sábado, 30 de março de 2013

Subimos.Setembro.A sombra da casa comprida.

|Petr Borkovec


     Subimos. Setembro. A sombra da casa comprida.
     Por todo o lado pó, o zumbido do rádio.
     O sol na armação cromada da cama.
     Alcançaste os teus cigarros.
A escadaria sonha ainda debaixo de nós,
as cortinas mexem-se devagar, como se escorressem.
A pia vazia era uma explosão de prata
e os segundos sempre fluidos e voando
para além do calor, do seu toque.  O tempo inactivo,
tudo afastado do seu propósito –
o sol na paralisada armação da cama,
o cabide, a imagem na parede.
Eu vi o fumo fresco do teu cigarro,
os livros empilhados atrás de nós,
e a coberta com peixes e aves e flores
todos caindo e deslizando para o chão
onde arrefeciam numa geometria azul.
Pó no guarda-roupa, pó na ária.
Pela janela, uma colorida vista que morre.
Lá fora, nenhum plano se aninhava nas sombras,
e a toalha, ociosamente deitada na cadeira,
tinha a mesma história que nós. 


(Tradução: Luís Filipe Cristóvão)

quinta-feira, 28 de março de 2013

A luz do dia desvanecia-se. Chovia torrencialmente.

|Petr Borkovec


A luz do dia desvanecia-se. Chovia torrencialmente.
O inferno vai brilhando pela calçada, aqui e ali.

Como nos desenhos de Lada, com ternura e inocência,
os diabos certificam-se da disposição dos seus tesouros.

Sobre os candeeiros, já tarde, regressam a casa três pássaros.
Sobre a apática, triste e interminável posição

da cidade nocturna, das janelas de todas as livrarias,
dos bares cada vez mais inclinados e iluminados,

da fonte onde o menino de mármore
conforta uma carpa numa cesta de mármore

(o nariz do pai, os olhos que a mãe lhe deu…
as moedas tilintando alegremente no fundo da água),

por cima da chuva agora fraca, dos diabos com os seus segredos.
Nós ficámos por ali e acendemos um cigarro.

Não se passa nada, meu amor. Tu tremes como uma pluma.
Abraça-me. Vamos passear. Esta noite dormimos juntos.


(Tradução: Luís Filipe Cristóvão)

quarta-feira, 27 de março de 2013

Comboio Suburbano, 0:05

|Petr Borkovec


Fórmica azul-celeste, cilindros florescentes.
Os céus abrem, dilúvios de luz: pai
com filha adulta, peles ao pescoço, eu, com o cheiro
das roupas suadas,  alguns lugares atrás de uns soldados.

O apito. As lâmpadas queimam. Depois o escuro. As janelas
seguram as nossas caras desoladas e pálidas. Os soldados
jogam às cartas no colo. A mulher, fechada,
escarros de jaspe branco nas orelhas balançando.

Pai e filha não conseguem cair no sono
Enquanto relembram aquele jovem coração que sangra e arde
Na mão do bêbado da pequena loja do cais de embarque.

Ela é esbelta e alta. O programa do Cimbelino
escorrega limpo do seu colo em direcção ao bêbado.
De branco, ela inclina-se, como o faria para um beijo.


(Tradução: Luís Filipe Cristóvão)

terça-feira, 26 de março de 2013

O que fazemos?

| Petr Borkovec


O que fazemos? Estamos envoltos no espaço,
somos silenciosos, deixamos os mortos sossegados a dormir.
Cortamos árvores, isolamos adubos,
erguemos armadilhas onde ratos morrem à fome.
Ao serão, levamos o jantar para o jardim,
trazemos o silvado para o quarto.
Devolvemo-lo seco à fogueira,
o seu doce fumo atravessando-nos os roupeiros.
No crepúsculo, olhamos lá fora a parede
e falamos de maneira a não acordar os mortos.
Entre os móveis, fazemos amor
com os corpos que não são o oposto de espaço.


