 15 de abril de 2013

O último banho de mar depôs-me na pele

|Andreia C. Faria


O último banho de mar depôs-me na pele
um caracter neutro, balsâmico, decifrado pela infância
Um frio súbito, restituído de sentidos

Ainda hoje a felicidade me vem de dentro como uma traição

Vi a minha pele à transparência
e mesmo a ondulação, transfigurando, dava-lhe
a integridade do que se desfralda a amar. O mar
não me esperava, a comparência de uma antiga
onda

Quanto mais esparso o sexo, mais
espessa fica a pele, e em pouco tempo
seria o oceano um olho cego, a água densa
de uma esfera, um gigante dobrado no seu leito de basalto

domingo, 14 de abril de 2013

O tipo e a noite

Recensão de os peixes melancólicos de Carlos Veríssimo

|Manuel A. Domingos




Nos últimos três anos tem havido o ressurgir do gosto pela tipografia com caracteres móveis. Exemplo disso são os projectos editoriais Oficina do Cego, Pianola e 50kg. Todos nós gostamos de sentir, no papel, a pressão das letras. Os objectos que nos chegam são preciosos: é o tempo de alguém que temos nas mãos, o seu amor à arte. No entanto, é preciso algum cuidado. Muitas vezes são mais apreciados os objectos do que o seu conteúdo, isto é, o texto. E na maioria dos casos, tirando algumas excepções (como é o caso), ainda é o texto que faz o livro.

sábado, 13 de abril de 2013

Onde se prova que ainda nos sabemos divertir

|Philippe Delerm

Mr. Mouse dança como um urso. O seu fôlego de corredor a pé permite-lhe rodopiar durante bastante tempo, mas nenhuma graça, nenhuma leveza, nenhuma técnica. Paciência! No tempo em que era rato jovem, contentava-se em ver dançar os outros, na festa de Brambly Town. Baforadas melancólicas de gaita-de-foles ressoam-lhe ainda nos ouvidos. Deixava-se ficar ali, sentado no pequeno muro; todas as ratitas rodopiavam, tão delicadas, e ele incapaz de ousar convidá-las – e tinha tanta vontade de o fazer! Um dia, num casamento, deram-lhe como acompanhante uma bonita prima. Jeremy ainda se lembra daqueles slows langorosos, com as patas esticadas longe da infortunada – uma vergonha!

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Onde o nosso herói confessa sem vergonha excessiva uma tendência gulosa para se ver ao espelho.

|Philippe Delerm


Mr. Mouse costuma ver-se ao espelho. Este hábito pouco ou nada se alterou ao longo dos anos. No entanto, Jeremy Mouse domina, qual filósofo, os elementos da análise: trata-se de um reflexo adolescente. O ratinho não se observa, nem o rato velho. Mas o ratolas começa a procurar-se nos espelhos, por receio de agradar e desejo de existir, ou então o inverso, enfim… Mr. Mouse baralha-se um bocado. A perturbação insinua-se – algo lhe diz que, se tiver a sorte de envelhecer, haverá sempre de se ver com vaidade no fundo dos tachos reluzentes, na superfície do Charco-dos-Salgueiros…
   Será que Mr. Mouse tem necessidade de agradar? Necessidade, talvez não. Vontade, é outra coisa. A ver se nos entendemos. Mr. Mouse não anda, desde há muito, a deitar olhares lânguidos, à população feminina da vizinhança. Com as mais jovens, passaria por sátiro, e é demasiado amigo das da sua idade para se atrever qualquer pestanejar com um inefável vago na alma. Aliás, não há nada de vago na sua alma, e se estiver apaixonado, é pela Emily Mouse, cada dia um pouco mais – sim ; não há assim tanto tempo quanto isso, algumas outras ainda lhe pareciam desejáveis, mas agora conhece-as melhor, a vontade diminui, ou então aumenta o amor, vá-se lá saber, ou então tem um bocadinho a ver com a idade.
   Não, as espreitadelas ao espelho de Mr. Mouse não se destinam à avaliação objectiva das suas virtualidades sedutoras, não têm qualquer velada intenção estratégica propriamente dita. E também não é um tique. Mr. Mouse recorda-se. Quando era rato jovem, receava sempre achar-se feio. Ia depressa ver-se num pedaço de vidro e isso tranquilizava-o: na verdade, não estava mal de todo. Mas três segundos depois, voltava o desejo de confirmar esta serenidade, e um novo olhar no espelho reconduzia-o à angústia original. Que inferno!
   Hoje, os seus olhares são apesar de tudo mais sossegados. Reconhece-se quase sempre, com as suas roupas de cavalheiro-campestre-elegante-confortável, o seu grande focinho do South West, a sua figura ainda aceitável, gentilmente guarnecida pela sabedoria dos anos. Mas se Jeremy Mouse estivesse assim tão seguro de si, será que continuaria a não deixar escapar a menor oportunidade de reflexo? Tem vergonha de o confessar, mas até já tem dado por ele a olhar-se nos vidros dos quadros pendurados na parede do terreiro.
   Mr. Mouse sacode a cabeça; em menos de nada, o seu pensamento torna-se niilista. Nunca se é completamente sábio, nem completamente si próprio, nem completamente nada. Ou então talvez seja menos grave: é preciso amedrontar-se e esquecer-se, e depois rapidamente festejar o reencontro.

