Mr. Mouse gosta de cerveja, eis o seu menor defeito. Não desdenha as louras,
desde que não sejam demasiado amargas. Suporta as morenas, quando não são
demasiado encorpadas. Mas os seus amores são as ruivas, cujos reflexos lhe
lembram talvez certos recantos sedosos do corpo de Mrs. Mouse.
Mr. Mouse não bebe por beber, apenas
para matar a sede. Tomar uma cerveja é para ele um culto. Entrega-se-lhe de
corpo inteiro, indiferente ao resto do universo. Primeiro é preciso escolher o
copo certo para a cerveja. Mr. Mouse possui uma colecção deles: barrigudos ou
dilatados, arrumados numa prateleira do louceiro, todos eles gravados com o
nome de uma marca. Mr. Mouse não saberia consumir uma cerveja sem a consumir no
seu copo. Se os espelhos-feiticeiras
dos quadros de Van Eyck reflectem o seu próprio assunto, a composição em abismo
de Mr. Mouse não é menos refinada. Continente e conteúdo respondem um ao outro
numa subtil dialéctica: ele bebe o nome, a ideia, tanto quanto a realidade
móvel do líquido.
Para mais ele não bebe, ou bebe muito pouco. Afundado na cova do seu
cadeirão, observa a cerveja. As chamas da lareira atravessam como um raio o
oceano de lava ruiva. Mr. Mouse inclina o copo devagarinho. Os pêlos do seu
bigode tocam ao de leve na espuma morna. Mas ainda é demasiado cedo para
saborear. Mr. Mouse levanta a cabeça, afasta o copo, contempla-o com uma
vaidade de esteta. Mortimer escolheu mal o momento para pedir que lhe leiam uma
história. Mr. Mouse, normalmente, gosta tanto de o colocar sobre os joelhos, de
embarcar com ele numa aventura de corsários. Mas quando Mr. Mouse toma a sua
cerveja deixa de ter vontade de navegar – ainda é muito melhor embarcar no mar
veneziano de doçura amarga.
A cerveja faz engordar, infelizmente! Mr. Mouse sente-se um pouco
culpado, um poucochinho apenas. Está claro que Mrs. Mouse lhe diz que não
desgosta desta curva muito doce, que lhe faz inchar o colete quadriculado. Mas
Mr. Mouse pretende continuar apresentável. Assim, nos dias de cerveja, trabalha
mais do que de costume, apanha montões de bagas de sabugueiro, atordoado por uma actividade febril.
Sísifo não fará jamais rolar a sua pedra com o ardor que inflama Mr. Mouse
nestes dias. Sísifo não tem qualquer serão de cerveja em vista.
Beber não é nada. Merecer beber é que faz a alquimia deste instante de
ruiva delícia. Mr.Mouse já não pensa em nada. O ouro quente escorre-lhe pela
garganta. Já não existe mais do que uma
onça de remorso no fundo do seu prazer.
- A noite vai estar fria! lança Mrs. Mouse.
-Tanto melhor, nós estaremos bem.
Philippe Delerm, Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro, Trad.
Clotilde Simões, Livrododia Editores, 2007