(Tradução: Luís Filipe Cristóvão)

segunda-feira, 25 de março de 2013

Cozinha

|Petr Borkovec


Não me toques. Não tentes
compreender. Levanta a caneca
apenas.  Olha-me sobre o chá.
Estou aqui. Da cintura para cima.
Sem paredes. Um ecrã que oferece
ramos, flores, ninhos.
Não olhes para baixo. Sou um centauro.
Esquece. Não tragas convidados.
Onde começam as cadeiras
acaba a mesa. As mãos
submersas na pia. Deixa.
Não toques. Não ouças. Pára.
O aquecimento abranda a matéria.
O sol pára no vidro.
E o olhar explora todo este espaço cego.



(Tradução de Luís Filipe Cristóvão)

Petr Borkovec


Petr Borkovec nasceu em Louòovice, na Boémia Central, em 1970. Desde 1992, o poeta e editor de arte trabalhou na revista Souvislosti e desde 2000 no jornal literário Literárni noviny. Como tradutor, tem trabalhado, sobretudo, com poesia russo, embora tenha já traduzido teatro clássico grego e poesia coreana.

Em 2010, esteve no seminário da Literature Across Frontiers, realizado na Biblioteca José Régio em Vila do Conde. É desse encontro que resultaram as traduções que se publicam esta semana. 

domingo, 24 de março de 2013

A Sítio no Mal Dito


Coimbra tem estado invadida de poesia desde a passada quinta-feira, com a realização do Mal Dito – Festival de Poesia de Coimbra.

Hoje, domingo, a Revista Literária Sítio marca presença no “dito”, através do seu diretor, Luís Filipe Cristóvão, um dos convidados para a mesa “Mundos de Criação, Divulgação e Disseminação no Séc.XXI – A poesia portuguesa na era online”, que contará ainda com a presença de Manuel Margarido, Nuno Quintas e Pedro Jordão, sob a moderação de Isabel Delgado.

Tudo acontecerá na Cafetaria do Museu da Ciência, em conjunto com outras atividades, a partir das 11h30.

Mais informação: http://malditofestivaldepoesiacoimbra.blogspot.pt/


sábado, 23 de março de 2013

E o anjo veio e disse-lhe:

|Manuel A. Domingos

a vida que escolheste
é de pedras pelo caminho
nada de bom virá dela
e todas as recompensas
serão adiadas

por isso pensa melhor:
ainda estás a tempo
de desistir


in Mapa (2008)






sexta-feira, 22 de março de 2013

Soneto

|Manuel A. Domingos


tens o vício
de não fumar
não andas envolta
num poético

halo de fumo
não deixas
marcas de bâton
nas beatas

dos cinzeiros
lá de casa
esse teu hábito

anda a custar-
-me alguns
versos


in Mapa (2008)

quinta-feira, 21 de março de 2013

Não adianta

|Manuel A. Domingos


Não adianta
pensar nas coisas
na sua mecânica

por menos caiu
Tróia e Jericó
viu as suas muralhas
no chão

Abre a janela
respira o ar
antes que seja tarde
ou o dia passe
ao largo
dos sentidos

Sai à rua

Podes nem
acreditar

há vida
para lá de tudo
isto

Mas caminha
com cuidado

não vá
uma andorinha
cagar-te no ombro


in Teorias (2011)

quarta-feira, 20 de março de 2013

Que deve um homem fazer

|Manuel A. Domingos


Que deve
um homem fazer
quando lá fora
chove e o tempo
é apenas a lisura
do tampo
da mesa onde apoio
os braços
e a mão
procura a caneta?