Philippe Delerm, Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro, Trad. Clotilde Simões, Livrododia Editores, 2007

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Onde a literatura dos ratos levanta voo graças ao apoio moral dado pelos gerbos.

|Philippe Delerm


Mr. Mouse escreve. Não se trata de alta literatura, descansem. São antes aguarelas, pequenas pinceladas, uns esboços. Ele teria aliás preferido pintar. Cada vez que a Emily tirava as sua paletas de aguarela para fora, os seus grandes blocos de papel de desenho Moulin d’Arches , Mr. Mouse ficava com vontade de fazer qualquer coisa com aquilo: a desarrumação  em si já parecia um sucesso! Os álbuns para ratinhos da Emily são tão belos! Mas não, a sério, é demasiado desajeitado para qualquer expressão gráfica. A culpa não é sua: ensinaram-lhe a escrever com a mão direita, embora seja canhoto. Então, nos serões em que Emily pintava, Mr. Mouse instalava-se no cadeirão para ler. Acreditava que podia embarcar em romances apaixonados, com histórias palpitantes, aventuras, livros para nos atemorizarmos no meio de ondas de dez metros a saborear no canto da  lareira. Mas não há nada a fazer. Mr. Mouse está demasiado velho, sem dúvida, ou então acreditou demasiado nessas histórias quando era ratito – já não tem jeito para viajar assim, desde então.
   Durante algum tempo, Mr. Mouse sentiu-se infeliz com esta enfermidade, e arranjava consolo como podia: fingia seguir o caminho das linhas, mas apenas mergulhava no quase silêncio do terreiro, no arruivado da cerveja e na claridade das chamas. E depois, como que por magia, outros livros chegaram-lhe ás patas. Livros diferentes, livros deliciosos que não falam de grande coisa, mas que se comem e se bebem com o olhar. O primeiro começava assim:

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Onde o prazer físico aparece de repente como componente essencial do bem-estar dos terreiros.

|Philippe Delerm


Pois é,  ficaram surpreendidos?
Mr. e Mrs. Mouse fazem amor, às vezes, enfim, com bastante frequência – quando se ama, não se anda a fazer contas. Isso já se sabe, responder-me-ão, nem era preciso dizer. É verdade, é preciso é que tudo saiba bem, muito bem, mesmo sem o dizer. Não há dúvida de que é por essa razão que não se fala nisso. Mas os pensamentos de Mr. Mouse revelam-se contraditórios. Tem muito orgulho neste croissant quente da sua vida  o qual é preciso tratar pelo termo ridículo de sexualidade. Os sentimentos de Mr. Mouse neste capítulo ainda são dos mais burgueses: a melhor sexualidade é por definição aquela que não se apregoa em cima dos telhados. No entanto, um pouco por aqui, um pouco por ali, Mr. Mouse gosta de dar a entender que corre tudo bem com ele. Virilidade pretensiosa? Não, sinceramente, Mr. Mouse pensa que é bom não deixar para esses extravagantes ratos de Hollywood o apanágio de exaltar as delícias do corpo.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Onde se descobre que a degustação da cerveja pode ser sublimada e elevada ao patamar da pesquisa estética.

