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terça-feira, 9 de abril de 2013

Onde se descobre que a degustação da cerveja pode ser sublimada e elevada ao patamar da pesquisa estética.

|Philippe Delerm


 Mr. Mouse gosta de cerveja, eis  o seu menor defeito. Não desdenha as louras, desde que não sejam demasiado amargas. Suporta as morenas, quando não são demasiado encorpadas. Mas os seus amores são as ruivas, cujos reflexos lhe lembram talvez certos recantos sedosos do corpo de Mrs. Mouse.
Mr. Mouse não bebe por beber, apenas para matar a sede. Tomar uma cerveja é para ele um culto. Entrega-se-lhe de corpo inteiro, indiferente ao resto do universo. Primeiro é preciso escolher o copo certo para a cerveja. Mr. Mouse possui uma colecção deles: barrigudos ou dilatados, arrumados numa prateleira do louceiro, todos eles gravados com o nome de uma marca. Mr. Mouse não saberia consumir uma cerveja sem a consumir no seu copo. Se os espelhos-feiticeiras dos quadros de Van Eyck reflectem o seu próprio assunto, a composição em abismo de Mr. Mouse não é menos refinada. Continente e conteúdo respondem um ao outro numa subtil dialéctica: ele bebe o nome, a ideia, tanto quanto a realidade móvel do líquido.

   Para mais ele não bebe, ou bebe muito pouco. Afundado na cova do seu cadeirão, observa a cerveja. As chamas da lareira atravessam como um raio o oceano de lava ruiva. Mr. Mouse inclina o copo devagarinho. Os pêlos do seu bigode tocam ao de leve na espuma morna. Mas ainda é demasiado cedo para saborear. Mr. Mouse levanta a cabeça, afasta o copo, contempla-o com uma vaidade de esteta. Mortimer escolheu mal o momento para pedir que lhe leiam uma história. Mr. Mouse, normalmente, gosta tanto de o colocar sobre os joelhos, de embarcar com ele numa aventura de corsários. Mas quando Mr. Mouse toma a sua cerveja deixa de ter vontade de navegar – ainda é muito melhor embarcar no mar veneziano de doçura amarga.
   A cerveja faz engordar, infelizmente! Mr. Mouse sente-se um pouco culpado, um poucochinho apenas. Está claro que Mrs. Mouse lhe diz que não desgosta desta curva muito doce, que lhe faz inchar o colete quadriculado. Mas Mr. Mouse pretende continuar apresentável. Assim, nos dias de cerveja, trabalha mais do que de costume, apanha montões de bagas de sabugueiro, atordoado por uma actividade febril. Sísifo não fará jamais rolar a sua pedra com o ardor que inflama Mr. Mouse nestes dias. Sísifo não tem qualquer serão de cerveja em vista. 
   Beber não é nada. Merecer beber é que faz a alquimia deste instante de ruiva delícia. Mr.Mouse já não pensa em nada. O ouro quente escorre-lhe pela garganta. Já não existe mais  do que uma onça de remorso no fundo do seu prazer.
   - A noite vai estar fria! lança Mrs. Mouse.
   -Tanto melhor, nós estaremos bem.

Philippe Delerm, Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro, Trad. Clotilde Simões, Livrododia Editores, 2007