Algures no caminho
ficou a noite
a veia entupida
pelo pó dos dias
noites mal dormidas
mais o carro
que decide
de manhã não
arrancar

e são oito horas

estás atrasado
para o emprego

Mas não te preocupes:
ainda tens

o teu cinismo


in Teorias (2011)

terça-feira, 19 de março de 2013

Organizo o tempo

|Manuel A. Domingos


Organizo o tempo
da melhor maneira possível
Trinta e três anos
nas mãos é pouca coisa

é a única coisa
Tenho a idade de Cristo
na cruz mas não procuro
a santidade

não dou para mártir
Trinta e três anos
um ou outro cabelo branco
Dizem que dá charme

A mim apenas
me fazem sentir
um pouco mais velho


in Penumbra (2012)

segunda-feira, 18 de março de 2013

A vida como a conheço

|Manuel A. Domingos


A vida como a conheço
nunca foi madrasta
Não tive pais castradores
da identidade

ampararam antes
as quedas e debaixo
do cu teimaram
em colocar almofadas

para não me magoar
De resto sempre tive
tudo aquilo que pedi
Talvez um ou outro amor

pouco correspondido
Como explicar então
esta tendência para o poético?



in Penumbra (2012)

domingo, 17 de março de 2013

A aposta

Recensão do livro O Fardo do Homem Branco de Madalena de Castro Campos

|Luís Filipe Cristóvão

O que se conhecia de Madalena de Castro Campos, que tem vindo a publicar no blogue les cahiers de la mariée, já dava o tom daquilo que se encontra n’ O Fardo do Homem Branco, o seu primeiro livro, publicado pela açoriana Companhia das Ilhas. Uma poesia fortemente cínica, no modo como a partir de uma personagem feminina vai desconstruindo o marialvismo ainda latente na cultura portuguesa. A utilização, no título, da referência a Rudyard Kipling, acaba por dar um tom pesadamente irónico ao que encontramos dentro deste pequeno volume.

sábado, 16 de março de 2013

janis / ter e nom ter

|Susana Sánchez Aríns

janis

através da agulha enfias
bessie smith
através da agulha costuras
pérolas de dor
através da agulha sangras
cantos no bordel

quem o [micro] fuso che entregou
injectou com ele o veleno

heroína
foi o fio

uma bela adormecida
o desenho do bordado

sexta-feira, 15 de março de 2013

das belas artes e outros poemas

|Susana Sánchez Aríns


das belas artes

[dizem que são sete as belas artes: pintura, escultura, dança, literatura, arquitetura, música e cinema. dizem.]


koré

por eu ser em pedra dizes-me hierática

envolveita em pele máguas bostelas
esqueces que a mármore nunca cicatriza

quinta-feira, 14 de março de 2013

Um pouco fora do lugar


Entrevista a Susana Sánchez Aríns – parte dois

|Eduardo Estevez



 Logo interessa-me saber se, para além dos propósitos concretos de cada livro, há na tua obra uma intencionalidade mais global. Pergunto-te com isto em concreto pelas tuas preocupações vitais (o papel da mulher na construção do discurso, a ideia ou as ideias de nação, este tipo de coisas) mas também por como vês o teu papel ou o papel da tua escrita no tempo que lhe toca desenvolver-se.

Sou assim tão ingénua que ainda, apesar dos tempos que estamos a viver, acredito na possibilidade de deixar um mundo melhor para as gerações vindouras.
A terra da que se alimentam as minhas raízes foi semeada, irrigada e estercada por outras pessoas, algumas sabidas, a maioria anónimas. Deram forma a uma língua, uma cultura, uma comunidade. Língua, cultura e comunidade que hoje estão em perigo de extinção. Ao tempo, tocou-me em sorte nascer mulher, mas o acaso colocou-me numa região do planeta onde a questão de género implica menos perigos: pude estudar, sou uma pessoa independente social e economicamente e posso erguer a voz sem medo da represália.