|Philippe Delerm


 Mr. Mouse gosta de cerveja, eis  o seu menor defeito. Não desdenha as louras, desde que não sejam demasiado amargas. Suporta as morenas, quando não são demasiado encorpadas. Mas os seus amores são as ruivas, cujos reflexos lhe lembram talvez certos recantos sedosos do corpo de Mrs. Mouse.
Mr. Mouse não bebe por beber, apenas para matar a sede. Tomar uma cerveja é para ele um culto. Entrega-se-lhe de corpo inteiro, indiferente ao resto do universo. Primeiro é preciso escolher o copo certo para a cerveja. Mr. Mouse possui uma colecção deles: barrigudos ou dilatados, arrumados numa prateleira do louceiro, todos eles gravados com o nome de uma marca. Mr. Mouse não saberia consumir uma cerveja sem a consumir no seu copo. Se os espelhos-feiticeiras dos quadros de Van Eyck reflectem o seu próprio assunto, a composição em abismo de Mr. Mouse não é menos refinada. Continente e conteúdo respondem um ao outro numa subtil dialéctica: ele bebe o nome, a ideia, tanto quanto a realidade móvel do líquido.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Onde se vê que a deterioração do património mobiliário não é mais do que uma perversão da alquimia do prazer.

|Philippe Delerm


    - É bom que se comece a pensar em trocar esse cadeirão!
    Mr. Mouse sabe muito bem porque é que Mrs. Mouse disse aquilo. É por causa deste gesto. Sente-se incapaz de o impedir. Sempre que se senta no velho cadeirão de curvas macias e apetitosas, Mr. Mouse começa por contemplar as chamas da lareira numa perfeita imobilidade. Mas em breve, negligentemente, a sua pata direita começa a deslocar-se no braço do cadeirão, em busca desse rasgão no tecido cor-de-rosa e de algumas palhinhas desgrenhadas. Como lutar contra esta insidiosa volúpia? Mergulhando na palha áspera, agravando a ferida do veludo, Mr.Mouse não procura alívio para uma simples comichão. É muito mais sério, e ainda mais irreprimível: ao enfiar a pata no braço do cadeirão, Mr. Mouse atinge o cúmulo do bem-estar, o ponto frágil em que a sensação de prazer físico se torna tão pura, tão aguda que se casa com a satisfação serena da felicidade.

domingo, 7 de abril de 2013

Primavera

|Manuel A. Domingos

Parece que andava na segunda classe quando escrevi o primeiro texto poético, segundo a minha mãe, e que tinha como tema a Primavera mais as andorinhas e os seus ninhos que faziam com os raminhos das árvores que traziam com cuidado nos seus biquinhos, não as árvores mas os seus raminhos, muito fininhos e pequeninos e todos esses lugares-comuns que é costume escrever quando andamos na segunda classe e se escreve o primeiro texto poético, segundo a nossa mãe, começando a olhar para as coisas e para o mundo de um modo diferente, sem saber que a maneira como começamos a olhar para as coisas e para o mundo vai para sempre acompanhar-nos, mesmo que não seja Primavera nem haja andorinhas a voar com raminhos de árvores nos biquinhos-fininhos-pequeninos, apesar de tentarmos todos os dias fazer o esforço de ver uma certa Primavera em tudo, nem que seja na renovação da Cartão de Condução e na fotografia que tirámos no photomaton que está ao nosso dispor mesmo ali perto: por apenas cinco euros quatro fotografias tipo passe: mas que nos deixa com umas olheiras fundas, a cara muito branca e porra que me esqueci de fazer a barba, pareço um presidiário, logo agora que até ando com melhor aspecto, eu, que nunca tive bom aspecto, mas sempre muita aptidão para ficar com ar sério, demasiado sério para o gosto da minha mãe, que diz que escrevi o primeiro texto poético quando andava na segunda classe, sobre a Primaveras mais os biquinhos-fininhos-pequeninos das andorinhas com raminhos de árvores para fazerem os ninhos nos beirais dos telhados ou no alto de uma árvore qualquer, embora eu não tenha grande certeza sobre isso, mas pouco importa pois chegou a Primavera e eu depois esclareço essa dúvida.

sábado, 6 de abril de 2013

Sex Machine

|Eliana Castro


      O Alemão era uma afronta. Foi presente da Cássia. Só podia. Era uma afronta com 22 centímetros de comprimento, 5 centímetros de diâmetro. Era azulão e tinha umas pérolas giratórias na ponta. Assim que abri o embrulho achei feio. Não. Primeiro nem achei nada. Fiquei foi é com muita raiva da Cássia. Me trazer um presente de grego daqueles? Onde é que iria meter aquilo, hein? Fiquei ofendida. Dois anos separada, no maior luto, duas filhas endemoniadas, sem tempo para pensar em trepar. Mas a Cássia não precisava esfregar aquela minha situação periclitante na cara, precisava? Não. Mas fez.

