A Casa
Quem inventou a casa, devia saber.
Devia saber que ela veio alojar-nos numa liberdade insuportável.
É como estar fechado na impossibilidade de se libertar.
E continuamos presos às memórias sepultadas
nos cantos, no chão, na janela e também na porta.
Rendidos à sedução das felicidades impossíveis,
esquecemo-nos tristes no chão onde, mesmo de perto,
não se sente o cheiro a terra e a veracidades possíveis.
Como se pode almejar a felicidade livre se, nos cantos,
moram todas emoções que fizeram esgotar o coração?
Não adianta assear a casa.
Teremos apenas uma tristeza iludida de beleza.
Teremos uma janela e uma porta abertas para dentro,
para os cantos e para o chão, onde morremos lentamente.
Estende uma flor no teu dorso e caminha descomprometido
pelos caminhos de terra. Onde os passos são portas e janelas
por baixo de um céu tão imenso que nem ele, desejoso de azul,
saberá nunca se começa ou se termina junto ao mar.
*
Transcendência
Tudo em mim não são mais do que pernas.
E do que braços.
Todo o resto é essa imensa vontade de carne.
E osso.
São fossos de luz tão profundamente livres.
E hidratados.
Como água encarnada na vaporização da alma.
E do corpo.
*
Dormência
Este estado intermitente da alma
que, já cansada, não liberta ainda
toda a sua exaustão.
É como se dos pulmões,
e dos pulmões o peito,
regressassem tormentos de luz.
Este estado intermitente do corpo,
já desperto, adormece silencioso.
Dormência calada, encostada ao sonho.
Vislumbre incessante da vida
como única testemunha de si.
Carina Flor nasceu
a 20 de Agosto de 1980, na Póvoa de Varzim. Professora licenciada, com
pós-graduação em necessidades educativas especiais, exerce funções desde 2003.
Dinamizadora de um blogue pessoal, destinado à partilha de textos. Colaboradora
no manifesto Black Riot Book, um projecto editorial recente, destinado a
coleccionadores de edição manufacturada e limitada.
Sítios: