| Catarina Costa
Apazigua minha ira pensar na brutalidade e na estranheza dos sonhos que ele me relatou. Colocam-no no plano do isolamento, ele que não tolera a solidão. Abandonado, seus pontos de referência tornados absurdos por uma rompante multidão onírica. Falou-me de sonhos recorrentes em que a sua consciência se via a sós frente a uma incompreensível moral popular, uma justiça comunal kafkiana que desafiava as convenções éticas que ele mantinha da vigília. Rodeado por cidadãos zelosos, dispostos a executar sua bárbara vindicta em nome de uma lei inescrutável. Ele sentiria a culpa em vez deles? Seria a sua missão carregar-lhes os pecados? Ou seria ele o único incapaz de ascender ao estádio moral normativo? Por minha vez, falei-lhe nos meus sonhos em que a moral vigente mantinha, sem escapatória, a da vigília, ainda mais fortalecida entre as fronteiras concentracionárias do onirismo. Não precisava de ninguém para me indicar as leis. Os populares retraíam-se, punham-me com sua indiferença comprometida no centro do sonho para ser cobrada por mim mesma. Reclamava para mim a força centrípeta da justiça popular que já não encarnava em nenhum algoz: escorraçada para ser punida apenas no plano da minha consciência totalitária. Penso no modo como nos poderíamos unir em pólos opostos do pesadelo: ele, incapaz de entender as leis daqueles que se impunham impantes no abandono de actos por ora sem referentes, eu, absorvendo as leis gerais até saber que a absolvição é a última dádiva. Penso estar a caminhar ao seu encontro, os meus actos interpretados por ele como justiça popular de uma legião estrangeira. Não me chega a acusar. Sou eu quem me acuso, a consciência da abominação tanto na vida como no pesadelo.