     Trouxe o Alemão dentro de uma caixa embrulhada com papel cor de rosa com bolinhas azuis. Para combinar com ele, ué, disse, a cínica que, ao ver que eu estava avermelhando de raiva, saiu correndo sem nem me dar tempo de mandar levar aquele pedaço de mau caminho para o raio que a partisse – ao meio. As meninas ainda estavam na escola. Fiquei um tempo com aquele troção plantado na mesa de mármore branca, presente de casamento dos meus pais.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Três poemas de Alexandre Homem Dual


|Alexandre Homem Dual

A Dança dos Homens

Sob o manto marmóreo do sonho
flui a torrente da realidade líquida,
fervilha o excesso que queima a pele
e a rasga de dentro para fora.
Contemple-se: uma pantera e um tigre
deitados - num abraço num beijo num orgasmo -
numa cama de flores e de grinaldas,
mergulhando no esquecimento de si mesmos.
E como as feras o homem despido
cantando e dançando consigo mesmo (e com os deuses) -
porque todos os homens são ele mesmo (e são os deuses) -
deixa-se embriagar pela renovação da primavera.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

O outro lado da chuva

|Clara Henriques


Emprestei-te à vida
e foi sem querer.
Esqueci-me que as manhãs seriam
depois desertas
que não mais o banal
e o selecto.

Emprestei-te ao
décimo
andar
da solidão,
esquecendo-me de quem mora
nos patamares
do silêncio.

Entreguei-nos à cidade
em magnólias ainda
por acontecer.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Primavera

|Alexandra Malheiro


Falo-te do tempo e da viagem,
da oxidação dos dias
e da fuligem no rosto que o tempo nos deposita.

Ultimamente
tem-me faltado a Primavera,
percebo isso quando
ao olhar-te
nenhum jacarandá se abriu em flor.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Está provado

|Miguel Godinho


Está provado
que as dificuldades conjunturais
podem facilmente
conduzir-nos à poesia,
à modernidade
em todo o seu esplendor

está provado
que há verdade
nas políticas comuns
na austeridade
do enquadramento

está provada
a utilidade dos baldes
cheios de estrume
distribuídos pelas múltiplas
salas de reunião

está provado
que se concretizam
as previsões de crescimento
nos horóscopos
e nos telejornais

está provado
que eu sempre quis
ser um euro-cidadão
levar uma bofetada económica
ver Paris à noite, embebedar-me
nos bistrôs do quartier-latin

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Isto não é o dia das mentiras


|Editorial

Não estamos no tempo de reescrever a história. Na verdade, nem sequer na disposição. E se bem se entenderia que um movimento poético tivesse, no seu seio, os seus motores teóricos, não parece aceitável que o movimento se faça, apenas, pela oportunidade de quem está arrumado na vizinhança. Essa é a condenação de quase todos os que aspiram a ser grandes: não resistem a ver-se rodeados de pequenos bajuladores que se arrastam pelas suas costas em busca da luz do sol.

Não estamos no tempo de nos determos numa caixa. Na verdade, nunca foi a nossa intenção. Daí que a procura de contraditórios sempre tenha feito o caminho deste espaço. Porque abrir portas faz parte da nossa forma de estar. Porque encontrar outras vozes é, também, uma forma de estar vivo. Porque, finalmente, é nessa diversidade que se encontram as melhores razões para continuarmos a fazer o que fazemos: não desistir nunca do que é humano no trabalho das letras.

Não estamos, enfim, no tempo de nos fixarmos. Na verdade, evitamo-lo a todo o custo. Porque o contemporâneo tanto está numa cantiga de amigo, como numa letra de rap. Porque o nosso tempo tantas vezes surge na literatura clássica, de uma forma tão pungente como na página de um qualquer jornal.  Porque não ignoramos o curso da língua e da literatura que nos trouxe até aqui, até hoje, até ao agora. Nós sabemos. É isso que nos apetece dizer perante aqueles que insistem em tempos que não são, claramente, os nossos. Façam vocês a festa que quiserem, nós sabemos.