quarta-feira, 13 de março de 2013

sessão vermu

|Susana Sánchez Aríns



uma roda no bordo da copa
uma olhada ás parelhas que dançam

o saibo amargo do aperitivo







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as belas artes by Susana Sánchez Arins is licensed under a Creative Commons Atribuição-Partilha nos termos da mesma licença 3.0 Unported License

terça-feira, 12 de março de 2013

A face lírica de uma obra em construção


Entrevista a Susana Sánchez Aríns – parte um

|Eduardo Estevez


Apesar ter nascido em 1974 em Vilagarcía de Arousa, Susana Sánchez Aríns diz-se estradense (do concelho da Estrada, no interior da província galega de Pontevedra). Contudo, desde há tempo mora no contorno da ilha de Arousa onde dá aulas de língua espanhola e literatura num centro de ensino secundário.
É licenciada em Filologia Hispanica e em Filologia Portuguesa pela Universidade de Santiago de Compostela.
Mantem um blogue de poesia desde 2006 (dedos como vermes), mas não será até 2009 quando a autora veja publicada a sua primeira obra em forma de livro: [de]construçom, com a que obteve a edição de 2008 do Prémio Nacional de Poesia Xosemaría Pérez Parallé para autores e autoras inéditas. O livro foi editado pela Espiral Maior, a mais importante editora de poesia em língua galega.
Em 2012 publica mais dois títulos: Aquiltadas (na Estaleiro Editora) e A noiva e o navio (na Através Editora).
É uma autora muito ligada à net. Para além do blogue mencionado, mantém um outro: como pam da boca, no que deixa constância das suas leituras e criou dois blogues para acompanharem o percurso de cada um dos seus últimos títulos: a noiva e o navio e aquiltadas.

segunda-feira, 11 de março de 2013

boticelliana

|Susana Sánchez Aríns


para evitar aos predadores de beleza
obtivo a carta de mariscadora a pé

podes vê-la na seca trajada em neopreno






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domingo, 10 de março de 2013

«Como na Religião não aja outro tisouro mais precioso que os livros aptos para estudo […]» : bibliotecários conventuais, guardiões de tesouros.


|Rui Prudêncio

Constituindo o livro impresso o primeiro produto industrial da civilização ocidental a partir do último quartel do século XV, gradualmente as bibliotecas europeias tornaram-se espaços de grande concentração de volumes, sendo essa aliás uma das suas funções: acumular informação. Se antes o processo acumulativo seria lento, pois a feitura do livro era um labor integralmente manual, logo demorado e dispendioso, com o advento da produção tipográfica, paulatinamente as bibliotecas coleccionaram milhares de volumes. O crescente ritmo de aquisição tornou a gestão e manutenção dos acervos bibliográficos mais complexa e exigente.

Neste contexto, para além das tarefas habituais de organização (catalogação, classificação, arrumação, pesquisa) o bibliotecário vê reforçadas outras funções. O Renascimento enche as estantes, traz mais leitores, e entre tantos volumes, empréstimos, entradas e saídas era imperioso ao bibliotecário desenvolver métodos e técnicas de controlo de circulação e de conservação do livro, afim de prevenir potenciais riscos de extravio ou roubo e minimizar os efeitos do manuseamento.

sábado, 9 de março de 2013

Um Bairro feito de Livros


Quando, em 2011, a Isabel, a Catarina e a Minês se juntaram para criar uma cooperativa no Porto, destinada a dar forma a ideias criativas e a fazer nascer produtos culturais, estavam longe de imaginar que um dia seriam “as meninas do Bairro dos Livros”. Hoje, fazem livros, trabalham a comunicação para a cultura e assinam alguns dos mais originais eventos culturais nas Artes Plásticas e Literatura. Com o projecto Bairro dos Livros, a partir do Porto, conseguiram dinamizar a rede de livreiros e alfarrabistas da baixa da cidade.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Ler é Manuel António Pina - Programa



No próximo dia 9 de Março, Ler será Manuel António Pina!
Junte-se a nós neste grande evento de homenagem ao poeta e escritor promovido pela Revista Literária Sítio e pelo Bairro dos Livros.

