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segunda-feira, 20 de maio de 2013

Para o mal do bem comum

|Luís Filipe Cristóvão


   Bob senta-se na mesma mesa em que, há mais de quarenta anos, se senta todos os dias para escrever. A mesma velha mesa que comprou numa feira de artigos em segunda mão que se realizava à porta do mercado num domingo de cada mês. Naqueles domingos em que se era novo e não se pensava em mais nada do que na grande vida que se teria para sempre, ao lado da nossa mulher linda e cheirosa, entre os nossos livros que não deixariam de crescer em todos os armários e recantos lá de casa. Naquela mesa já se fez de tudo. Desde livros de poesia que nunca ninguém teve vontade de publicar até romances premiados pelos melhores críticos estrangeiros. Desde bebedeiras monumentais até um filho. Tudo.

   Bob senta-se à mesa e abre o jornal. Tem sessenta e dois anos e uma enorme vontade de deixar de escrever. No entanto, em cada página de jornal, encontra mais uma frase que lhe apetece roubar. Não uma frase qualquer. Mas coisas cheias de novidades, coisas cheias de pujança, coisas que ele sabe que já não consegue retirar de si mesmo. Mesmo que insista em fazer-se um jovem para todas as meninas que vai conhecendo aqui e ali. Mesmo que mande boquinhas foleiras à sua jovem editora quando ela lhe telefona. Mesmo que faça charme de sala para as amigas dos filhos. O problema é que a vida não vem nas saias das meninas. Nunca veio. Coloca a rodar um cd que roubou do quarto do filho mais novo e ouve o refrão. "she's not so special so look what you have done".

   Como é que numa conversa de café, numa simples conversa de café, pensa Bob, se pode, às vezes, fazer renascer ou enterrar um homem, um homem inteiro com toda a sua vida? Como? Bob folheia o jornal e come amendoins de um pacote esquecido de outras noites. Onde antes estiveram papéis soltos e mata-borrão, hoje brilha um computador. Ali, dentro daquela caixa, uma vida inteira. Uma vida inteira de mentiras. Bob pensa em deixar de escrever mas, aos sessenta e dois anos, já não há muito mais que se possa fazer. Mesmo que tenha que acontecer alguma coisa na nossa vida, só aquilo que se conhece bem é que devia acontecer. Mesmo que não se aguente mais, ainda há a mesma mesa de sempre, onde se podem ter os mesmos pensamentos de sempre, fazer as mesmas coisas de sempre. Como uma paragem automática, disparando a cada sobressalto. Para o mal do bem comum.