Agrada-me começar assim a crónica,
com um título piroso e lamechas, ainda que o corpo da crónica possa não
confirmar a investida no território afectivo é sempre uma bela forma de deixar
o leitor a pensar que me vou permitir a contemplações de ordem amorosa e
deleitá-los com o rigoroso detalhe da minha vida íntima. A própria referência,
neste mesmo parágrafo, ao "corpo da crónica" já é, só por si, uma
vaga alusão ao erotismo que cada um de nós transporta interiormente.
A verdade verdadinha é que tinha
planeado levar esta crónica pelas ruas do Outono, a pisar o restolho e a sentir
os primeiros bancos de gélido nevoeiro, começaria assim, sei-o bem -
"Entrou-me hoje, pela primeira vez neste ano, o Outono pela boca, à boleia
de uma castanha assada comprada na baixa." Seguiria depois pela
industriosa tarefa de explicar as razões pelas quais percebemos que pertencemos
a um lugar e não a outro qualquer, o reconhecimento implícito das ruas, das
suas esquinas, pelos odores, pela textura, até chegar ao imo daquilo com que se
faz um poema. Trataria depois de explicar que é sempre isso que procuro em
tudo, o poema, a coisa inata que há dentro das pessoas e das coisas e por onde
passo farejo o poema até o encontrar, ou não, que às vezes o poema é coisa que
não se encontra.
Levaria assim a crónica pelo
território da busca, e eventual encontro, com o poema que, quando ocorre, tem
sabor idêntico a uma vitória na guerra dos dias, espécie de orgasmo que nos
resgata do cinzento a que a vida e as suas circunstâncias nos condena a maior
parte do tempo. É por isto, e não por qualquer outra razão, que gosto de
oferecer poemas aos amigos - aqui um pormenor de semântica, oferecer não é
dedicar. Dedicar implica uma razão subjacente, pode nem sequer se conhecer o
sujeito a quem se dedica mas sabemos que algo no sujeito espoletou a arma, nos
apertou o gatilho do poema, mostrou a estrada e a luz de por onde levar as
palavras e isso é toda uma outra conversa sobre guias e referenciais. Já a
oferta do poema é uma coisa livre, não referenciada. Dá-se o poema a quem se
apetece, sem pedir licença. Quando se escreve um poema, ou quando se atinge -
ainda usando uma metáfora orgástica - ele deixa de ser nosso ou inteiramente
nosso e se se partilha já não nos pertence senão numa vaga ilusão de posse de
autor, coisa semelhante ao amor que se tem sem de facto se possuir.
Por isso às vezes ofereço poemas,
quase sempre recém-nascidos, aos meus amigos, para que não fiquem só comigo e
procurem com os outros outra luz, e para que outros possam também iluminar-se
neles. Não sei se gostam, se lhes agrada que os importune, quase sempre por
telefone, em geral por sms, raras vezes por voz - pranto-lhes o poema no
gravador, e mais raramente ainda em directo ao ouvido arriscando interromper-lhes
os importantes feitos da vida real, tão cheia de curvas e contracurvas, tão
avessa à etereadade dos poemas, nem sempre bons, como são os meus.
Aprecie o estimado leitor a sorte
que tem em não fazer parte da minha lista de afectos ou, melhor digo, de
telefones, para onde debito poemas a horas ingratas. Se, porém, o leitor acaso
é meu amigo e já foi contemplado com um desmando "literário" sem
aparente razão que não a minha intermitente loucura, peço-lhe o necessário
desconto pelas razões antes expostas em abono da partilha de poemas e
entusiasmos. Sou assim mas não represento verdadeiro perigo social ou outro.
Entretanto é sexta-feira, pretendo
jantar fora e resolvo marcar mesa, não vá dar-se o caso de o restaurante lotar,
telefono para reservar mesa e hora, que sim senhor, dizem-me do outro lado,
questionando-me se pretendia apenas jantar ou se tinha igual interesse em
marcar consulta de astrologia. Fiquei surpresa, desconhecia a fusão sugerida de
jantar com bruxos e entendidos no futuro dos outros. Digo que não, pretendo
apenas comer, embora me assalte o pensamento que preferia que ao invés de um
futuro inventado me inventassem um poema, ainda que fosse de comer como os da
Natália.
No final desta crónica o atento
leitor meneia a cabeça recriminatoriamente sem descobrir nela, após tanto
palavreado, nenhuma real ligação entre o seu título e tudo o que nela se
assunta. Mais lhe valia ler Lobo Antunes pensa, e bem acrescento eu, o estimado
leitor. Mas eis que num vislumbre de juízo me apronto a deslindar o novelo. É
que todos os poemas partilhados em qualquer esquina mal iluminada do tempo
foram todos os lugares onde te amei.