Programação
15h30 | Encontro na Torre dos Clérigos para dar início ao desfile em nome da poesia. Participação de Luís Beirão, Ana Almeida Santos, A. P. Ribeiro, William Galvão e Canto de Alcipe.

17h30 | Tertúlia “Ler é Manuel António Pina”.
Participação de Álvaro Magalhães, Rui Lage e Manuel Jorge Marmelo com moderação de Alexandra Malheiro. Às 17h30 no café Orfeu.

19h30| Concerto por: Cantautor João Morais

quinta-feira, 7 de março de 2013

A Sítio na Rede

Vários são aqueles que nos têm ajudado a divulgar a iniciativa do próximo sábado, Ler é Manuel António Pina, organizado pelo Bairro dos Livros e com parceria da Revista Literária Sítio na produção da tertúlia. 

Aqui estão alguns dos que têm espalhado a palavra!





Se as noites existem


|Minês Carvalheira

Se as noites existem,
e elas existem e passeiam
nos telhados das casas dos amigos,
e, às vezes, não há telhados
mas só mesas e candeeiros
onde miam os gatos e cai
a chuva e se embalam
os amigos, a água que entrou
pela porta
e nos amigos
deve secar no estendal da palavra.

Se as noites existem e
elas existem se não há como
as não deixar sair
pelas janelas das casas,
e só os gatos, na verdade, entram e saem
ao mesmo tempo
porque não são exactamente de dentro
ou de fora
e miam mas nunca caem só,
como a chuva,
há sempre mais telhados do
que amigos
ou abrigos.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Um poeta pelos pulmões


|Alexandra Malheiro

Agora os dias são mais curtos, não sei se pela força do calendário, a aproximação da Invernia, se por nos teres deixado assim, tão desavisadamente, a olhar o vazio, o buraco negro por onde partiram as palavras. Levaste-as contigo, decerto.

Agora que aqui não estás, o que dizer (ou pensar, que sei eu?) sobre a vaga de frio que vem com o Outono, da gramática que nos falta porque nos faltas, dos poemas todos que ainda estão por escrever?

Agora que a cidade sussurra a tua ausência, as bibliotecas choram-te em silêncio, “porque o resto é silêncio (que resto?)”, elas sabem que não voltarás a dar nome às palavras, nem voltarás a abrir-lhes os livros, que nem Milne, nem Borges nem Céline  te trarão de volta dos mortos agora que talvez tenhas achado  “um lugar onde pousar a cabeça”.

terça-feira, 5 de março de 2013

Manuel António Pina por...

|Manuel Jorge Marmelo


Ainda não sou capaz de dizer da falta que o Pina me faz. Quando me lembro dele, tantas vezes, fica-me um vazio por dentro, duro como uma pedra na barriga. Mas depois lembro-me do sorriso amável que ele tinha, das histórias que contava, dos gatos e dos serralheiros, dos taxistas e dos polícias, dos piropos que coleccionava — e sorrio também. Tenho a memória cheia de imagens do Pina, de frases do Pina, de exemplos do Pina, e só por causa disso creio que sou um homem melhor do que aqueles que não o conheceram, não o leram, não conversaram com ele. Quero ver se não me esqueço de não permitir que aquele que fui com vinte anos tenha razões para se envergonhar de mim. 

Tanto silêncio

|Manuel António Pina


Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois.
E entre mim eu, isto é, palavras,
Formas indecisas
Procurando um eixo que
Lhes dê peso, um sentido capaz de conter
A sua inocência,
Uma voz (uma palavra) a que se prender
Antes de se despedaçarem
Contra tanto silêncio.
São elas, as tuas palavras, quem diz “eu”;
Se tiveres ouvidos suficientemente privados
Podes escutar o teu coração
Pulsando sob a palavra da tua existência,
Entre o para cá de ti e o para lá de ti.
Tu és aquilo que as tuas palavras ouvem,
Ouves o teu coração (as tuas palavras “o teu coração”)?


in Livro Primeiro

segunda-feira, 4 de março de 2013

Onde estás agora?


|Jorge Sousa Braga


  ao MAP



Onde estás agora
Oh meu amigo?
Nem dentro
Nem fora
Nem muito longe
Nem muito perto
Talvez nos primeiros
Raios da aurora
Talvez no deserto
No mais incerto
E improvável
Lugar

Onde estás agora
Oh meu amigo
Que não te oiço?
Talvez no fim
Da estrada
Envolto em poeira
Numa cadeira
De baloiço
Em frente ao grande
Tudo
Ou ao grande
Nada

domingo, 3 de março de 2013

Até ao osso


Recensão do livro Alto. de António Quadros Ferro

|Manuel A. Domingos



Falar de novas vozes e de nova-poesia e de novíssimos é chão que já deu uvas. Em primeiro lugar, e recorrendo a uma frase feita, já nada é novo, pois tudo foi inventado. Em segundo lugar, tivemos, nos últimos anos, estreias literárias em que o autor já não era novo (em idade), nem a sua poesia nova (em relação ao cânone): lembro, por exemplo, os nomes de Nuno Dempster e Soledade Santos. Mais dúbio é falar actualmente, e situando-nos apenas no meio literário, em geração. O que caracteriza afinal uma geração? O ano de nascimento? A década? O ano da estreia literária? As afinidades com este ou aquele grupo (que os movimentos há muito se perderam no tempo)? A questão é que, na realidade, não existe uma geração; existe, antes, a malta. É costume ouvir dizer “a malta da Averno” (e por acréscimo “a malta da Telhados de Vidro”), a “malta da Língua Morta” (e por acréscimo “a malta da Criatura”), a “malta da Deriva”, a “malta da Artefacto”, a “malta da Golpe D’Asa”, a “malta da 4águas”, a “malta da Sítio”, a malta para aqui e a malta para ali. Depois, há os outros.

sábado, 2 de março de 2013

Mesa do Canto – Sobre chuva miúda e a “memória possível” de Gomes Ferreira


|Alexandra Malheiro

Os dias vão correndo estranhos também no meu café. A chuva miúda teima em pegar-se aos vidros e, com ela, se esvai a nitidez para lá da montra. A mim mói-me por dentro este chuviscar constante.
Leio uma coisa aqui e outra ali, avulsas, sem conseguir traçar entre elas uma credível teia que possa alinhavar-se em crónica, uma que possa partilhar convosco. O Carnaval é um penumbroso tempo de chuva, esquecido de um feriado que nunca o foi bem, os foliões recalcitrantes guardam as fantasias nos guarda-fatos derivado ao mau tempo, enquanto palhaços bem vestidos continuam a perorar no horário nobre da televisão. O Papa renuncia ao seu pontificado enquanto no mesmo dia um fotógrafo capta um raio a atingir a Basílica de São Pedro. Na rua onde o meu café está instalado há vários indigentes mendigando uns trocados, a miséria é a de sempre.

sexta-feira, 1 de março de 2013

A Sítio na rua!


|Editorial

O mês de março marca o regresso da Sítio à rua. Sempre foi nossa vocação, para além da publicação, trabalhar na divulgação da literatura e dos seus autores. 2013 oferece-nos essa possibilidade, através da parceria com o Bairro dos Livros, no Porto. Mais detalhes sobre o evento irão sendo revelados durante a próxima semana, mas podem já marcar na vossa agenda o dia 9 de março de 2013.

Qual o sentido de irmos para a rua? Sobretudo o amor. O amor pelas palavras, o amor pela poesia, o amor pela personalidade daquele que é um dos grandes nomes da nossa literatura. Para além disso, a vontade de trazer mais gente a esta longa conversa sobre as letras. Muitos aceitaram já o nosso convite e enche-nos de orgulho que muitos mais possam chegar até nós, através da tertúlia onde estaremos.